O deputado jaz no seu caixão mortuário, cercado de coroas e lágrimas dos familiares. (O deputado sentiu-se mal na Assembleia, quando, emocionado, dizia-se vítima de um complô perverso da esquerda. As ambulâncias não chegaram a tempo. Misteriosamente, pifaram a meio caminho, todas).
Amigos e correligionários vêm-lhe prestar a última homenagem. A cada cumprimento compungido, a viúva chora. Do burburinho no salão, de vez em quando sobressai-se um riso. Paira no ar um contentamento mal disfarçado. (O deputado estava sendo pressionado pela operação Lava-Rápido e diz-se que, se abrisse a boca, muitas reputações rolariam)
Súbito, cresce o burburinho. Lá fora, a turba se agita. Gritos e xingamentos invadem o salão, enquanto a polícia tenta conter os grupos dos sem (sem teto, sem terra, sem história, sem saúde, sem juízo, sem sem), que ameaçam o nobre recinto, atirando ovos e tomates, num destemperado desrespeito ao poder constituído.
Rodeado pelos seguranças, está entrando o Presidente da Casa e sua comitiva. Com suas roupas salpicadas de ingredientes culinários, os ilustres políticos mais parecem personagens saídos de uma comédia pastelão. Um cordão de puxa-sacos adianta-se na faxina aos ternos e gravatas aviltados.
A viúva recebe um buquê de rosas vermelhas. Numa cena comovente, beija cada rosa antes de colocá-la sobre o corpo inerte do amado. (Certa vez, o deputado a presenteou com uma chuva de rosas vermelhas, caídas de um helicóptero). O falecido parece sorrir. Assustada, ela cobre com um lenço aquele querido sorriso de descaramento.
Mas nem a dor da viúva consegue inibir a absurda alegria que, como erva daninha, alastra-se pelo ambiente.
De repente, ouve-se uma espécie de rugido vindo das entranhas do morto. Os familiares e um curioso que levantava o lenço de decoro da cara do parlamentar, recuam empanicados: “Oh!”. Um arrepio percorre os circunstantes: “Oooooooh!”.
O deputado levanta a cabeça, olha em torno, senta-se, retira os algodões das narinas, o lenço que lhe segura o queixo e sorri, traquinas, qual um menino que aprontou mais uma. Mas antes que o ex-falecido abandone o caixão, ouve-se um estrondo e um cogumelo de fumaça engole o salão, que se desmancha como que sugado pelas profundezas da terra.
“Povo implode deputado e seus cúmplices”, diz um locutor de TV.
Lá fora, soa a batucada dos sem, que, em profano delírio, canta: “não chore não, vovó, não chore não…”