Wellington Soares
Blog Title

Paraíso do Tuiuti

Quando pensávamos que tudo estava perdido, no tocante aos protestos  políticos, eis que surge em plena Sapucaí, com enredo e desfile engajados, a Paraíso do Tuiuti trazendo um sopro de esperança ao povo brasileiro. Mais do que isto, libertando o grito de indignação dos que não aceitam ver nossas riquezas entregues aos gringos, de mão beijada e a preço de banana, nem os direitos históricos reduzidos aos tempos da escravidão. Tudo dito e mostrado, em cores e horário nobre, com muita irreverência, ironia e sarcasmo, apesar do silêncio constrangedor dos comentaristas da Globo. Por um décimo apenas, a escola de São Cristóvão, bairro do subúrbio carioca, não levou o título de campeã do Carnaval 2018, embora tenha ganho, disparado, no coração e na mente dos foliões democráticos do país inteiro.

Segundo Jack Vasconcelos, carnavalesco da Tuiuti, a arte tem por função despertar o pensamento e a visão crítica das pessoas. Além de fazer ecoar, sobretudo, as angústias da comunidade que representa. Daí a escolha de “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, como enredo da escola, tema geralmente incômodo às elites econômicas e políticas do país. Uma paráfrase inteligente de Navio Negreiro, canto abolicionista de Castro Alves, poeta baiano que já denunciava essa iniquidade no século XIX.  A inspiração teria nascido depois de ler A elite do atraso: da escravidão a lava jato, do sociólogo Jessé Souza, obra que desnuda o Brasil atual marcado por uma sociedade, ou parte dela, sem culpa nem remorso que humilha e mata os pobres. O refrão do samba enredo não deixa dúvidas: “Meu Deus! Meu Deus! / Se eu chorar, não leve a mal / Pela luz do candeeiro / Liberte o cativeiro social”.

Os foliões presentes na Sapucaí, bem como os que assistiam pela TV, foram ao delírio durante o desfile, aplaudindo de pé e entoando cada verso da Tuiuti, sentindo a alma lavada no grito de protesto e na lindeza das fantasias encarnadas pela escola de São Cristóvão. Num dos carros alegóricos, batizado de Neo Tumbeiro, que despertou maior atenção do público, aparecia o Vampirão neoliberalista com faixa presidencial, um dos cantos da boca ainda escorrendo sangue dos trabalhadores. Logo abaixo, vinham os Manifestoches vestidos de verde e amarelo, em camisas da seleção brasileira, quase todos perdidos com cartazes na mão e idiotizados pela grande mídia. Não faltaram bordoadas também à famigerada reforma trabalhista e aos patinhos amarelos da Fiesp, entidade interessada em chupar o sangue e o suor da classe laboral.

Mesmo sem ter havido a intenção, se é que não houve, estava presente no desfile da Paraíso do Tuiuti o espírito irreverente e polêmico de Oswald de Andrade, nosso modernista antropofágico, que afirmara certa vez, lá pelos idos de 1928, que “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil já havia descoberto a felicidade”. Significando dizer que, desde nossos ancestrais até hoje, o povo brasileiro não abre mão, nem que a vaca tussa, do direito em ser feliz, de ter uma vida digna e cidadã. Plantada em educação, saúde, emprego, segurança, comida na mesa, diversão e aposentadoria antes de bater as botas. Que não se deixa enganar facilmente, expressando sua rebeldia sempre que necessário, ainda mais quando o país e o mundo estão de butuca ligada em nossa festança máxima. Ou a alegria não é a prova dos nove?

O dia que eu fui embora

Há três meses peguei um voo para o outro lado do oceano com uma mala de 18kg, algum dinheiro e nenhuma certeza. Em duas semanas, larguei dois empregos, vendi carro, fiz duas viagens de 600 km e me despedi das pessoas queridas com um até logo. Em cada ida ao cartório nos últimos cinco minutos antes de fechar, cada providência trabalhista de última hora e em cada mínima resolução dessa viagem eu ouvia uma voz que dizia: “vem por aqui”.

É engraçado como, bem lá no fundo, eu só sabia. Há meses sonhei que me mudava para Lisboa: “olha mãe, é aqui”, dizia ao levá-la para conhecer o apartamento que eu moraria. Acordei e pensei: “what the fuck?”. Naquela noite, alguma coisa foi escrita no céu. Depois de morar em um hostel durante um mês e visitar pelo menos cinco quartos para alugar, eis que vim parar no mesmo quarto que aparecia no sonho – exatamente o mesmo. Não sem antes quase ir parar em outro e, ao partir para as combinações financeiras, a comunicação desandar repentinamente. Era essa voz me estapeando: “não é aqui que você vai ficar!”.

Você deve estar lendo isso e achando que sou louca ou esquizofrênica. Talvez, não garanto nada. Há alguns anos entrevistava uma coreógrafa que dizia: “tem que escutar o passarinho no ombro porque se você não tem esse pássaro que canta no seu ombro, você não tem intuição e, sem intuição, você não vai vencer na vida”.

Tenho escutado e sigo por aí me perdendo entre as ruas ladeira acima, trocando as linhas do metrô, fazendo um pedido no menu esperando por um bife com ovo frito e me aparece um fígado de porco com batata cozida. É como quando eu era criança e jogava videogame: às vezes ganhava, às vezes perdia e seguia fingindo que entendia as regras.

Aqui descobri que criança é “miúdo”; que “resultar”, na verdade significa “funcionar”; que a água não é gelada, é “fresca”; que durex não é fita adesiva, é camisinha; que “fixe” ou “giro” são os equivalentes para “legal” e “massa”; que cueca não é cueca, é calcinha e, que basicamente as expressões brasileiras com conotação sexual ou uso pejorativo são totalmente permitidas em contextos sociais (pica é injeção; ter gozo não é atingir o orgasmo, é sentir prazer ao executar alguma tarefa que pode inclusive ser acadêmica, pasme!).

É como quando você visita um parente ou amigo de que gosta muito: te servem água e sobremesa, mas você nunca pode abrir a geladeira sem permissão ou chegar sem telefonar. É no fim do dia ter um lugar para voltar, mas não se sentir completamente em casa. É nunca entender direito o que seus professores estão realmente pedindo. É sentir algum conforto com aquele feijão tropeiro com salsicha que você achou milagrosamente em um bar. É ser tratada muito bem, mas sempre precisar explicar as piadas que conta. E tá tudo bem.

É tempo de perdoar. Os outros e, sobretudo, a si mesmo. Se perdoar por não ver seu sobrinho crescer, se perdoar por não acompanhar a recuperação médica do seu pai, se perdoar por dar o melhor de si e não achar que é suficiente, se perdoar por ter magoado as pessoas que você ama. É aceitar que mesmo sem casa, você pode ser lar. É ser trem e se deixar descarrilhar. É ter medo de pular, mas se jogar e voar.

Agora um sonzinho bom.

 

Sedução

Como tudo começou, nem eu mesma sei. Foi num relance, fração de segundos, meus olhos seduzidos pelo sorriso dela. Um sorriso enigmático e provocador, expresso em plena sala de aula, de forma bem sutil, sutilíssima. Daqueles que nos amolecem todinha por dentro, sem escapatória. Ninguém percebeu, na turma, mas sabia que era pra mim. Essas coisas não precisam ser ditas, a gente sente de longe, e fica paralisada, esperando ter certeza. Pura ingenuidade, pois os sinais haviam sido dados. Voz mansa comigo. Alegria nos encontros.  Cumprimentos afetuosos. Atenção em meu aprendizado, sobretudo. Sem gosto pelos livros, tinha dificuldade em escrever. Depois do convite implícito, já feito algumas vezes, como recusar aulas de redação em seu apartamento? Tudo lá, acredite, transpirava poesia e envolvimento. Invés de regras, no primeiro dia, ouvi textos de Hilda Hilst e Adélia Prado. Maravilhada, deixei-me possuir tanto por belas palavras quanto por mãos tarimbadas na arte do amor. Dali em diante, um mundo novo se descortinou para mim, mais envolvente e prazeroso. A ponto de dizer hoje, ó bendita a que educa, em todos os sentidos, virgens na tessitura das letras e no gozo dos corpos, síntese divina de múltiplos orgasmos. Respondendo essa bendita, no meu caso, pelo singelo nome de Sandra, professora das mais competentes em sua área, a desafiadora língua portuguesa. De seus apetitosos lábios, nunca esquecidos, ouço ainda Porque há desejo em mim, da poeta paulista, sem antes ficar molhadinha.

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Antes, o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradura.

Visgo e suor, pois nunca se faziam.

Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo. E que descanso me dás

Depois das lidas. Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada, fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

Embora difícil de compreensão, achava tudo muito bonito, inda mais exercitado na prática, por nós duas, ela sussurrando no meu ouvido, com voz sensual, cada verso do poema, arrepiando até a alma, corpo inteiro a ponto de pegar fogo. Da outra, a mineira, de Divinópolis, guardo na memória, de cor e salteado, o texto Sedução, declamado por Sandra abraçadinha a mim, coxas e braços entrelaçados uns nos outros:

A poesia me pega com sua roda dentada

me força a escutar imóvel

o seu discurso esdrúxulo.

Me abraça detrás do muro, levanta

a saia pra eu ver, amorosa e doida.

Acontece a má coisa, eu lhe digo,

também sou filho de Deus,

me deixa desesperar.

Ela responde passando

a língua quente em meu pescoço,

fala pau pra me acalmar,

fala pedra, geometria,

se descuida e fica meiga,

aproveito pra me safar.

Eu corro ela corre mais,

eu grito ela grita mais,

sete demônios mais forte.

Me pega a ponta do pé

e vem até na cabeça,

fazendo sulcos profundos.

É de ferro a roda dentada dela.

Foram muitas descobertas com Sandra, entre outras, a percepção da magia existencial e o saudável hábito da leitura. Sem falar também, não posso esquecer, do desabrochar de uma mulher habilidosa no manejo das palavras e carícias. Pena ter durado tão pouco, coisa de meses, até o ingresso no ensino superior, graças à nota máxima na redação

Battle of the sexes

Eu estou completamente envolvida com esse filme. A metáfora do jogo de tênis como um simulacro da nossa disputa de poder diária, por si só, já é perfeita – nem precisava ser história real, mas é, e isso deixa tudo ainda mais empolgante. A coisa chega ao ápice quando lança assim na cara o empoderamento feminino, em toda a sua dimensão: profissional, amorosa, sexual. Eu sei que Billie Jean King ainda tá bem viva, então fica expresso aqui publicamente o meu desejo de abraça-la por um pequeno momento.

 

Tenho pensado muito na vida como os ringues diários que enfrentamos. Nós, mulheres. Não só por ter visto esse filme, mas por todos os 7×1 do dia a dia. Lendo o livro da Rebecca Solnit (A mãe de todas as perguntas), me convenço de que o segredo está, realmente em dois pontos: empatia e resiliência, embora a autora não use exatamente essa palavra. Empatia o trabalho de contar histórias me ensinou ser condição necessária. Resiliência se resume aqui na capacidade de entender que nem todas as perguntas precisam necessariamente de uma resposta. No estágio seguinte a gente aprenderia a responder perguntas com outras perguntas abertas.

Por outro lado tem a terapia me dizendo a todo instante que preciso me posicionar, preciso parar de usar minha própria sobriedade contra mim mesma – na maioria das vezes eu não me importo com a pequenez das pessoas e até entendo que suas ações e pensamentos têm relação maior com o que elas projetam para si e eu não posso e nem devo tentar dar conta disso. Mas, de alguma forma, me incomoda ser avaliada o tempo todo por uma subjetividade de critérios duvidosos. Esse poder pequeno, que deduzem me interessar, está na verdade a léguas de distância do que realmente pretendo, mas não sei mais de que forma comunicar isso nem o que me acrescentaria.

Agora entendo o que a Danny Barradas me disse, numa entrevista maravilhosa, sobre a sua condição de trans: “Nós, que pertencemos a grupos estigmatizados, precisamos ser o melhor em tudo o que fazemos”. Na hora achei a afirmação problemática por poder ser interpretada como reforço de um preconceito, mas agora, conectando tudo, entendo o que ela quis dizer. Não basta sermos apenas boas. Temos que ser excelentes. Não basta sermos inteligentes – temos que ser bonitas também. Não basta sermos profissionais se abrimos mão da maternidade. Quer dizer, nem o direito ao próprio corpo, aquilo que tenho de mais meu no mundo, me é dado – o papel de elevador da humanidade me foi imposto desde a hora em que nasci, do ventre da minha mãe, que, por acaso, também não pôde ser só dela.

As tenistas mulheres do filme, lá nos anos 70, não podiam se dar ao luxo de apenas jogar: para romper com a Associação de Tênis dos Estados Unidos, que pagava aos homens 9x o valor do cachê feminino, elas tiveram que montar a própria liga, vender ingressos, buscar patrocínio, porque somente ser boa no que faziam não era suficiente.

Me sinto cansada como a Billie Jean King na quadra – a dor de não poder ser quem se é, ser a todo instante subestimada e ter que carregar o receio de ser punida por uma sociedade opressora, de algum modo, simplesmente por deixar escapar qualquer tipo de emoção. Tenho vontade de gritar que absolutamente tudo o que um homem faz, nós conseguimos fazer mais, de forma melhor, gentil e mais organizada, mesmo sangrando (se você tiver bom senso vai entender que não se trata aqui de generalização). Vai chegar o dia em que todas nós, mulheres, vamos poder erguer a raquete sem sentir todo o peso da desigualdade – eu acredito.

 

 

Sem malandragem, não há salvação

Por Samária Andrade

Ouço o barulho na porta e vejo o rapaz muito magro que chega falando, como se a conversa entre nós já existisse. Uma fala mansa, quase tímida, ainda que decidida, aconselha: “As palavras não são inúteis. Tem que bater na máquina como se fosse com a ponta da cabeça, sabe?” Ignorando meu estado entre a surpresa e a letargia, ele segue: “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”. Quase num suspiro, conclui com uma voz que vai baixando: “Poetar é simples, difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa”.

Acende um cigarro e sopra a fumaça, acompanhando o desenho no ar. Depois pergunta se vi a coluna de música que ele escrevia no Jornal dos Sports – a pergunta era retórica – e passa a conjecturar sobre o que chama as “complicações do oficio de colunista”: “ter de enfrentar a cara feia do responsável pela divulgação da gravadora que nos manda os discos esperando que elogiemos a todos, incondicionalmente”. Está quase zangado: “Não será possível imaginar o que faríamos da reputação que tentamos conseguir, depois de premiarmos com três ricas estrelinhas o último lançamento – digamos – de Carlos Alberto, que canta chorando alguns boleros horríveis… impossível!”. Referia-se ao cantor do casting da CBS que, nos anos 60, ficou conhecido como “O rei do bolero”. Penso que até hoje há problemas idênticos. Me arrisco a balançar a cabeça afirmativamente, enquanto ele já completa: “Mas nem por isso ninguém está autorizado a supor que faremos desta coluna o cantinho da pichação, hein?”.

Eu puxo um bloco de anotação e caneta para, quem sabe, registrar algo. Ele percebe: “Documente isso, amizade. Não estamos do lado de fora, e do lado de fora é a mesma transa: underground, subterrânea etc”.  O rapaz se aproxima e joga um pequeno pacote sobre a mesa. É o jornal Gramma. Bate com a ponta dos dedos sobre o jornal mimeografado e diz: “isso aqui é uma espécie de milagre – logo no Piauí, numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas das famílias”. Faz novo suspiro: “Tristeresina, eu volto enquanto saio”.

No instante seguinte, volta a buscar ânimo e fala como se convencesse a si próprio: “Não está na hora de transar derrotas. Eu digo na porra da Geleia: ocupar espaço, amigo. Estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no Brasil e que – já que não deixam- o jeito é tentar. Eu acredito firme que sem malandragem, não há salvação”. Ele sorri com o canto do lábio: “Os ingênuos abrem a boca e se declaram movimentados. Mas quem se movimenta no vácuo?”.

Pergunto como ele acompanha o que anda acontecendo. Ele responde sarcástico: “Eu ando por debaixo da avenida, muito antes do metrô”. Se encaminha então para a porta enquanto diz: “É pelas brechas: é por elas, amigo”.

Com medo de perder a oportunidade, me apresso e sugiro que façamos uma entrevista. Ele se nega e argumenta: “a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato com meus pares de hospício. Posso gritar ‘meu nome é Torquato Neto’, do outro lado uma voz sem dentes dirá ‘meu nome é Vitalino’”. Não insisto. Não há como não reconhecer coerência.

Antes de sair, ele enrijece o corpo e imposta a voz: “Eu sou como eu sou...”. Me olha, convidando a participar. Eu continuo, compenetrada: “Pronome pessoal intransferível…”. Ele então gargalha, como se eu houvesse caído na armadilha: “Vocês não se cansam de repetir esse poema? Eu escrevi tanta coisa”. Faz um gesto gentil de despedida e pede que eu não esqueça o principal: “Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção”.

A porta bate com força e eu já não sei se dormia ou se posso acordar. Sobre a mesa, um bilhete em letras minúsculas: “não se aborreça por tanto silêncio daqui. eu te amo”.

* Todos os trechos em italic são de autoria de Torquato Neto, pertencendo a colunas de jornal, cartas ou diários.