Por Rafael Franco

 

À primeira vista, o “The Trouble Maker Series” nos leva a tantos lugares que é difícil falar algo do que pensei quatro semanas depois. Mas teoricamente poderia pensar que tal arte contemporânea se enquadra na função de crescimento tratado por Botton e Armstrong em Arte como terapia (2014), onde a afetação primeira é de estranhamento – que pode ser visto negativamente ou visto simplesmente como algo novo, uma nova experiência que pode levar a novos lugares de pensamentos e sensações.

A primeira fase de reflexão é “o buraco”. E hoje, o pensamento imediato quando me vem o termo é o “cu”, e a motivação disso é uma piada imediata do inconsciente que talvez Freud explique: penso eu que o cu aqui aparece na função de protesto da arte (que é basicamente, a função de crescimento de Botton e Armstrong), função essa usada cada vez mais raramente, enquanto que o “cu” é um tema cada vez mais abrangente (cuelindo.com.br). Penso também que, no Brasil, por ser a parte mais estranha ao corpo, acaba virando um tabu – que é onde a arte deve ir. “Cu” também vem do nu que é marca da arte do Marcelo.

Mas não é desse buraco que trata Deleuze especificamente, é um buraco a nível mais amplo – sobre o que não se visualiza com facilidade; é o novo que está ainda invisível… São as teorias não teorizadas; é sobre os lugares onde não se chegou; sobre os movimentos nunca efetuados; é a energia escura, a antimatéria; são os buracos de possibilidades do queijo suíço; é sobre as possibilidades de vida ainda não preenchidas.

As cenas que me captaram tinham essa marca de afetação forte e também a originalidade: um brasileiro homossexual se expressando/dançando/interpretando ao som da cena da morte da mãe de Bambi, com dublagem no português de Portugal, que soa engraçado aos brasileiros; e justamente por causa da “graça” dos “viados” – piada tão bem comum a muitos brasileiros –, essa cena particularmente me marcou pela tensão social e abandono que vivem os homossexuais… Um humor negro que varia no Brasil entre homofobia, por vezes homicida, e chacotas das mais variadas, desde os pequenos grupos de cultura hétero-normativa à grande mídia televisiva – a homossexualidade como piada, o “cu” como algo “engraçado”.

Outra cena de força, um branco europeu interpretando o famoso discurso de Martin Luther King “I Have a Dream”… E de uma outra cena ligada a esta última: Marcelo dançando “eu sou terrível”, e daqui me surgiu o porquê do título do espetáculo – eis “o encrenqueiro”!

Saí do primeiro dia pensando em todas as possibilidades de vida que ainda não foram experimentadas, em todas as relações sociais não explicadas e, principalmente, nos lugares em que a filosofia não chega, mas a arte sim. Na contemporaneidade a arte surge como que abrindo o caminho para filosofia (diz ela: – venham por aqui).

No último dia de espetáculo, a filosofia tendo seu lugar definido, veio a pergunta sobre o lugar da dança… Primeiro pensamento é a necessidade de movimento embutida na alma humana – é essa necessidade que faz do Brasil um país tão aprazível, e da Anita um ídolo, levando a outra função da arte que Botton e Armstrong define por esperança: a busca de uma alegria de viver. O movimento me veio como um estado de mutação constante do corpo que leva a um estado de mutação também da alma… Entre as danças da Anita, o balé clássico e o “The Trouble Maker”, este último surge como a dança mais próxima da filosofia – “The Trouble Maker” é um espetáculo de dança-exercício de pensamento.

Pensamentos sobre “Trouble Maker Series Teresina”, no primeiro e último dias de quatro compartilhamentos públicos no Campo. Coreografia, filosofia e a invenção da maldade na mesma mesa, por Marcelo Evelin e Jonas Schnor.