Por ocasião do fechamento da editora Cosac-Naify, eu aproveitei a liquidação e adquiri títulos cujos preços de suas magníficas edições me impediam até então.  Entre eles, alguns infantis como a tradução de O pato, a morte e a tulipa de Wolf  Erlbruch. Ao ler fiquei tão assustada que escondi na parte alta da estante, bem distante dos livros que minhas netas costumavam acessar à vontade.

O livro é belo, em desenhos e textos. A ilustração é do próprio autor e os diálogos entre o pato e a morte são construídos em linguagem simples, direta e muito rica. No entanto, considerei desafiador demais para minha capacidade de responder às perguntas que brotariam. Não conseguia ver a morte com a naturalidade que o livro apresenta. Tampouco teria coragem de conversar com as crianças sobre o tema sem uma provocação que me obrigasse. Melhor deixar esse assunto para os pais. Essa é uma das coisas boas de ser avó.

Então, qual a razão da escolha desse livro? O assunto me atrai e me assombra. É frequente no que escrevo e por isso também frequente nas minhas pesquisas. Um dia desses, lendo uma psiquiatra especialista no ramo, encontrei uma explicação para o meu pavor e negação de sua naturalidade. Dizia ela que para o inconsciente é impossível imaginar um fim real. O inconsciente tende a nos impulsionar para a vida. O fim é visto como algo externo e é por isso considerado uma intervenção maligna, um acontecimento medonho. Fiquei satisfeita e aliviada por alguns
instantes. A minha negação da morte, ou visão da morte como algo trágico, nasce do meu desejo de viver.

 

Em 2020, o livro desceu para as prateleiras mais baixas. Estamos há dois anos convivendo diariamente com o tema. Não que antes não morressem pessoas todos os dias. É que a pandemia jogou a morte na roda sem subterfúgios.  Não deu para retirar as crianças da sala.

Para mim, a compreensão filosófica da morte como um fato puro tal qual o nascimento – o ciclo da vida na natureza – que está como pano de fundo do O pato é racionalmente palatável. É um norte, é uma justificativa para o aprimoramento do nosso estar no mundo. É o que dá sentido e brilho à vida. No entanto, emocionalmente não é tão simples assim quando temos aqueles olhinhos brilhantes e cheios de vida diante de nós perguntando: você vai morrer? Nunca mais vou falar com você? Eu vou morrer?

Mas o ponto em que eu queria chegar, quando imaginei este texto, está ainda aqui latejando na minha cabeça, tentando encontrar uma forma no papel enquanto as ideias pipocam no meu cérebro. Uma coisa é entender a morte como parte de um ciclo natural da existência de todas as coisas e não se apavorar diante dela. Outra é ter a normalização da morte como medida para ações de descuido com a vida humana.

Chegamos à marca oficial de 640 mil mortes por uma doença evitável. Evitável porque conhecemos o mecanismo de transmissão e o que precisa ser feito para interromper. O que fazer em parte depende de políticas públicas e em grande parte depende da atitude individual. Temos um governo que declaradamente alimenta o encanto pela morte: na defesa da tortura e da eliminação dos que pensam diferente, no armamento da população civil, na defesa da truculência policial, na liberação de agrotóxicos, na agressão ao meio-ambiente e povos originários, na exposição das pessoas a uma epidemia com a justificativa de que só morrem os que têm que morrer. Esse último é um discurso perversamente interiorizado pela maioria da população, mesmo os que discordam das demais políticas nefastas. Ficamos no mato sem cachorro.

Neste pico da terceira onda, todas as noites vamos pra cama com a notícia da morte de mais de mil pessoas por uma doença evitável. Evitável, é preciso repetir. Paradoxalmente, o que mais se ouve é o discurso de que é preciso viver, de que é tempo demais pra ficar parado com medo da morte. Como se esse pensar individualista absorvesse tortuosamente o entendimento filosófico sobre a realidade finita do homem e fechasse os olhos para as portas abertas a algo maior: a morte do outro, o fortalecimento de um agente mortífero, a extinção. Portanto, um pensamento suicida em que a arma pode ser um vírus ou outras causas que ameaçam a vida humana e cujo antídoto depende do pensar coletivamente e do repensar o viver, que será exigido mais cedo ou mais tarde.

Ficou pesado, né? Hora do ponto final. Uso a descrição de fim do mundo de Ailton Krenak – uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não quer perder – para perguntar: não valeria a pena adiar o fim?

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018).