Já disse por aqui uma vez que o acaso está sempre a me oferecer algo bom. No mínimo, boas histórias. Desta vez não foi diferente.

No último dia sete de junho, enquanto eu me preparava para assistir a uma palestra da escritora Maria Valéria Rezende, recebi uma mensagem da organização do evento. Pediam-me para substituir a professora responsável pela mediação. Passado o susto, perguntei a mim mesma: devo agradecer ou ter um ataque cardíaco?

Parece que minha pulsão é pela vida. Catei os livros. Juntei na cabeça tudo que a memória guardava sobre a autora e sua obra e agradeci.

Maria e Rita se dedicam, cada uma a sua maneira, à educação libertadora.

Dias antes, quando observei na programação que a presença de Maria coincidia, data e horário, com ninguém menos que Rita von Hunty, não tive dúvidas. Apesar da curiosidade pelo fenômeno Rita, escolhi ver e ouvir Maria. Inscrição feita, coube ao destino ampliar a minha visão e escuta.

Não me tome, o leitor, por uma pessoa afeita à crença de que cavalo selado passa uma vez e que é preciso se aventurar saltando em cima.  Sou mesmo um bichinho lento, sem grande propensão a saltos, que se acomoda em livros e escritórios. Meus encontros se dão, antes, nas páginas. Por outro lado, o destino é o destino. Não dá pra dizer não a fortes batidas na porta. Arrumei coragem e fui.

Mas não é desse acaso que quero falar. Vamos direto ao ponto. Quero me ater à energia paulofreiriana que contagiou a noite por puro acaso, até onde me consta.

No auditório principal, com lugares disputados por jovens, em sua maioria, a festejada drag queen apresentava pontos importantes sobre cultura e marxismo. Rita é professora e atriz. Bom conteúdo, aliado a performances bem montadas e atrativas para olhos de hoje, levou o canal Tempero Drag no YouTube a ostentar mais de um milhão de inscritos. Guilherme Terreri Lima Pereira, a pessoa por trás de Rita, afirma que criou a personagem para discutir a questão de gênero. No seu entender, gênero é uma forma de opressão social. Uma construção, nos termos de Simone de Beauvoir. Por isso ele se monta de Dona Rita. No seu discurso, obviamente, não podiam faltar as agressões a que são submetidos os corpos subalternizados e a pedagogia da autonomia.

No auditório menor, com cadeiras ocupadas por fiéis conhecedores da obra, Maria Valéria contagiava a todos com a firmeza da voz e a simplicidade das histórias vividas e recontadas por sua memória. Desde sua vivência entre grandes poetas na infância, sua saída de Santos na década de 1960, suas leituras de O Capital em francês e de Os Sermões de Pe. Antônio Vieira em Latim, sua descoberta de que não queria viver em um aquário, seu encontro com Paulo Freire, seu trabalho de alfabetização pela pedagogia freiriana no sertão nordestino em plena ditadura militar, a sequência em outros países da América Latina, até as premiações literárias no século XXI (Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura, Casa de las Américas).

Vários contrapontos poderiam ser levantados. Maturidade versus Juventude (Maria, 80 anos – Rita, 31 anos); Teoria versus Práxis (Maria fez, tem a ação em educação popular em seu currículo – Rita estuda a teoria, e tem prática em ensino, mas não um contato semelhante no contexto de miséria); Tentativa de Adequação versus Completa Adaptação ao mundo midiático em que vivemos (Maria escreve contos e romances, divulga em redes, tem uma loja virtual e faz lives eventualmente – Rita é profissional do mundo virtual, e o presencial é consequência). No entanto o que me motiva a escrever este texto é o ponto de conexão entre as duas e a coincidência de estarem no mesmo território, separadas por alguns metros de distância, discutindo o mesmo tema (pelo menos por alguns instantes), no ano em que podemos dar uma chance à transformação da realidade.

Ao abraçar Maria na despedida, no vão aberto entre os auditórios, uma brisa leve soprava a brasinha que dentro de mim aquece o verbo esperançar.

Nada mais freiriano do que este encontro entre as ideias e a práxis e o diálogo. Por isso não há aqui julgamentos. As duas personagens se dedicam, cada uma a sua maneira, à educação libertadora. O que há é apenas a constatação de que, na sociedade fluida e de vidas midiáticas, valorizamos menos quem traz no corpo físico as marcas da prática cultivada e fortalecida em uma longa experiência de troca e aprendizagem, mesmo teorizando sobre.

Cuidemos aqui do amadurecimento construído nas interações humanas, por um sentimento de justiça. Maria segue ensinando e aprendendo e tendo como ferramenta principal o diálogo. Perguntada sobre o seu despertar tardio para a escrita de ficção, ela respondeu que escrever ficção é uma forma de dar continuidade à educação popular. Uma forma de questionar a realidade ou provocar no leitor indagações. Ao ficcionar a realidade dos invisíveis estaria dizendo: olhe, isto existe. O que você pensa a respeito?

Crédito de imagens: fotos de divulgação em redes sociais.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (2018); Conexões Atlânticas, Infinita (2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (2018).