Por Samária Andrade

Ouço o barulho na porta e vejo o rapaz muito magro que chega falando, como se a conversa entre nós já existisse. Uma fala mansa, quase tímida, ainda que decidida, aconselha: “As palavras não são inúteis. Tem que bater na máquina como se fosse com a ponta da cabeça, sabe?” Ignorando meu estado entre a surpresa e a letargia, ele segue: “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”. Quase num suspiro, conclui com uma voz que vai baixando: “Poetar é simples, difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa”.

Acende um cigarro e sopra a fumaça, acompanhando o desenho no ar. Depois pergunta se vi a coluna de música que ele escrevia no Jornal dos Sports – a pergunta era retórica – e passa a conjecturar sobre o que chama as “complicações do oficio de colunista”: “ter de enfrentar a cara feia do responsável pela divulgação da gravadora que nos manda os discos esperando que elogiemos a todos, incondicionalmente”. Está quase zangado: “Não será possível imaginar o que faríamos da reputação que tentamos conseguir, depois de premiarmos com três ricas estrelinhas o último lançamento – digamos – de Carlos Alberto, que canta chorando alguns boleros horríveis… impossível!”. Referia-se ao cantor do casting da CBS que, nos anos 60, ficou conhecido como “O rei do bolero”. Penso que até hoje há problemas idênticos. Me arrisco a balançar a cabeça afirmativamente, enquanto ele já completa: “Mas nem por isso ninguém está autorizado a supor que faremos desta coluna o cantinho da pichação, hein?”.

Eu puxo um bloco de anotação e caneta para, quem sabe, registrar algo. Ele percebe: “Documente isso, amizade. Não estamos do lado de fora, e do lado de fora é a mesma transa: underground, subterrânea etc”.  O rapaz se aproxima e joga um pequeno pacote sobre a mesa. É o jornal Gramma. Bate com a ponta dos dedos sobre o jornal mimeografado e diz: “isso aqui é uma espécie de milagre – logo no Piauí, numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas das famílias”. Faz novo suspiro: “Tristeresina, eu volto enquanto saio”.

No instante seguinte, volta a buscar ânimo e fala como se convencesse a si próprio: “Não está na hora de transar derrotas. Eu digo na porra da Geleia: ocupar espaço, amigo. Estou sabendo, como você, que não está podendo haver jornalismo no Brasil e que – já que não deixam- o jeito é tentar. Eu acredito firme que sem malandragem, não há salvação”. Ele sorri com o canto do lábio: “Os ingênuos abrem a boca e se declaram movimentados. Mas quem se movimenta no vácuo?”.

Pergunto como ele acompanha o que anda acontecendo. Ele responde sarcástico: “Eu ando por debaixo da avenida, muito antes do metrô”. Se encaminha então para a porta enquanto diz: “É pelas brechas: é por elas, amigo”.

Com medo de perder a oportunidade, me apresso e sugiro que façamos uma entrevista. Ele se nega e argumenta: “a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato com meus pares de hospício. Posso gritar ‘meu nome é Torquato Neto’, do outro lado uma voz sem dentes dirá ‘meu nome é Vitalino’”. Não insisto. Não há como não reconhecer coerência.

Antes de sair, ele enrijece o corpo e imposta a voz: “Eu sou como eu sou...”. Me olha, convidando a participar. Eu continuo, compenetrada: “Pronome pessoal intransferível…”. Ele então gargalha, como se eu houvesse caído na armadilha: “Vocês não se cansam de repetir esse poema? Eu escrevi tanta coisa”. Faz um gesto gentil de despedida e pede que eu não esqueça o principal: “Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção”.

A porta bate com força e eu já não sei se dormia ou se posso acordar. Sobre a mesa, um bilhete em letras minúsculas: “não se aborreça por tanto silêncio daqui. eu te amo”.

* Todos os trechos em italic são de autoria de Torquato Neto, pertencendo a colunas de jornal, cartas ou diários.