Luiz Alberto Mendes
Blog Title

Agradecimento

No silêncio que faz a vida de cada um (que parece tão barulhenta…), no desencanto dos muitos desencontros pelos quais atravessamos, às vezes sentimos vontade de parar. Depois de procurar apoiar alguns jovens aqui de onde moro (Pirajussara city) e vê-los fracassar tantas vezes, pensei em parar. Parar para refletir porque, definitivamente, alguma coisa não esta dando certo. Talvez o método ou o aplicador. O Centro de Detenção Provisório de Itapecerica da Serra, o mais próximo aqui, tem uma grande percentagem da população oriunda aqui do bairro. Alguns dos jovens que se tornaram meus amigos, já saíram e voltaram, e eu ai no meio, de bobão.

Eu sei, quando era jovem não ouvia ninguém. Tirava os “aconselhadores” por “babacas”. Mas o que vivi não esta morto e enterrado. Na verdade nem mesmo acabou ainda. Não sei até quando serei o egresso das prisões. As sequelas físicas estão latejando em meu corpo como cerca viva. As mentais nem falo. Só eu sei o quanto tenho lutado para conviver com um mínimo de sanidade.

Faço tudo para que percebam. Para que saibam o quanto vai doer. Esforço-me para desromantizar o crime. Para demonstrar que não existe o glamour que lhe é apregoado. Tudo mentira. O que existe é muita dor e sofrimento reservado aos envolvidos. As principais vítimas são aqueles que os amam. Mães, esposas, filhos, esses vão penar qual fossem eles os culpados. O Código Penal determina que a pena não pode passar da pessoa do culpado. Mas como a mãe de um garoto de 18 anos preso, sabe-se lá como ou porque, vai viver tal desventura sem sofrer amargamente?

Percebo que por trás daqueles olhos redondos de curiosidade dos jovens, ventos endemoniados sacodem suas almas, quando me ouvem. Às vezes penso se não faço propaganda da prisão. Porque, depois de tantas torturas, abandonos, espancamentos, rebeliões, tiros (ainda trago balas no corpo), pressões, tensões e mais de três décadas nas piores masmorras do Estado, pareço inteiro, tranqüilo e bem. Além disso, ainda tenho vários livros publicados e a publicar; mantenho coluna numa das 10 melhores revistas do país há mais de 12 anos; faço palestras em Universidades, participo e realizo projetos sociais, presto consultorias, tenho peças teatrais, faço cinema, sou muito procurado para entrevistas e aplico minhas Oficinas de Leitura e Escrita nas prisões, bibliotecas, centros culturais e escolas.

Alguns jovens pensam que se eu consegui, eles também conseguirão, se necessário for. Não percebem que de fato não consegui. Não estou tão bem assim, mesmo fisicamente. Economicamente, estou ralando e meus passos são curtos; perdi muito tempo. Acho que o principal é que recordo cada vez que estive sob espancamento violento e o pavor de ser morto de tanto apanhar. Eu sabia que tinha que sair porque aqui fora era meu mundo, mas jamais tive a certeza, até o ultimo momento. Quando cheguei na Penitenciária do Estado, em abril de 1973, o primeiro pagamento que fiz foi de meu caixão. Era norma penitenciária.

Talvez a minha melhor imagem seria de um homem alquebrado, doente, esmagado pela culpa e com cara de grade. Daí eles veriam em mim o que eles jamais quereria vir a ser. De preferência que eu andasse mal arrumado. Roupa suja ou rasgada, bem fora de moda, cabeludo e barba por fazer. Não soubesse articular as palavras, nem expressar meu pensamento e só falasse na gíria. Meu rosto deveria ser estragado, cheio de picumãs e teias de aranhas. Meus olhos vermelhos e ameaçadores. A minha figura deveria infundir medo qual fosse granada preste a explodir. Será que isso convenceria os jovens que não vale a pena o chamado “caminho fácil”? Não sei se estou disposto a sacrificar a pouca qualidade de vida que conquisto a duríssimas penas, por algo tão duvidoso.

Talvez minha mensagem original seja mais interessante. A minha vida, a luta, o esforço, o sacrifício, o calar, o escutar e o aprendizado. A disposição permanente, o ânimo, a perseverança e a coragem de enfrentar minhas covardias de frente. São doze anos, nasci recente, mas ando de peito aberto e despreocupado pelas ruas de minha cidade. Devo gratidão às pessoas que acreditaram em mim. Sou-lhes grato pela chance de me construir como cidadão. Um cidadão que não tem o que temer da polícia ou quem quer que seja.

**

Luiz Mendes

05/02/2016.

Adeus, até logo

Era quase 13:00 quando chegou uma mensagem inesperada por WhatsApp de uma amiga de longa data. “A Ju se matou, não conta pra ninguém ainda”. Tremi, a fome que chegava naquela hora se tornou um grande buraco no meu estômago e as letras no computador se embaralharam. As vozes das outras pessoas na redação ficaram cada vez mais longe e, imediatamente, eu me lembrei da última vez que a vi.

– “Acabei de pagar uma conta de partir o coração”, disse ela estampando um sorriso, quase debochando dessa obrigação.

Eu almoçava no shopping com a mesma amiga que me deu essa notícia devastadora e nós a encontramos acompanhada do marido. “Vou comer um Subway”, disse se despedindo. Rapidamente baixei os olhos e pensei: “Tá todo mundo na mesma pindaíba…”.

Mas não estávamos. Com frequência, encontramos os amigos e nos identificamos com as lutas diárias, mas subestimamos a profunda dor de cada um.

Enfrentar leões, enfrentar/ Passar por cima de uma coisa que tá no lugar da outra/ Mordida, a pele fica ferida/ Prossiga no rastro, no pasto e siga a vida/ Por fim, a tristeza é amiga da onça/ Ensina a enfrentar leões (Karina Buhr, “Dragão”)

Enquanto eu engolia em seco, estática por alguns minutos, outros amigos ficavam sabendo da mesma notícia. No ônibus, em casa, no trabalho. Talvez tenham passado da parada que iam descer, talvez tenham deixado o arroz queimar, talvez não tenham conseguido trabalhar o resto do dia, talvez tenham chorado um pouco, talvez tenham chorado copiosamente, talvez…

O dia estava nublado, quente e o ar parecia mais pesado. Distraída e ansiosa, passei o resto da tarde tentando cumprir os compromissos que tinha em vista, com esforço. Talvez tenha sido o que a Ju vinha tentando fazer.

À noite, todos se reuniram para se despedir. Que triste reencontrar as pessoas por esse motivo. Em meio aos abraços e palavras de conforto me lembrei de uma conversa virtual, em que ela me convidava para sua formatura.

– “Eu vou pra colação Juzinha. Finalmente né?!”

– “Finalmenteee”.

Finalmente né Ju? Finalmente…

 

1968 – Um ano de rebeldia

Desde que me entendo como gente, as coisas acontecem exatamente assim: sai ano, entra ano, e a vida a nos surpreender sempre. Espetáculo para ser não só assistido como, sobretudo, vivenciado com paixão e destemor. Alguns anos, sabemos todos, passam quase despercebidos, varridos que foram para um cantinho da memória. Outros, ao contrário, são guardados com muito carinho do lado esquerdo do peito, uma vez que encerram fatos e lembranças tatuados até hoje em nossa pele. Mas existem também, acreditem, os anos que teimam em sobreviver, dado os paradigmas que abraçaram em tão curta existência. É o caso, por exemplo, de 1968, ano que simboliza o melhor das pessoas – o inconformismo diante do mundo injusto e careta de todas as épocas.

1968Tanto lá fora quanto no Brasil, o bicho literalmente pegou, com a rapaziada tentando tomar a liberdade em suas próprias mãos e despachar de vez todas as formas de opressão. Em Paris, o lema adotado pelos jovens nas manifestações estudantis não poderia ser mais emblemático: “É proibido proibir”, com a pluralidade de sentidos que a expressão conota. No Brasil, em plena ditadura militar do AI-5, o refrão entoado era de Caminhando, música censurada de Geraldo Vandré, tida por alguns como a nossa Marselhesa: “Quem sabe faz a hora, / não espera acontecer”. Em ambos os casos, a estudantada teve que enfrentar a fúria e o autoritarismo da polícia, com seus cães e bombas de gás (Polícia é polícia, / é qualquer canto, parafraseando aqui os Titãs), mas sem arredar pé de suas utopias e desejos. Flores no lugar de canhões, era a troca empunhada por esses garotos nas passeatas mundo afora.

No aspecto cultural, tivemos importantes contribuições através do movimento hippie, nos Estados Unidos, que ousou falar de paz e amor em plena guerra do Vietnã, substituindo as armas por letras bem humoradas e críticas; os campos de batalha, por festivais de rock; a carnificina ideológica e física, por um encontro festivo entre irmãos. No Brasil, um poeta desfolhava a bandeira e o movimento tropicalista surgia. Criativo, polêmico e abusado, na grande geleia geral que Pindorama havia se transformado. Torquato Neto e seus amigos baianos – Caetano veloso, Gilberto Gil e Tom Zé – tiveram a coração de desafinar o coro dos “contentes”, daqueles que estão presos ao passado ou tentam algarismar o futuro. Sem falar também dos instigantes filmes de Jean-Luc Godard (A chinesa) e Gláuber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol), cineastas que nos apontaram uma outra maneira de olhar a “sétima arte”, mais fascinante e reveladora.

Além da rebeldia, da contestação,da militância política e das viagens através das drogas, 68 representou um avanço na sexualidade das pessoas. Longe dos sentimentos de pecado, tão difundidos pelas religiões, o sexo passava agora a ser desfrutado como sinônimo de prazer e bem-estar. Melhor ainda, sem o perigo de gravidez indesejada, graças às pílulas anticoncepcionais. De tudo o que herdamos desse período, aponto como mais significativos o despojamento das roupas, a alegria de viver, o êxtase em sonhar e produzir, o senso de justiça e, principalmente, a vontade de mudar as coisas. Mesmo quando não conseguimos, nada se compara a sensação da tentativa. Imperdoável é não fazer por onde ou achar que este mundo sempre foi assim: imprestável e absurdo. O espírito de 68 somente vale a pena – descontados os exageros e os equívocos – se for reinventado. Resta saber se a juventude de nossos dias tem disposição e tutano para tanto.

O amor pós-moderno…

Cazuza era pós-modernidade pura. Às vezes me pergunto se ele tinha consciência de toda extensão e profundidade do que expressava. O filme que conta sua vida fala da realidade de uma pessoa em conflito. Suaviza, tornando-o socialmente palatável. Cazuza, provavelmente, não aceitaria; seria o primeiro a contestar. Era ídolo e não herói. Até dá para entender; uma maneira de lembrá-lo com o carinho que ele fez por nos merecer.

O comportamento pessoal de um homem é privado, só a ele interessa. Importa como foi sua expressão, sua atuação em relação aos outros e no mundo. Não havia nada de auto-ajuda em suas letras, muito pelo contrário. Ele expressava as constatações que realizava.

Hodiernamente, nós estamos inventando tudo a partir do nada. Até nossos sentimentos. E para Cazuza isso era claro como a água que tomava (que, alias, era bem pouca). O amor tem sobrevivido à vida moderna porque aprendemos a inventá-lo sempre que precisamos. Onde não haja amor, nos tornamos capazes de criá-lo. Aos poucos vamos aprendendo que o amor esta dentro de nós e não no outro.

Hoje ficamos com as pessoas. Namoro tem outro significado, é um grau acima. As pessoas realmente se experimentam. Sexo já não é armadilha que possa prender ninguém. Ficou bem claro que ninguém é de ninguém. Todo aquele que se dá hoje, necessariamente, vai querer se reaver amanhã e depois de amanhã. Somos de nós mesmo e de ninguém mais. Outra coisa: nada é para sempre, tudo tem seu começo meio e fim; quase se poderia dizer que amor tem prazo de validade.

Fazer sexo com amor hoje não significa que vamos amar o parceiro para sempre. Significa que estaremos com todos nossos sentimentos ativados e inteiros no momento que as coisas acontecem. Vai mais além, significa não usar o parceiro e sim participar em igualdade com ele. Sabemos que a intensidade do desejo e do prazer dependem da generosidade de cada um dos parceiros.

O momento antes do orgasmo esta muito mais valorizado que o orgasmo em si. Gozar já não é mais o ápice fundamental do ato sexual. Estamos ultrapassando as idades instintivas. Até a pouco, quando o sexo enrijecia, a exigência do orgasmo era

determinante. Antropólogos afirmam que caso o homem não fosse sexualmente agressivo, já não existiríamos como espécie.

Conheci mulheres que jamais tiveram orgasmos e outras que raramente chegavam ao prazer. Mas que sentiam inenarrável prazer na prática sexual. Elas afirmavam que todo o corpo é sensível. O próprio Tantra fala muito sobre isso. Ensina a segurar o orgasmo para aumentar o prazer. Descobrimos que há prazer o tempo todo. É só estar ao lado do ser que nos atrai.

Parece que finalmente o homem vai se educando. Agora participa ao mesmo nível da parceira em busca do prazer que não é só o orgasmo. E não fomos bem nós que fomos espertos. Elas perceberam e ficaram mais exigentes. Nós, homens, vamos aprendendo aos poucos a viver o que sentimos.

Pobre do homem que tem uma mulher submissa e sem vontade própria a seu lado… Dá até dó. Quem conhece uma mulher plena, emancipada, dona de si e consegue tê-la na cama, é um homem feliz.

E o amor? Perguntariam. Ah! Isso é fácil; como descobriu Cazuza, “O nosso amor a gente inventa…”

**

Luiz Mendes

16/02/2016.

Com o coração na estrada (2)

(continuação)

“Pra você, caminhoneiro, aí solitário na boleia do seu caminhão, o silêncio da noite trazendo lembranças da mulher que o olhou naquela parada para o café com coca-cola, este bolero…”, diz a locutora de voz acariciante. Naquela hora, o rádio de todos os caminhões está ligado no programa “Com o Coração na Estrada”. Só Dalila não sabe se gosta ou odeia aquele programa. Gosta, sim, das músicas, mas a voz da locutora a perturba. Liga e desliga o rádio, como se sentisse atração e repulsa. O velho Soares já nem se irrita mais com este capricho da filha, limita-se a fazer um muchocho e a perguntar: “por que você não muda de estação?” Ela não sabe, nunca soube. É sempre assim, como se aquela voz lhe trouxesse um pressentimento. Bom?, ruim? Não sabe. Algo como um chamado.
Dalila despertou de um cochilo ao sentir que o caminhão saía, de repente, da estrada. Assustada, voou no volante e bateu no corpo inerte do pai. Estava morto o velho Soares.
À frente da frota, vão agora Dalila e seu filho de 5 anos, Aruan (registrado Aruan de Dalila), que em tupi significa mel. Inteligente, engraçado, meigo, Aruan é realmente mel. Tem com a mãe uma ligação semelhante a que Dalila teve com o velho Soares. Faz-se acompanhar de um papagaio, que só fala de inteligível “meu bem”.
Aruan é um apaixonado pelo rádio, especialmente pela locutora de voz acariciante. Briga com a mãe cada vez que ela tenta desligar o rádio na hora do programa “Com o Coração na Estrada”. Afirma conhecer a locutora e a descreve com as características da mãe.
Sempre que chegam a Belém, Dalila e Aruan vão a uma loja de chocolates. Numa das vezes, no momento em que compram chocolates, Dalila é atraída pelo olhar de uma mulher que está do outro lado da vitrine. Ao virar-se para pagar a conta, a mulher desaparece. Ela corre para a porta da loja, vê a mulher de costas, distanciando-se. Tenta segui-la, mas perde-a no meio dos transeuntes. De agora em diante, aquele rosto voltará à sua mente de maneira perturbadora.
Um acidente que danificou seriamente um caminhão e a ameaça de falência, levam a família Soares à decisão de vender a frota. Inconformada, Dalila resolve mudar-se para Belém. À tristeza da perda de sua frota mistura-se a excitação de uma esperança: descobrir aquela mulher. Porquê, para quê, ela não sabe. É como se fosse algo inevitável, coisa do destino, que não se fez esperar: ainda na viagem de Altamira para Belém, Aruan vê, numa revista, a reportagem sobre uma disc-jockey, que ele alegremente identifica como sendo “aquela locutora”. E assim, Dalila tem diante de si a foto da mulher que procura. Não havia dúvida, era ela, a locutora, que não era só uma locutora, mas uma famosa disc-jockey da capital. Suiá, chamava-se, casada com um dos donos da emissora, mãe de três filhos lindos, dizia a reportagem.