Ítalo Lima
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Cortina branca de meu quarto


Era uma fria tarde de sexta quando a cortina branca de meu quarto fitou-me pelo braço. Assustei-me ao perceber que tal pedaço de pano tinha forma e gesto feito humano. Que beleza disposta ali a me arrancar suspiros e desejos. Carregou-me nos braços como se peso algum sobrevoasse em meu corpo. Não tinha forma humana, tinha vida própria a cortina branca de meu quarto.

Entre fios e embalo, o beijo na boca era em qualquer lugar. Toda ela era carícia: a cortina branca de meu quarto. Beijo nenhum me foi tão sincero quanto os lábios esvoaçantes da cortina branca de meu quarto. Foram dias de cortejo e mãos dadas pela janela. Esqueci do emprego, de descer o lixo na calçada, de ir à padaria e responder os e-mails. Vizinhos batiam em minha porta, eu lá, nos braços formosos da cortina branca de meu quarto. Perdi a fome, não tinha sede e nada em mim era fraqueza. Havia apenas um amor incondicional pela cortina branca de meu quarto.

Logo me ensinou a dançar no embalo do vento, guiou meus passos como se soubesse a razão do outono. Girava-me em giros sóbrios, depois me cobria de beijos, e de beijos e voltava ereta novamente repetir todos os atos. E de novo, e de novo. Sem cansaços. Sem lamento. A me encher de ternura. Envolto ao ministério de uma forma fluida. Espessa. Bailante. Onde não havia tontura: nos braços da cortina branca de meu quarto.

Então ela me pediu em namoro. Eu trêmulo disse sim já quase nem acreditando. Foram dezenas de rodopios. Girávamos enlaçados. Como se fôssemos um só. Eu e a cortina branca de meu quarto. Fizemos amor na garoa fina do inverno. Despi-me ligeiro e atento para que o frio invadisse e de calor eu logo precisasse, para que nua a cortina branca do meu quarto tão rápido me envolvesse, aquecesse. Foi ali, envolto de um pano fino que fiz o mais esplêndido e sincero sexo de toda a minha vida. De me arrancar suspiros. De sobressaltar os olhos. A despencar pela janela. Eu e a cortina branca de meu quarto.

O hálito da morte tem cheiro de orvalho matinal.

Ítalo Lima é escritor e publicitário. e-mail: italolimapoesias@gmail.com

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Dinheiro não é tudo

 

Estava tirando a sesta costumeira após o almoço quando, infelizmente, o celular tocou. Naquele dia, por esquecimento, havia deixado o aparelho ligado. Pior: no módulo normal. Embora chateado, ouvi com atenção as palavras da moça:

– Gostaria de falar com o senhor Wellington Soares.
– É ele.
– Senhor Wellington, meu nome é Gláucia e sou funcionária de uma empresa que presta serviço ao Banco do Brasil.
– Pois não!
– Como cliente do Banco do Brasil, gostaria de saber se o senhor não está interessado em fazer um título de capitalização no valor de 150 reais por mês.
– Estou ouvindo.
– E concorre a sorteio semanal no valor de 5 mil reais.
– Mas essa importância, querida, nem de longe resolve meus problemas financeiros.
– O prêmio mensal, senhor Wellington, é bem maior.
– Quanto?
– 15 mil reais.
– Sei não, ficar com o dinheiro empacado durante cinco anos…
– O melhor eu não havia dito ao senhor.
– Fale, minha jovem, pois preciso voltar ao meu sono.
– 3 milhões é o prêmio anual, soma nada desprezível, o senhor há de convir.
– Realmente você tem razão, uma bolada e tanto.
– Bom é que o senhor pode ganhar sozinho.
– Como assim?
– Sem a obrigação de dividir com ninguém, como acontece com os jogos da Loteria Federal.
– Essa grana toda faz até a gente despertar de vez.
– São 3 milhões, senhor Wellington, dinheiro que deixa qualquer um feliz.
– E o que faço com tanta grana?
– Ora, realiza todos os seus sonhos!
– Todos?
– Boa parte deles, pelo menos.
– Vamos combinar o seguinte, então, meu anjo abençoado…
– Quê?
– Volte a me ligar na próxima semana.
– Tanto tempo assim?
– No mesmo horário e no mesmo dia.
– Por que essa demora?
– Ganhar esse dinheirão todo é muita responsabilidade. Preciso decidir com calma, de preferência ouvindo a família.

Mal desliguei o telefone, levantei da rede e fui conversar com a esposa e as filhas, falar da possibilidade – quem sabe Deus não desse uma ajuda – em ficar rico, sair de nossa liseira crônica. Elas não só vibraram com a ideia, foram listando de imediato, numa alegria eufórica, os tão almejados objetos de consumo. Com mamãe e meus irmãos, a história não foi diferente. Quando dei conta, a notícia havia se espalhado pela vizinhança, bairro, amigos e parentes, inclusive, entre os mais distantes, que sequer me dirigiam um simples cumprimento. Parecia até que eu já tinha sido sorteado e estava com a fortuna nas mãos, só no ponto de dividir a bolada entre todos.

– E aí, senhor Wellington, vamos fazer desta vez?
– Sei não, Gláucia…
– Que homem indeciso é o senhor, senhor Wellington.
– Acontece que antes de ganhar essa riqueza, ela já foi gasta.
– O senhor está brincando comigo…
– Longe de mim essa atitude, minha cara.
– Que é então?
– Você não vai nem acreditar, mas é a pura verdade.
– Por não, senhor Wellington.
– Depois de contemplado, estou pensando em pegar um empréstimo.
– Pra quê?
– Honrar os pedidos que me foram apresentados.
– Aí também é demais, senhor Wellington.
– Mais grave ainda…
– Diga, estou ouvindo.
– A piriquete mais bonita e gostosa da cidade…
– Que que tem?
– Resolveu dar mole para mim.
– E o senhor não gostou?
– Sim, claro, mas custa uma fábula de dinheiro.
– Chorando de barriga cheia, desculpe a franqueza.
– E se a mulher descobre, aí mesmo é que estou fritinho da silva.
– Não entendi, senhor Wellington.
– Com a ajuda de um bom advogado, ela me deixa lixo.
– Mas, afinal, o senhor vai querer ou não garantir o seu futuro?
– Pensando bem, Gláucia…
– Não deixe escapar a sorte grande, homem de Deus.
– Prefiro continuar tendo sossego e meus 30 minutos de soneca.
– Boa tarde, senhor Wellington!

Tecendo um sentido

 

Tecer era a atividade que ocupava o tempo e as mentes das mulheres do lugar em que eu nasci. Sabiam fazer e faziam bem. Fiar o algodão. Tingir os fios. Colocá-los no tear.

Contam que todas as casas ao redor ostentavam o seu tear de madeira, armado em algum cômodo. Em muitas delas, na sala de estar (ou de visitas, como costumávamos chamar). A batida do facão sob a urdidura fixando a trama era o som que acalentava os filhos entre uma mamada e outra. Ou, trilha sonora para conversas ligeiras desfiadas entre comadres.

Dali saiam as redes. No amplo sentido que a palavra comporta. O artefato do descanso. O artefato da preguiça. O entrelaçado de fios coloridos, com espessura a depender da força e energia das mãos, formando o tecido que sustentaria os corpos. Dali também partia uma modesta conexão com o mundo, assumindo por outros caminhos o significado que seu correspondente em língua inglesa (net) fortaleceu impondo um novo jeito de viver no século XXI. 

Tecer é conectar-se. Dizia a sabedoria das mulheres andinas muito antes da invasão europeia. Os próprios corpos interligados por fios a uma árvore. Teciam em grupo como se a árvore fosse o ponto de interação. Um cordão umbilical nutrido pela Terra, e através dela pelo Cosmos, fazendo florescer a memória ancestral. Os seus tecidos reproduzem, ao longo dos séculos, as formas geométricas repetidas na grande teia do universo.

Tecer é alimentar uma rede e ser alimentado por ela. Isso me vem enquanto estendo sobre a mesa o tecido que traz até mim a energia das mãos de mulheres do meu lugar em outro tempo. Já não são apenas redes para adormecer. São redes para despertar.  Para apoiar o alimento que nos reúne em volta da mesa.  Para oferecer sustento à conversa em torno de um café.  Manter no real a conexão virtual. Tantas tramas a tecer… A rede que nos diz: fomos, somos, seremos resistência.

Caminhei. Andei pelo mundo. Teci relatos. Fecho o ano retornando à origem só para desejar que 2019 se vá deixando não apenas as duras lições de suas sombras, mas o compromisso que nos leve a tecer um 2020 pleno de cores e de luz!

A dança do devir

A dança do devir: o movimento do caminhar para si em busca do tornar-se ser

Por Georgina Quaresma Lustosa

Não, não é fácil escrever.
É duro como quebrar rochas
Mas voam faíscas e lascas.
Como aços espelhados.

 Clarice Lispector (1998)

 

Não é fácil a tarefa de escrever, tecer, construir textos! É um desafio, como a pesada tarefa de “quebrar rochas”, quebrar pedras e ver “voar faíscas e lascas”, como resumiu poeticamente Lispector. Mas como “aços espelhados”, tentamos construir, produzir textos, entrelaçando fios, formando imagens, autoimagens e desenhos da vida humana, como um tear que fia enredos, desenrolando e desenlaçando intrigas, tramas do nosso estar no mundo – como as Moiras, deusas gregas, três irmãs fiandeiras que tinham a tarefa de tecer, fiar, enrolar e cortar o sutil tecido da vida humana. A nossa tarefa não é enrolar, nem tão pouco cortar o fio, mas tecer, fiar e amarrar o tecido das histórias da vida humana.

Aqui, não poderíamos deixar de lembrar a impostante e bela tarefa das mulheres-deusas fiandeiras do nordeste brasileiro, que com seus teares vão fiando, tecendo suas mantas, redes, vestimentas, suas vidas. E, no decorrer de suas tarefas, acompanhando o ritmo da roda de fiar, vão entoando cantigas, celebrando a vida, enganando suas dores e mazelas, deixadas pelo sofrimento humano. Essas deusas fiandeiras, tecelãs resilientes que vivem quebrando rochas, sobretudo, deixando “aços espelhados” em suas cantigas e nos fios entrelhaçados surgindo rabiscos, traços, desenhos, enfeitados de vida vivida, cantada.

Nós, comparativamente, ao ritmo da roda de fiar, fiamos e tecemos, com fios de vida, o tecido que entrelaça, desvela o movimento do caminhar para si e do encontro com os nós-outros, nas trilhas da formação e sobre o lugar que nela ocupam as experiências ao longo das quais se formam e transformam nossa presença de ser e estar no mundo, nossa identidade e nossa subjetividade de caminhantes e fiandeiros do tecido da vida humana. O processo de caminhar para si, como realça Josso (2004, p. 59), “apresenta-se como um projeto a ser construído no percurso de uma vida, passa pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural”.

E com o projeto que passa pelo sentimento de compreender o que somos, pensamos e fazemos, na dinâmica relação conosco, com os outros e com o ambiente humano, desejamos na tessitura deste texto, buscamos dialogar com autores e não autores que, com os seus sentimentos, desejos e conhecimentos, contribuem com fios tecidos e fragmentos de “aços espelhados”, colorindo e formando desenhos da vida e da ação humana, pessoas que fomos encontrando no movimento dessa complexa e apaixonada tarefa de tecer, fiar e amarrar o tecido da vida.

Problematizar-nos a nós mesmos pode ser um bom começo para o caminhar para si.  Um modo e jeito de ser tal qual resultou de tudo que nos forma. Como Álvaro de Campos (1944) com sensibilidade, expressa em seus versos:

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

Somos seres mutantes em constante movimento. Nós, humanos ou não, somos marcados pelo signo da provisoriedade. O único elemento constante no mundo é a mudança, afirmava Heráclito (2.500 a. Cristo), ou seja, tudo é devir, nada permanece igual. Podemos compreender que o sentido do ser é movimento. “Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou”. Tudo isso nos forma e nos faz ser o que somos e queremos deixar de ser. “Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim”. Da ambiguidade à coerência, existe um caminho que se faz e refaz que ora se conclui, ora muda e se reconstrói, E é nesta dinamicidade, nesta contraposição diálogica do vir a ser, que surge a possibilidade da identidade do ser e do não ser, daquilo que Giacon (2002, p. 35) vem dizer, “somos, coerentes, mutantes – mutáveis revelados e escondidos pelo olhar, palavras, gestos e fazeres”. É nesta dança do devir, do tornar-se ser, que amando ou vivendo a negação do amor, somos desafiados pelo cotidiano na tentativa de nos fazermos felizes.

 

Sábia Bethânia

 

A cantora Bethânia disse certa vez, por meio da imprensa, que nossas escolas precisam urgentemente de poesia. Pra ouvir, recitar, escrever e respirar. Do professor ao aluno, da diretora ao porteiro, do coordenador à faxineira, da mãe ao filho, todos irmanados, num grande mutirão, nessa forma literária que toca fundo a alma da gente. Independente, deixou claro, de ser entendida ou não, pois o mais crucial é senti-la pelo corpo e viajar com e através das palavras. Com destino ao imponderável, frisou. E olha que ela, como ninguém, entende de poesia, vez que vive declamando, lindamente, em seus CDs e DVDs, textos de autores variados. Formando assim, a cada trabalho, novas gerações de leitor do gênero lírico, cultivado por muitos e apreciado por poucos. Caderno de poesias, reunião de poemas/canções/textos ficcionais, lançado por ela em 2015, é um bom exemplo dessa sua paixão pela escrita em versos.

Do Carlos Drummond, de quem ela gosta tanto, curto bastante os versos, sobretudo nestes tempos sombrios, que falam de companheirismo e solidariedade: “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro./ Estou preso à vida e olho meus companheiros./ Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças./ Entre eles, considero a enorme realidade./ O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.” Sem falar ainda que o poeta itabirano deixa claro nutrir, apesar do sufoco político da época, dentro e fora do Brasil, com a ditadura Vargas e a Segunda Guerra Mundial, grande esperança em dias melhores para todos, desde que sigam unidos, de mãos dadas. O poema faz parte de A rosa do povo, livro publicado em 1945, ano difícil de esquecer por marcar tragicamente o mundo.

Entre as poetas recorrentes, sobressai Cecília Meireles, escritora carioca que, misturando lírico e épico, produziu Romanceiro da Inconfidência, obra das mais importantes da literatura nacional, na qual traduz artisticamente um fato histórico do passado imbricado com o nosso presente democrático incerto, notadamente no que diz respeito à “Liberdade – essa palavra / que o sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique, / e ninguém que não entenda!”. Chamando atenção dos brasileiros desde 1953, data de lançamento do livro, para a figura heroica de Tiradentes na sua luta, junto com outros patriotas,  pela independência do Brasil em relação a Portugal, pagando com a própria vida a defesa intransigente da liberdade: “Que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão.”

Por fim, relembrar sempre Os estatutos do homem, texto hoje clássico de Thiago de Mello, poeta amazonense mundialmente conhecido, no qual diz sabiamente, Artigo XIII, que “Fica decretado que o dinheiro / não poderá nunca mais comprar / o sol das manhãs vindouras. / Expulso do grande baú do medo, / o dinheiro se transformará em uma espada fraternal / para defender o direito de cantar / e a festa do dia que chegou.” E vai mais além, no seu Ato Institucional Permanente, dedicado ao saudoso Carlos Heitor Cony, jornalista e escritor dos bons que enfrentou a ditadura militar, ao decretar, no artigo IX, que “Fica permitido que o pão de cada dia / tenha no homem o sinal de seu suor. / Mas que sobretudo tenha sempre / o quente sabor da ternura.” Pra arrematar em Parágrafo Único, primeiro de dois, numa sacada das mais utópicas, típica dele, Thiago de Mello, visionário apaixonado pela vida, que “O homem confiará no homem / como um menino confia em outro menino.” Não dizendo mais nada por ser desnecessário, exceto que a poesia, como dissera Maria Bethânia, precisa chegar às nossas escolas imediatamente.