No silêncio que faz a vida de cada um (que parece tão barulhenta…), no desencanto dos muitos desencontros pelos quais atravessamos, às vezes sentimos vontade de parar. Depois de procurar apoiar alguns jovens aqui de onde moro (Pirajussara city) e vê-los fracassar tantas vezes, pensei em parar. Parar para refletir porque, definitivamente, alguma coisa não esta dando certo. Talvez o método ou o aplicador. O Centro de Detenção Provisório de Itapecerica da Serra, o mais próximo aqui, tem uma grande percentagem da população oriunda aqui do bairro. Alguns dos jovens que se tornaram meus amigos, já saíram e voltaram, e eu ai no meio, de bobão.

Eu sei, quando era jovem não ouvia ninguém. Tirava os “aconselhadores” por “babacas”. Mas o que vivi não esta morto e enterrado. Na verdade nem mesmo acabou ainda. Não sei até quando serei o egresso das prisões. As sequelas físicas estão latejando em meu corpo como cerca viva. As mentais nem falo. Só eu sei o quanto tenho lutado para conviver com um mínimo de sanidade.

Faço tudo para que percebam. Para que saibam o quanto vai doer. Esforço-me para desromantizar o crime. Para demonstrar que não existe o glamour que lhe é apregoado. Tudo mentira. O que existe é muita dor e sofrimento reservado aos envolvidos. As principais vítimas são aqueles que os amam. Mães, esposas, filhos, esses vão penar qual fossem eles os culpados. O Código Penal determina que a pena não pode passar da pessoa do culpado. Mas como a mãe de um garoto de 18 anos preso, sabe-se lá como ou porque, vai viver tal desventura sem sofrer amargamente?

Percebo que por trás daqueles olhos redondos de curiosidade dos jovens, ventos endemoniados sacodem suas almas, quando me ouvem. Às vezes penso se não faço propaganda da prisão. Porque, depois de tantas torturas, abandonos, espancamentos, rebeliões, tiros (ainda trago balas no corpo), pressões, tensões e mais de três décadas nas piores masmorras do Estado, pareço inteiro, tranqüilo e bem. Além disso, ainda tenho vários livros publicados e a publicar; mantenho coluna numa das 10 melhores revistas do país há mais de 12 anos; faço palestras em Universidades, participo e realizo projetos sociais, presto consultorias, tenho peças teatrais, faço cinema, sou muito procurado para entrevistas e aplico minhas Oficinas de Leitura e Escrita nas prisões, bibliotecas, centros culturais e escolas.

Alguns jovens pensam que se eu consegui, eles também conseguirão, se necessário for. Não percebem que de fato não consegui. Não estou tão bem assim, mesmo fisicamente. Economicamente, estou ralando e meus passos são curtos; perdi muito tempo. Acho que o principal é que recordo cada vez que estive sob espancamento violento e o pavor de ser morto de tanto apanhar. Eu sabia que tinha que sair porque aqui fora era meu mundo, mas jamais tive a certeza, até o ultimo momento. Quando cheguei na Penitenciária do Estado, em abril de 1973, o primeiro pagamento que fiz foi de meu caixão. Era norma penitenciária.

Talvez a minha melhor imagem seria de um homem alquebrado, doente, esmagado pela culpa e com cara de grade. Daí eles veriam em mim o que eles jamais quereria vir a ser. De preferência que eu andasse mal arrumado. Roupa suja ou rasgada, bem fora de moda, cabeludo e barba por fazer. Não soubesse articular as palavras, nem expressar meu pensamento e só falasse na gíria. Meu rosto deveria ser estragado, cheio de picumãs e teias de aranhas. Meus olhos vermelhos e ameaçadores. A minha figura deveria infundir medo qual fosse granada preste a explodir. Será que isso convenceria os jovens que não vale a pena o chamado “caminho fácil”? Não sei se estou disposto a sacrificar a pouca qualidade de vida que conquisto a duríssimas penas, por algo tão duvidoso.

Talvez minha mensagem original seja mais interessante. A minha vida, a luta, o esforço, o sacrifício, o calar, o escutar e o aprendizado. A disposição permanente, o ânimo, a perseverança e a coragem de enfrentar minhas covardias de frente. São doze anos, nasci recente, mas ando de peito aberto e despreocupado pelas ruas de minha cidade. Devo gratidão às pessoas que acreditaram em mim. Sou-lhes grato pela chance de me construir como cidadão. Um cidadão que não tem o que temer da polícia ou quem quer que seja.

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Luiz Mendes

05/02/2016.