Por José Vanderlei Carneiro
Escrevo como “…malhas para captar o incognoscível”, como diz o poeta da terceira margem do rio. Ideias sem direção, objetos soltos, uma quase matéria, uma quase não escrita, algum resto espalhado no corpo antes do pensamento – antes de tudo, como tudo é depois do pensar. Uma filosofia que surge do imperceptível, da ágape falível, do sêmen fluido e móvel. Quando não existe mais nem o brilho do alto, nem a lei do coração; quando não existe nem fora nem dentro, somente espanto – surge daí a possibilidade da caça e do delírio, provocando alguma coisa de invenção como dança e gravidez. Assim, como diria o velho Zaratustra do filósofo: “Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar”.
Já ouvimos falar da velha ou do jovem que arranca o filósofo do conforto da casa e ele passa a andar como se voasse ao céu, sempre de olhar fixo para o alto, até tomar um tombo e cair no buraco. Tales de Mileto despenca seu corpo ao desequilíbrio – corpo rígido se torna corpo caído, quebrado, contorcido, tremido, puro êxtase. Na filosofia, como no texto sagrado, corpo caído é solicitude que se curva a si mesmo e ao outro. É o trágico da queda que produz no corpo efeitos de ternura e de dor. Eles se dobram num movimento desordenado de gozo e espanto: eis uma filosofia sem fundo como fundamento! Dos buracos do pensamento, dos poros cheios e úmidos de imaginação, dos objetos no lugar que encontram, dos sons desconcertantes nos olhares embriagados, provocando o universo a dançar. Desconstrução e magia – salta dos confins do mundo: Salomão do texto bíblico; Terpsícora, a nona filha de Zeus; Hadra, com o som dos tambores e palmas; Shiva Natarava, uma mistura de criação e destruição; e o Encrenqueiro, o inventor de maldades… para quem diz que anjos não dançam!
Essa vivência rompe com as lógicas, as morais e os conceitos. Os anjos dançam e engravidam, pois essa é sua função primordial. Conforme diz o poeta, foi o Anjo que engravidou uma virgem pela palavra mediada pelo sonho. Os anjos engravidantes dançam com os sonhos das pessoas, produzem utopias de liberdade, desejam a traição de toda ordem, dão coragem aos corpos enfraquecidos a lançar-se no palco da vida! Tudo é exercício de criação de significantes, de invenção do desconhecido, de brincar, de pular, de gritar, de respirar e inspirar, de silenciar sobre seu corpo próprio. Não é necessário adereços, enfeites e badulaques; somente o movimento livre e dissimétrico engravidam as pessoas de sonhos. E é exatamente a experiência da gravidez, anterior ao parto do filósofo, que lança/dança o corpo para a mudança. Salta ao pensamento filosófico a rebeldia e a transformação dos objetos do mundo.
Não existe cortina de fumaça, mesmo que tenha fumaça e cortina, na compreensão de dança e gravidez que estamos experimentando. Dança aqui não é produto, encomenda ou arranjo; não tem ensaio, controle ou farda; não é instrumento de algum aparelho de manipulação, doutrina ou ensinamento; estamos escrevendo sobre vivências do espírito; expressão da imaginação, feitiço da percepção. Gravidez aqui não é ato de alienação, apatia ou preguiça mental; não é espera escatológica, direcionamento religioso ou estupidez; não é inconsequência de consciência, imaginação idílica. Gravidez é metáfora de transformação profunda, sonho de coisa nova, expressão de grandeza da alma.
É sobre isso que o processo de criação “The Trouble Maker Series” tem a ver. Um diálogo entre filosofia e sua outra expressão de criação – a dança ou uma conversa entre a dança e sua outra expressão de reflexão – a filosofia. Um pensar radical, no qual o fundamento da raiz não tem fundo, é puro rizoma, dançando sobre as águas, como fios descontínuos, intermitentes e desconexos. Uma provocação metafórica sobre imaginação e desejo; movimento e sonho; criação e sentido. Os anjos também dançam, senhores!