Wellington Soares
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Garotão de 30 anos

Decisão sofrida, mas necessária, pensou o casal norte-americano:  Christina e Mark Rotondo. Expulsar um filho de casa, de 30 anos, não é tarefa das mais fáceis. Dói à beça. Infelizmente, Michael recusava sair espontaneamente. A quem recorrer, então, nesse caso?

– Só nos resta a Justiça agora.
– Não há outra saída, marido?
– Pedir, nós já pedimos muito.

– Tenho receio da repercussão na imprensa.
– Como assim?
– Falem que somos uns pais desalmados.
– Que o adotem, então.
– Talvez uma boa conversa resolva.
– Duvido, pois nem falar com a gente ele fala.
– Pura verdade.
– Vive trancado no quarto sem ligar a mínima pra nós.
– E uma carta?
– Acho uma ideia melhor.
– Colocamos por debaixo da porta.
– Não respondendo, pior pra ele.
– Explica melhor, marido.
– Teremos uma prova contra o malandro.

Como previsto, o filho ignorou a carta dos pais solicitando que ele caísse fora. Não desistindo, os velhos enviaram outra, e mais outra, e mais outra, num total de cinco, e nada do pimpolho responder. “Após discutir o assunto com sua mãe, decidimos que você deve deixa essa casa imediatamente”.

– Já consultei um advogado, mulher.
– E aí?
– Recomendou um processo no couro dele.
– Se é assim…
– Nem ajudar nas tarefas domésticas, Michael ajuda.
– Um auxílio financeiro, quem sabe?
– Desde que não seja muito…
– Uns quatro mil, pensei.
– Tudo isto?
– Cobrir despesas com aluguel e alimentação.
– Depois não sabe quem estraga os filhos…
– Até ele conseguir um emprego.

A decepção dos pais, desta vez, foi ainda maior. Michael não só torrou a grana como permaneceu em casa, curtindo a vida que pediu a Deus. No dia 22 de maio, o juiz do caso, Donald Greenwod, da Suprema Corte de Onondaga, Estado de Nova York, deu um prazo ao garotão para arrumar sua trouxa e seguir o próprio caminho.

– Preciso de seis meses, pelo menos, senhor juiz.
– Já não basta o tempão que passou lá.
– Não é nada fácil deixar a casa dos pais.
– Sob que argumento faz tal solicitação?
– Não fui notificado com antecedência suficiente.
– Isso é indignante!
– Indignante é o pedido de despejo feito por eles.
– Seus pais agora são os culpados?
– Não vejo por que não podem esperar um pouco mais.
– Um prazo de seis meses?
– Razoável pra alguém que tem dependido de outras pessoas.
– Quem mandou gastar o dinheiro recebido?
– Vacilo meu, senhor juiz.
– Que diz sobre as tarefas domésticas?
– Nunca ajudei, realmente.
– Mantinha diálogo com os pais?
– Não.
– Como era sua relação com eles?
– Tensa, sobretudo nos últimos anos.
– Viu como minha sentença é a melhor solução?

Mesmo recorrendo, Michael perdeu e foi obrigado a deixar o conforto do “ninho”. Antes de partir quis pegar os Legos do filho, na garagem da casa, mas o pai avisou que ele próprio buscaria o brinquedo.

Encrenca-dança-pensamento

Por Rafael Franco

 

À primeira vista, o “The Trouble Maker Series” nos leva a tantos lugares que é difícil falar algo do que pensei quatro semanas depois. Mas teoricamente poderia pensar que tal arte contemporânea se enquadra na função de crescimento tratado por Botton e Armstrong em Arte como terapia (2014), onde a afetação primeira é de estranhamento – que pode ser visto negativamente ou visto simplesmente como algo novo, uma nova experiência que pode levar a novos lugares de pensamentos e sensações.

A primeira fase de reflexão é “o buraco”. E hoje, o pensamento imediato quando me vem o termo é o “cu”, e a motivação disso é uma piada imediata do inconsciente que talvez Freud explique: penso eu que o cu aqui aparece na função de protesto da arte (que é basicamente, a função de crescimento de Botton e Armstrong), função essa usada cada vez mais raramente, enquanto que o “cu” é um tema cada vez mais abrangente (cuelindo.com.br). Penso também que, no Brasil, por ser a parte mais estranha ao corpo, acaba virando um tabu – que é onde a arte deve ir. “Cu” também vem do nu que é marca da arte do Marcelo.

Mas não é desse buraco que trata Deleuze especificamente, é um buraco a nível mais amplo – sobre o que não se visualiza com facilidade; é o novo que está ainda invisível… São as teorias não teorizadas; é sobre os lugares onde não se chegou; sobre os movimentos nunca efetuados; é a energia escura, a antimatéria; são os buracos de possibilidades do queijo suíço; é sobre as possibilidades de vida ainda não preenchidas.

As cenas que me captaram tinham essa marca de afetação forte e também a originalidade: um brasileiro homossexual se expressando/dançando/interpretando ao som da cena da morte da mãe de Bambi, com dublagem no português de Portugal, que soa engraçado aos brasileiros; e justamente por causa da “graça” dos “viados” – piada tão bem comum a muitos brasileiros –, essa cena particularmente me marcou pela tensão social e abandono que vivem os homossexuais… Um humor negro que varia no Brasil entre homofobia, por vezes homicida, e chacotas das mais variadas, desde os pequenos grupos de cultura hétero-normativa à grande mídia televisiva – a homossexualidade como piada, o “cu” como algo “engraçado”.

Outra cena de força, um branco europeu interpretando o famoso discurso de Martin Luther King “I Have a Dream”… E de uma outra cena ligada a esta última: Marcelo dançando “eu sou terrível”, e daqui me surgiu o porquê do título do espetáculo – eis “o encrenqueiro”!

Saí do primeiro dia pensando em todas as possibilidades de vida que ainda não foram experimentadas, em todas as relações sociais não explicadas e, principalmente, nos lugares em que a filosofia não chega, mas a arte sim. Na contemporaneidade a arte surge como que abrindo o caminho para filosofia (diz ela: – venham por aqui).

No último dia de espetáculo, a filosofia tendo seu lugar definido, veio a pergunta sobre o lugar da dança… Primeiro pensamento é a necessidade de movimento embutida na alma humana – é essa necessidade que faz do Brasil um país tão aprazível, e da Anita um ídolo, levando a outra função da arte que Botton e Armstrong define por esperança: a busca de uma alegria de viver. O movimento me veio como um estado de mutação constante do corpo que leva a um estado de mutação também da alma… Entre as danças da Anita, o balé clássico e o “The Trouble Maker”, este último surge como a dança mais próxima da filosofia – “The Trouble Maker” é um espetáculo de dança-exercício de pensamento.

Pensamentos sobre “Trouble Maker Series Teresina”, no primeiro e último dias de quatro compartilhamentos públicos no Campo. Coreografia, filosofia e a invenção da maldade na mesma mesa, por Marcelo Evelin e Jonas Schnor.

 

1968 – Uma geração contra a ditadura

O título acima é o nome do livro de Antônio José Medeiros, sociólogo e fundador do PT no Piauí. Há 46 anos, ele e outros companheiros de geração, todos jovens e idealistas, resolveram quixotescamente enfrentar o regime militar imposto ao Brasil em 1964. Como estudante de Filosofia na época, não podia aceitar a supressão da liberdade no cotidiano do país, oxigênio imprescindível tanto na vida das pessoas como na sobrevivência de um estado democrático de direito. Essa luta resultou em sua prisão, quatro vezes ao todo, e numa perseguição implacável contra ele, a ponto de ficar proibido de assumir o cargo de professor na Ufpi, mesmo tendo sido aprovado em concurso.  O livro não é, como destaca o autor, uma análise histórico-sociológica daquele contexto, mas um depoimento sincero – alicerçado na memória –  de alguém que ousou desafiar o autoritarismo.

O relato não começa pelo embate político em si, nos corredores da antiga Fafi, mas pelo resgate das relações familiares em União. Filho de família tradicional do município, os Castelo Branco, desde cedo Antônio José conviveu com disputas eleitorais e lutas pelo poder bastante acirradas, a velha briga entre UDN e PTB. Embora seu pai não tenha exercido mandato eletivo, seu Benedito Medeiros, popularmente conhecido como “Pindunga”, liderava um bom número de eleitores junto aos trabalhadores pobres da cidade. Nascido à fórceps, de tão grande que era, o pagamento do parto foi quitado por 100 votos, moeda já valiosa naquela época. Ao ser eleito deputado estadual em 2002, ouviu da mãe, Maria Castelo Branco, a Bibi, algo que o impressionou muito: “Eu sabia que tu ias ser político, pois tu já nasceste fazendo política”.

Essa militância política e partidária não teve origem, segundo o autor, no seio da família Medeiros, porém como “filho da igreja”, quando seminarista e admirador do papa João XXIII, que pregava a valorização humana, o engajamento dos cristãos em favor dos pobres. Daí o compromisso surgiu, não parou mais. Inicialmente, distribuindo panfletos contra a ditadura, ainda estudante do Colégio Diocesano. Depois, em 1968, participando do Congresso proibido da UNE, em Ibiúna, interior de São Paulo, como representante da Faculdade Católica de Filosofia. As sucessivas prisões ocorreram a partir desse instante, todas de forma arbitrária e injusta, até porque Antônio José nunca fez parte de organização clandestina de esquerda nem enveredou pela luta armada, como optaram alguns colegas de utopia socialista.

O lançamento do livro ocorreu em 2014, no Centro Artesanal Mestre Dezinho, outrora Quartel da Polícia Militar, onde ele e mais três amigos ficaram presos – Samuel Filho, Benoni Alencar e Geraldo Borges, que deu um depoimento emocionado aos que foram prestigiar o evento. Relembrei desse fato porque na quinta-feira passada, no Rei do Mixto, familiares, amigos e admiradores compareceram para celebrar seus 68 anos bem vividos, ou 6.8 turbinados, como ele próprio faz questão de enfatizar. Uma noite e tanto, com Antônio José inspiradíssimo, poético e filosófico, entrelaçando Montaigne, Cícero, Miguel de Cervantes, Raul Seixas, Chico Buarque e o saudoso Gonzaguinha. Bom tê-lo de volta à militância política, renovado no espírito combativo que o levou ao Colégio Sion, na grande São Paulo, para criar o PT em 1980.  E o mais instigante de tudo,  grávido de novas utopias e feliz no amor.

Dona Raimunda

Ter mãe com 93 anos é dádiva das grandes, benção mais que divina. No fundo, privilégio de poucos, mesmo tendo aumentado a expectativa de vida da mulher brasileira. Hoje beirando os 79 anos de idade, segundo dados do IBGE. Os cuidados com a saúde e a prática de exercícios, além dos avanços na medicina, têm levado a esse resultado fantástico – de se viver mais e com melhor qualidade de vida. Minha mãe, dona Raimunda, que em setembro completa 94 anos, exemplifica tudo isso. E mais extraordinário ainda: lúcida, disposta e apaixonada pela vida. A que ela chama, metaforicamente, de o “grande espetáculo”. Daí valorizar tanto os eventos culturais. No sábado passado, véspera do Dia das Mães, fez questão de marcar presença em shows, numa noitada só, de duas grandes divas da nossa MPB: Zizi Possi, no Theatro 4 de Setembro,  e Tânia Alves, no Clube dos Diários. “Por essas e outras, filho, viver ganha sentido.”

Sua vida rende um livro caso um dia resolva escrevê-lo, dado as histórias e os dramas que a permeiam. Menina do interior, município de São Pedro do Piauí, casa-se adolescente ainda, com Tomé Carlos Soares, resultando nove filhos da união, fora dois que não sobreviveram. Visionária, convence o marido a vir pra Teresina, anos 1950, onde a filharada podia continuar os estudos e, Deus querendo, chegar ao ensino superior, tornando-se “doutores”.  Logo começou a trabalhar para ajudar no sustento da família, ora na função de enfermeira em hospitais e consultórios da capital, ora abrindo uma loja de confecção feminina no centro da cidade. Destemida, partia ao Sul Maravilha, em ônibus precários e viagens longas, a fim de trazer as últimas novidades, em termos de moda, à clientela que aguardava ansiosa. O cansaço e os pés inchados dessas andanças nunca levaram Dona Raimunda, conhecida também como Mundica, a desistir do sonho de um futuro melhor para os entes queridos.

Apesar da saudade que sentiria, não se opôs que quatro filhos partissem em busca de novos horizontes em outros estados, como na época era comum entre muitas famílias nordestinas. Dois foram para o Rio de Janeiro, Raimundo José e Francisco Eduardo, e dois pegaram o caminho de São Paulo, Tomé Filho e Antônio Neto. No imaginário deles, como dos nossos pais também, essa migração seria temporária, coisa de poucos anos, tempo suficiente para juntarem uma grana e, com a experiência adquirida lá, retornarem à terrinha, sempre querida e idolatrada, a fim de montar seu próprio negócio. Enquanto isso, dona Raimundo e Seu Tomé, cuidavam do restante da prole. Mesmo as coisas não tendo saído como planejado, os “velhos” trataram de tocar a vida em frente. Dos que ficaram, três abraçaram o bendito magistério – Maria da Conceição, Rita Maria e este cronista que vos escreve às terças-feiras –, onde realizaram-se existencial e profissionalmente em sala de aula.

O envolvimento de um dos filhos com droga, a quem amava em demasia, é das tristezas que marcam seu alegre semblante. Talvez por sentir-se impotente, apesar de todos os esforços feitos, diante do encantamento do Wilson Fernando ainda tão jovem. Apesar disso e do desmantelo do mundo, segundo costuma dizer, preserva uma alegria inata, renovada com a chegada dos netos e dos bisnetos. Mesmo vivendo hoje na casa dos filhos, não abre mão dos afazeres domésticos, nos quais encontra prazer e sentido na vida, a exemplo da comidinha caseira (galinha caipira ao molho) e dos bolos deliciosos (rosca, puba e macaxeira). Sem falar também das aulas de dança, duas vezes por semana, no Sesc Ilhotas, que frequenta religiosamente. Dirigir seu próprio carro, que fez até há poucos anos, é desejo bastante recorrente. Difícil não amá-la por essas e outras qualidades. A música de Zeca Veloso encarna, como nenhuma outra, tudo que gostaríamos de expressar no último dia 13 do presente mês: “Todo homem precisa de uma mãe”.

Sobre dança e gravidez – para quem diz que anjos não dançam!

Por José Vanderlei Carneiro

Escrevo como “…malhas para captar o incognoscível”, como diz o poeta da terceira margem do rio. Ideias sem direção, objetos soltos, uma quase matéria, uma quase não escrita, algum resto espalhado no corpo antes do pensamento – antes de tudo, como tudo é depois do pensar. Uma filosofia que surge do imperceptível, da ágape falível, do sêmen fluido e móvel. Quando não existe mais nem o brilho do alto, nem a lei do coração; quando não existe nem fora nem dentro, somente espanto – surge daí a possibilidade da caça e do delírio, provocando alguma coisa de invenção como dança e gravidez. Assim, como diria o velho Zaratustra do filósofo: Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar”.

Já ouvimos falar da velha ou do jovem que arranca o filósofo do conforto da casa e ele passa a andar como se voasse ao céu, sempre de olhar fixo para o alto, até tomar um tombo e cair no buraco. Tales de Mileto despenca seu corpo ao desequilíbrio – corpo rígido se torna corpo caído, quebrado, contorcido, tremido, puro êxtase. Na filosofia, como no texto sagrado, corpo caído é solicitude que se curva a si mesmo e ao outro. É o trágico da queda que produz no corpo efeitos de ternura e de dor. Eles se dobram num movimento desordenado de gozo e espanto: eis uma filosofia sem fundo como fundamento! Dos buracos do pensamento, dos poros cheios e úmidos de imaginação, dos objetos no lugar que encontram, dos sons desconcertantes nos olhares embriagados, provocando o universo a dançar. Desconstrução e magia – salta dos confins do mundo: Salomão do texto bíblico; Terpsícora, a nona filha de Zeus; Hadra, com o som dos tambores e palmas; Shiva Natarava, uma mistura de criação e destruição; e o Encrenqueiro, o inventor de maldades… para quem diz que anjos não dançam!

Essa vivência rompe com as lógicas, as morais e os conceitos. Os anjos dançam e engravidam, pois essa é sua função primordial. Conforme diz o poeta, foi o Anjo que engravidou uma virgem pela palavra mediada pelo sonho. Os anjos engravidantes dançam com os sonhos das pessoas, produzem utopias de liberdade, desejam a traição de toda ordem, dão coragem aos corpos enfraquecidos a lançar-se no palco da vida! Tudo é exercício de criação de significantes, de invenção do desconhecido, de brincar, de pular, de gritar, de respirar e inspirar, de silenciar sobre seu corpo próprio. Não é necessário adereços, enfeites e badulaques; somente o movimento livre e dissimétrico engravidam as pessoas de sonhos. E é exatamente a experiência da gravidez, anterior ao parto do filósofo, que lança/dança o corpo para a mudança. Salta ao pensamento filosófico a rebeldia e a transformação dos objetos do mundo.

Não existe cortina de fumaça, mesmo que tenha fumaça e cortina, na compreensão de dança e gravidez que estamos experimentando. Dança aqui não é produto, encomenda ou arranjo; não tem ensaio, controle ou farda; não é instrumento de algum aparelho de manipulação, doutrina ou ensinamento; estamos escrevendo sobre vivências do espírito; expressão da imaginação, feitiço da percepção. Gravidez aqui não é ato de alienação, apatia ou preguiça mental; não é espera escatológica, direcionamento religioso ou estupidez; não é inconsequência de consciência, imaginação idílica. Gravidez é metáfora de transformação profunda, sonho de coisa nova, expressão de grandeza da alma.

É sobre isso que o processo de criação “The Trouble Maker Series” tem a ver. Um diálogo entre filosofia e sua outra expressão de criação – a dança ou uma conversa entre a dança e sua outra expressão de reflexão – a filosofia. Um pensar radical, no qual o fundamento da raiz não tem fundo, é puro rizoma, dançando sobre as águas, como fios descontínuos, intermitentes e desconexos. Uma provocação metafórica sobre imaginação e desejo; movimento e sonho; criação e sentido. Os anjos também dançam, senhores!