Victória Holanda
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Adeus, até logo

Era quase 13:00 quando chegou uma mensagem inesperada por WhatsApp de uma amiga de longa data. “A Ju se matou, não conta pra ninguém ainda”. Tremi, a fome que chegava naquela hora se tornou um grande buraco no meu estômago e as letras no computador se embaralharam. As vozes das outras pessoas na redação ficaram cada vez mais longe e, imediatamente, eu me lembrei da última vez que a vi.

– “Acabei de pagar uma conta de partir o coração”, disse ela estampando um sorriso, quase debochando dessa obrigação.

Eu almoçava no shopping com a mesma amiga que me deu essa notícia devastadora e nós a encontramos acompanhada do marido. “Vou comer um Subway”, disse se despedindo. Rapidamente baixei os olhos e pensei: “Tá todo mundo na mesma pindaíba…”.

Mas não estávamos. Com frequência, encontramos os amigos e nos identificamos com as lutas diárias, mas subestimamos a profunda dor de cada um.

Enfrentar leões, enfrentar/ Passar por cima de uma coisa que tá no lugar da outra/ Mordida, a pele fica ferida/ Prossiga no rastro, no pasto e siga a vida/ Por fim, a tristeza é amiga da onça/ Ensina a enfrentar leões (Karina Buhr, “Dragão”)

Enquanto eu engolia em seco, estática por alguns minutos, outros amigos ficavam sabendo da mesma notícia. No ônibus, em casa, no trabalho. Talvez tenham passado da parada que iam descer, talvez tenham deixado o arroz queimar, talvez não tenham conseguido trabalhar o resto do dia, talvez tenham chorado um pouco, talvez tenham chorado copiosamente, talvez…

O dia estava nublado, quente e o ar parecia mais pesado. Distraída e ansiosa, passei o resto da tarde tentando cumprir os compromissos que tinha em vista, com esforço. Talvez tenha sido o que a Ju vinha tentando fazer.

À noite, todos se reuniram para se despedir. Que triste reencontrar as pessoas por esse motivo. Em meio aos abraços e palavras de conforto me lembrei de uma conversa virtual, em que ela me convidava para sua formatura.

– “Eu vou pra colação Juzinha. Finalmente né?!”

– “Finalmenteee”.

Finalmente né Ju? Finalmente…

 

1968 – Um ano de rebeldia

Desde que me entendo como gente, as coisas acontecem exatamente assim: sai ano, entra ano, e a vida a nos surpreender sempre. Espetáculo para ser não só assistido como, sobretudo, vivenciado com paixão e destemor. Alguns anos, sabemos todos, passam quase despercebidos, varridos que foram para um cantinho da memória. Outros, ao contrário, são guardados com muito carinho do lado esquerdo do peito, uma vez que encerram fatos e lembranças tatuados até hoje em nossa pele. Mas existem também, acreditem, os anos que teimam em sobreviver, dado os paradigmas que abraçaram em tão curta existência. É o caso, por exemplo, de 1968, ano que simboliza o melhor das pessoas – o inconformismo diante do mundo injusto e careta de todas as épocas.

1968Tanto lá fora quanto no Brasil, o bicho literalmente pegou, com a rapaziada tentando tomar a liberdade em suas próprias mãos e despachar de vez todas as formas de opressão. Em Paris, o lema adotado pelos jovens nas manifestações estudantis não poderia ser mais emblemático: “É proibido proibir”, com a pluralidade de sentidos que a expressão conota. No Brasil, em plena ditadura militar do AI-5, o refrão entoado era de Caminhando, música censurada de Geraldo Vandré, tida por alguns como a nossa Marselhesa: “Quem sabe faz a hora, / não espera acontecer”. Em ambos os casos, a estudantada teve que enfrentar a fúria e o autoritarismo da polícia, com seus cães e bombas de gás (Polícia é polícia, / é qualquer canto, parafraseando aqui os Titãs), mas sem arredar pé de suas utopias e desejos. Flores no lugar de canhões, era a troca empunhada por esses garotos nas passeatas mundo afora.

No aspecto cultural, tivemos importantes contribuições através do movimento hippie, nos Estados Unidos, que ousou falar de paz e amor em plena guerra do Vietnã, substituindo as armas por letras bem humoradas e críticas; os campos de batalha, por festivais de rock; a carnificina ideológica e física, por um encontro festivo entre irmãos. No Brasil, um poeta desfolhava a bandeira e o movimento tropicalista surgia. Criativo, polêmico e abusado, na grande geleia geral que Pindorama havia se transformado. Torquato Neto e seus amigos baianos – Caetano veloso, Gilberto Gil e Tom Zé – tiveram a coração de desafinar o coro dos “contentes”, daqueles que estão presos ao passado ou tentam algarismar o futuro. Sem falar também dos instigantes filmes de Jean-Luc Godard (A chinesa) e Gláuber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol), cineastas que nos apontaram uma outra maneira de olhar a “sétima arte”, mais fascinante e reveladora.

Além da rebeldia, da contestação,da militância política e das viagens através das drogas, 68 representou um avanço na sexualidade das pessoas. Longe dos sentimentos de pecado, tão difundidos pelas religiões, o sexo passava agora a ser desfrutado como sinônimo de prazer e bem-estar. Melhor ainda, sem o perigo de gravidez indesejada, graças às pílulas anticoncepcionais. De tudo o que herdamos desse período, aponto como mais significativos o despojamento das roupas, a alegria de viver, o êxtase em sonhar e produzir, o senso de justiça e, principalmente, a vontade de mudar as coisas. Mesmo quando não conseguimos, nada se compara a sensação da tentativa. Imperdoável é não fazer por onde ou achar que este mundo sempre foi assim: imprestável e absurdo. O espírito de 68 somente vale a pena – descontados os exageros e os equívocos – se for reinventado. Resta saber se a juventude de nossos dias tem disposição e tutano para tanto.

O amor pós-moderno…

Cazuza era pós-modernidade pura. Às vezes me pergunto se ele tinha consciência de toda extensão e profundidade do que expressava. O filme que conta sua vida fala da realidade de uma pessoa em conflito. Suaviza, tornando-o socialmente palatável. Cazuza, provavelmente, não aceitaria; seria o primeiro a contestar. Era ídolo e não herói. Até dá para entender; uma maneira de lembrá-lo com o carinho que ele fez por nos merecer.

O comportamento pessoal de um homem é privado, só a ele interessa. Importa como foi sua expressão, sua atuação em relação aos outros e no mundo. Não havia nada de auto-ajuda em suas letras, muito pelo contrário. Ele expressava as constatações que realizava.

Hodiernamente, nós estamos inventando tudo a partir do nada. Até nossos sentimentos. E para Cazuza isso era claro como a água que tomava (que, alias, era bem pouca). O amor tem sobrevivido à vida moderna porque aprendemos a inventá-lo sempre que precisamos. Onde não haja amor, nos tornamos capazes de criá-lo. Aos poucos vamos aprendendo que o amor esta dentro de nós e não no outro.

Hoje ficamos com as pessoas. Namoro tem outro significado, é um grau acima. As pessoas realmente se experimentam. Sexo já não é armadilha que possa prender ninguém. Ficou bem claro que ninguém é de ninguém. Todo aquele que se dá hoje, necessariamente, vai querer se reaver amanhã e depois de amanhã. Somos de nós mesmo e de ninguém mais. Outra coisa: nada é para sempre, tudo tem seu começo meio e fim; quase se poderia dizer que amor tem prazo de validade.

Fazer sexo com amor hoje não significa que vamos amar o parceiro para sempre. Significa que estaremos com todos nossos sentimentos ativados e inteiros no momento que as coisas acontecem. Vai mais além, significa não usar o parceiro e sim participar em igualdade com ele. Sabemos que a intensidade do desejo e do prazer dependem da generosidade de cada um dos parceiros.

O momento antes do orgasmo esta muito mais valorizado que o orgasmo em si. Gozar já não é mais o ápice fundamental do ato sexual. Estamos ultrapassando as idades instintivas. Até a pouco, quando o sexo enrijecia, a exigência do orgasmo era

determinante. Antropólogos afirmam que caso o homem não fosse sexualmente agressivo, já não existiríamos como espécie.

Conheci mulheres que jamais tiveram orgasmos e outras que raramente chegavam ao prazer. Mas que sentiam inenarrável prazer na prática sexual. Elas afirmavam que todo o corpo é sensível. O próprio Tantra fala muito sobre isso. Ensina a segurar o orgasmo para aumentar o prazer. Descobrimos que há prazer o tempo todo. É só estar ao lado do ser que nos atrai.

Parece que finalmente o homem vai se educando. Agora participa ao mesmo nível da parceira em busca do prazer que não é só o orgasmo. E não fomos bem nós que fomos espertos. Elas perceberam e ficaram mais exigentes. Nós, homens, vamos aprendendo aos poucos a viver o que sentimos.

Pobre do homem que tem uma mulher submissa e sem vontade própria a seu lado… Dá até dó. Quem conhece uma mulher plena, emancipada, dona de si e consegue tê-la na cama, é um homem feliz.

E o amor? Perguntariam. Ah! Isso é fácil; como descobriu Cazuza, “O nosso amor a gente inventa…”

**

Luiz Mendes

16/02/2016.

Com o coração na estrada (2)

(continuação)

“Pra você, caminhoneiro, aí solitário na boleia do seu caminhão, o silêncio da noite trazendo lembranças da mulher que o olhou naquela parada para o café com coca-cola, este bolero…”, diz a locutora de voz acariciante. Naquela hora, o rádio de todos os caminhões está ligado no programa “Com o Coração na Estrada”. Só Dalila não sabe se gosta ou odeia aquele programa. Gosta, sim, das músicas, mas a voz da locutora a perturba. Liga e desliga o rádio, como se sentisse atração e repulsa. O velho Soares já nem se irrita mais com este capricho da filha, limita-se a fazer um muchocho e a perguntar: “por que você não muda de estação?” Ela não sabe, nunca soube. É sempre assim, como se aquela voz lhe trouxesse um pressentimento. Bom?, ruim? Não sabe. Algo como um chamado.
Dalila despertou de um cochilo ao sentir que o caminhão saía, de repente, da estrada. Assustada, voou no volante e bateu no corpo inerte do pai. Estava morto o velho Soares.
À frente da frota, vão agora Dalila e seu filho de 5 anos, Aruan (registrado Aruan de Dalila), que em tupi significa mel. Inteligente, engraçado, meigo, Aruan é realmente mel. Tem com a mãe uma ligação semelhante a que Dalila teve com o velho Soares. Faz-se acompanhar de um papagaio, que só fala de inteligível “meu bem”.
Aruan é um apaixonado pelo rádio, especialmente pela locutora de voz acariciante. Briga com a mãe cada vez que ela tenta desligar o rádio na hora do programa “Com o Coração na Estrada”. Afirma conhecer a locutora e a descreve com as características da mãe.
Sempre que chegam a Belém, Dalila e Aruan vão a uma loja de chocolates. Numa das vezes, no momento em que compram chocolates, Dalila é atraída pelo olhar de uma mulher que está do outro lado da vitrine. Ao virar-se para pagar a conta, a mulher desaparece. Ela corre para a porta da loja, vê a mulher de costas, distanciando-se. Tenta segui-la, mas perde-a no meio dos transeuntes. De agora em diante, aquele rosto voltará à sua mente de maneira perturbadora.
Um acidente que danificou seriamente um caminhão e a ameaça de falência, levam a família Soares à decisão de vender a frota. Inconformada, Dalila resolve mudar-se para Belém. À tristeza da perda de sua frota mistura-se a excitação de uma esperança: descobrir aquela mulher. Porquê, para quê, ela não sabe. É como se fosse algo inevitável, coisa do destino, que não se fez esperar: ainda na viagem de Altamira para Belém, Aruan vê, numa revista, a reportagem sobre uma disc-jockey, que ele alegremente identifica como sendo “aquela locutora”. E assim, Dalila tem diante de si a foto da mulher que procura. Não havia dúvida, era ela, a locutora, que não era só uma locutora, mas uma famosa disc-jockey da capital. Suiá, chamava-se, casada com um dos donos da emissora, mãe de três filhos lindos, dizia a reportagem.

Dois pequenos contos de Teresina

DESORIENTADO

Depois que ela se foi, há quase um mês, esta é a primeira vez que saio do apartamento. Não por vontade própria, mas insistência dos amigos. Precisava espairecer um pouco, diziam, ver gente. Talvez receassem eu enlouquecer de vez. Meu corpo, entretanto, não dava sinal de vida, estirado na cama sem disposição pra nada. Quanto à alma, dava pena vê-la destroçada num canto do quarto, talvez buscando compreender tamanho desamparo. Agora entendia o porquê de ligarem o amor a precipício, metáfora de fundura sem fim, com a pessoa despencando lá de cima,  sequer um galho para amortecer a queda. Dar voltas pelas ruas de Teresina, ao contrário do que se imaginava, acentuou ainda mais a sensação de desespero. Cada pedaço dessa cidade guarda muito de Olívia, particularmente o centro, ela que adorava tanto passear por ali em silêncio e ouvindo Cat Stevens, seu cantor predileto, curtindo as belezas da Frei Serafim e o crepúsculo na Ponte Metálica, onde o sol se esconde no horizonte mais bonito que noutro lugar. Dizia gostar muito do cheiro de nossos rios – o Parnaíba e o Poty -, infelizmente abandonados por todos, incluindo gestores e habitantes; e, sobretudo, do calor nos meses do B-R-O-Bró, quando afirmava sentir a libido pulsar de forma intensa. Preferia mil vezes o calor, destacava sempre, do que o frio estéril em sentimentos viscerais. Em Olívia, eu adorava tudo, o beijo em especial, sabor diferente a cada dia e capaz de acariciar nosso âmago. Desejo de jamais desgrudar de seus lábios sensuais, horas a fio num siribolo ardente de línguas. É o beijo na boca – profetizava Nelson, o Rodrigues, o sábio teatrólogo pernambucano – que faz do casal o ser único, definitivo, tudo mais sendo tão secundário, tão frágil, tão irreal, com o que assino embaixo. Acontece que ela partiu, de repente, sem avisar nada, deixando-me completamente desorientado e triste. E agora, sem rumo, não sei o que fazer.

***

NO INFERNO

Morro, mas morro feliz. Levo comigo dois desses desgraçados que infestam a cidade. Irão agora prestar conta no inferno com o diabo, o pai deles. Tive medo de afrouxar na hora, cagar na calça, como se diz, mas encontrei coragem no ódio. Foi ele, com certeza, que encheu meus culhões de sangue para enfrentá-los cara a cara. Vão se foder, escancarei a boca e gritei, seus filhos de uma grande arrombada. E o três-oitão começou a soltar fogo pela boca, como se eu tivesse xingado a mãe dele. Me fez lembrar o pipocar das balas, os folguedos juninos em Teresina. Senti a mesma emoção quando estourava, ainda criança, traques nos pés dos outros. Quanto maior o susto, maior era minha alegria. A gargalhada azul e barulhenta do mar. Como era prazeroso senti-la novamente. De dois, pelos menos, o mundo vai se ver livre. O terceiro, que me acertou, conseguiu fugir. Experimento agora uma indescritível sensação de paz. Do peito ainda escorre um sangue quente, começa a ficar embaçada a minha vista. Umas lembranças surgem, como formiguinhas, em fila indiana. Menino, jogando peteca e banhando de chuva com os outros molecotes. Adolescente, me sentindo livre em cima de uma bicicleta e da prima que morava em casa. Adulto, cercado por amigos numa mesa de bar e contando histórias para meu filho dormir. Estranho o frio que passo a sentir, quem sabe do sangue perdido ou do sentimento de abandono.  Onde estão todos? Deviam ter aparecido no foguetório do juízo final. Coisa mais arretada que já vi na vida, com as pessoas completamente irreconhecíveis, numa animação só. Eu mesmo, covarde que sempre fui, me surpreendi no papel de valentão. Precisavam ter visto. Agora, infelizmente, é tarde. A morte, hoje vestida de vermelho, me beija com sofreguidão. Para sempre, digo a vocês, ela me seduziu e conquistou.