A dança do devir: o movimento do caminhar para si em busca do tornar-se ser

Por Georgina Quaresma Lustosa

Não, não é fácil escrever.
É duro como quebrar rochas
Mas voam faíscas e lascas.
Como aços espelhados.

 Clarice Lispector (1998)

 

Não é fácil a tarefa de escrever, tecer, construir textos! É um desafio, como a pesada tarefa de “quebrar rochas”, quebrar pedras e ver “voar faíscas e lascas”, como resumiu poeticamente Lispector. Mas como “aços espelhados”, tentamos construir, produzir textos, entrelaçando fios, formando imagens, autoimagens e desenhos da vida humana, como um tear que fia enredos, desenrolando e desenlaçando intrigas, tramas do nosso estar no mundo – como as Moiras, deusas gregas, três irmãs fiandeiras que tinham a tarefa de tecer, fiar, enrolar e cortar o sutil tecido da vida humana. A nossa tarefa não é enrolar, nem tão pouco cortar o fio, mas tecer, fiar e amarrar o tecido das histórias da vida humana.

Aqui, não poderíamos deixar de lembrar a impostante e bela tarefa das mulheres-deusas fiandeiras do nordeste brasileiro, que com seus teares vão fiando, tecendo suas mantas, redes, vestimentas, suas vidas. E, no decorrer de suas tarefas, acompanhando o ritmo da roda de fiar, vão entoando cantigas, celebrando a vida, enganando suas dores e mazelas, deixadas pelo sofrimento humano. Essas deusas fiandeiras, tecelãs resilientes que vivem quebrando rochas, sobretudo, deixando “aços espelhados” em suas cantigas e nos fios entrelhaçados surgindo rabiscos, traços, desenhos, enfeitados de vida vivida, cantada.

Nós, comparativamente, ao ritmo da roda de fiar, fiamos e tecemos, com fios de vida, o tecido que entrelaça, desvela o movimento do caminhar para si e do encontro com os nós-outros, nas trilhas da formação e sobre o lugar que nela ocupam as experiências ao longo das quais se formam e transformam nossa presença de ser e estar no mundo, nossa identidade e nossa subjetividade de caminhantes e fiandeiros do tecido da vida humana. O processo de caminhar para si, como realça Josso (2004, p. 59), “apresenta-se como um projeto a ser construído no percurso de uma vida, passa pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos, valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente humano e natural”.

E com o projeto que passa pelo sentimento de compreender o que somos, pensamos e fazemos, na dinâmica relação conosco, com os outros e com o ambiente humano, desejamos na tessitura deste texto, buscamos dialogar com autores e não autores que, com os seus sentimentos, desejos e conhecimentos, contribuem com fios tecidos e fragmentos de “aços espelhados”, colorindo e formando desenhos da vida e da ação humana, pessoas que fomos encontrando no movimento dessa complexa e apaixonada tarefa de tecer, fiar e amarrar o tecido da vida.

Problematizar-nos a nós mesmos pode ser um bom começo para o caminhar para si.  Um modo e jeito de ser tal qual resultou de tudo que nos forma. Como Álvaro de Campos (1944) com sensibilidade, expressa em seus versos:

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

Somos seres mutantes em constante movimento. Nós, humanos ou não, somos marcados pelo signo da provisoriedade. O único elemento constante no mundo é a mudança, afirmava Heráclito (2.500 a. Cristo), ou seja, tudo é devir, nada permanece igual. Podemos compreender que o sentido do ser é movimento. “Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou”. Tudo isso nos forma e nos faz ser o que somos e queremos deixar de ser. “Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim”. Da ambiguidade à coerência, existe um caminho que se faz e refaz que ora se conclui, ora muda e se reconstrói, E é nesta dinamicidade, nesta contraposição diálogica do vir a ser, que surge a possibilidade da identidade do ser e do não ser, daquilo que Giacon (2002, p. 35) vem dizer, “somos, coerentes, mutantes – mutáveis revelados e escondidos pelo olhar, palavras, gestos e fazeres”. É nesta dança do devir, do tornar-se ser, que amando ou vivendo a negação do amor, somos desafiados pelo cotidiano na tentativa de nos fazermos felizes.