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Ser Professor carismático: dom transcendental ou construção humana?

Por Georgina Quaresma Lustosa

 

A imagem inicial de um professor carismático, mestre na transmissão de conhecimento e valores, ligada ao caráter sacerdotal da profissão, surgida na Idade Média, percebia a profissão docente como missão que pressupunha uma vocação que se traduzia num dom transcendental. Neste espaço, é importante abrir parênteses para entender melhor a concepção do professor carismático que ficou na história. Carisma vem do grego chàrisma que deriva da chàris, que significa “Gracia”. Na mitologia grega, chàris eram as deusas da felicidade e da beleza. Conforme o entendimento de Serres, em A lenda dos anjos (1986), e Bulfinch, em O livro de ouro da mitologia: historias dos deuses e heróis (2002), associava-se a essas deusas tudo o que promovia encantamento, brilho e satisfação.

Dizemos, por conseguinte, que dar graças é deixar o mundo protegido, abençoado. Uma pessoa que tem graça é alguém que deixa o mundo melhor, é alguém que enche o mundo de graças.  Contudo, é com Max Weber, em Economia e Sociedade (1991), que a palavra carisma se difundiu pelo mundo e, desde então, passou a ser identificada por qualidades como prestígio, magnetismo, influência, capacidade de persuasão, motivação e saber criar consenso entre as pessoas. Na base da palavra carisma, implícita de ética e reciprocidade, o que importa é inspirar a si mesmo e aos outros a construir um nós, esquecendo o eu individual tão presente na atual cultura pós-moderna.

Diante do sentido etimológico da palavra carisma, sobressai a compreensão de que o professor deveria conservar o poder das deusas gregas da felicidade e da beleza, promovendo encantamento, brilho e satisfação em suas atividades docentes, enchendo o mundo de graças e inspirando a construção do encontro do eu com o nós, na busca do ser e do tornar-se professor. E nesta dança do devir e da magia do encantamento, da necessidade de um se completar com o outro, transita o ser humano desafiado pelo cotidiano de viver e tentar se fazer feliz, a si e aos outros.

Assim, seria interessante que o professor mantivesse o carisma acompanhado da magia, do encantamento, do brilho e da satisfação no encontro de suas aulas. Encontro que na compreensão do Deleuze de Logica del sentido (1994) “é uma experiência intensiva com afetamentos, que pode suscitar uma manifestação derivada, um afeto, a produção de um sentido para essa experiência: uma ficção com realidade”. Pensar na vivência da aula, no exercício que extrapola a ideia de transmissão de conhecimentos, embarcando nos campos da educação e da subjetividade, é produzir a noção de aula como encontro de afetamentos e criação. Aí, sim, conservaríamos o encantamento, a magia, a sabedoria e o prazer estético do encontro.

A imagem inicial do professor carismático, que traz consigo uma imagem transcendental do ofício de ensinar, foi substituída pela imagem do professor tecnicamente competente ou especialista na gestão dos conhecimentos. Não obstante, assistimos, hoje, como afirma Boavida, em Filosofia – do ser e do ensinar (1991), “a indiferença generalizada em relação a quase tudo o que diga respeito a valores de vida e formas transcendentes que impliquem um homem essencial”. Realmente, os tempos mudaram e deixaram de ser propícios a formas de transcendência.

Lembramos que as funções desempenhadas pelos professores ao longo da história, as concepções de educação e os modos de ser professor sempre estiveram ligados a um intrincado jogo de relações sociais. Mas as sociedades foram definindo seus contornos, traçando limites, construindo, em cada época, um sistema de formação por meio de relações diversas e complexas, num processo que abriga contradições, rupturas e continuidades. É importante ressaltar que, enquanto o ideário da profissão docente esteve fundado na concepção de que ser professor era um dom natural, como menciona Cardoso, em Formação de professores: mapeando alguns modos de ser professor ensinado por meio do discurso científico-pedagógico (2003), as disciplinas pedagógicas dos cursos de formação de professores não priorizaram o ensinar a ser e a tornar-se professor.

Por muito tempo o discurso científico-educacional esteve fundado na ideia de que se nascia professor, ou seja, o dom prescindia do caráter formativo. Registramos que, com o surgimento das críticas a essa forma de pensar a docência e com a valorização do preparo técnico-político da formação, o discurso começa a explicitar a ideia de identidade profissional docente como construção.

Hoje, temos consciência e conhecimento de que a identidade humana e profissional não é algo natural, imutável, pronta e concluída. A identidade é construção que se dá passo a passo, é uma construção diária, de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociada de um projeto maior e coletivo. A identidade é um processo de construção do sujeito historicamente situado. Assim, vai sendo construída com as experiências e a história pessoal, no coletivo e na sociedade. Como expressa Moita, em Percursos de formação e de trans-formação (2007), “a identidade pessoal é um sistema de múltiplas identidades e encontra a sua riqueza na organização e dinâmica dessa diversidade”.

A identidade profissional é uma construção que se opera a partir da significação social da profissão; uma construção que se efetiva a partir do olhar constante dos significados sociais, associadas a práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Nesta vertente, acompanhamos a compreensão de Pimenta, expressa em Formação de professores: identidade e saberes da docência (2000), de que a identidade profissional é construída pelo significado que cada professor, enquanto ator/autor confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida do seu ser professor.

Compreendemos, assim, que criar e fortalecer a identidade é ser cada um de nós e dos muitos outros que nos compõem, tendo em vista ser a identidade “(…) um sistema de múltiplas identidades”, todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, somando, crescendo e se multiplicando, originando-se de outras categorias da interdisciplinaridade como a parceria, a espera, a coerência, o gesto, o respeito, o olhar, a ação. Este sistema de múltiplas identidades é uma construção permanente permeada por todas as demais dimensões que nos fazem ser gente e ser professor.

Esboço de uma escritura de si

Por Herasmo Braga de Oliveira Brito

 

A poetisa Adélia Prado costuma ser indagada se o discurso religioso é literário, e ela não só confirma como enfatiza: “Como não pode ser literário? Se não fosse, não existiria mais!” Com essa singela resposta, Adélia não apenas enaltece a linguagem literária mas, sobretudo, a linguagem simbólica. Em momento distinto, outro poeta, Octavio Paz, na sua obra O arco e a lira, nos diz que primeiro existiu a poesia e depois a linguagem. Apoiando-nos somente nestes dois poetas, com essas pequenas e significativas afirmações, podemos chegar à considerável ideia de que o uso potencial da linguagem se faz presente não no que ela diz, mas naquilo que sugere.

No meio literário, é comum afirmar que toda obra que diz ou reflete a realidade não nos serve. Esse pensamento remonta à época platônica, quando na sua A República (381 a.C.) Platão nos diz, especialmente no livro X, que todo poeta deve ser banido da república, pois, para ele, todo construtor de discurso mimético estaria deturpando a verdade e, portanto, criando mentiras. É em Aristóteles que a força da mimese ganha sentido porque, de maneira reflexiva, na Poética, o discípulo de Platão afirma que o discurso ficcional, simbólico, mimético não tem compromisso com a verdade no âmbito real, ele produz a verdade dentro de um universo próprio e verossímil. Assim, a linguagem simbólica realiza, através do diálogo entre o mundo verossímil e a realidade concreta, uma significativa ampliação e conhecimento dos mundos através da refração. Destarte, diante dos mundos conectados e no uso da linguagem mimética, poética, ficcional, simbólica, é que passaríamos a conhecer os mundos subjetivo, objetivo e imaginário, nossos e dos outros, através das constantes diferenças, contradições, paradoxos.

Não é à toa que Platão, ao realizar as suas produções por escrito, dará vez aos diálogos e à linguagem simbólica. Ele não quis receitar, ou direcionar, mas nos elevar, pelo pensamento, às constantes significações e ressignificações que os textos filosóficos nos levam a refletir. Nesta junção do diálogo, que nos oferece dinâmica e perspectivas dos outros, através da linguagem que não nos diz, é que nos formamos e não apenas nos informamos, já que toda e qualquer informação tem prazo de validade, enquanto aquilo que nos foram constituindo, formando-nos, vivendo e sentindo, não.

Dessa maneira, um dos elos que unem a filosofia à literatura é linguagem carregada de sentidos e reflexões. Walter Benjamim no famoso texto O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov nos apresenta a ideia de que a precarização das narrativas de hoje se dá devido à ausência das grandes vivências. Sendo assim, como narrar o que não se viveu? Como alimentar a imaginação com tanto pragmatismo? E o mais grave é destacado por ele quando nos alerta que as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Isolamo-nos e construímos um mundo paralelo, e se não bastasse ser apenas efêmero, traz o prejuízo de nos fazer acreditar copiosamente nele. Diante destas questões, podemos afirmar sem nenhum exagero que precisamos muito mais da filosofia, da literatura, da linguagem simbólica que nos encaminha e desenvolve as nossas percepções, do que em qualquer outro momento da nossa história.

Sem tons apocalípticos ou niilistas, mas sob a égide da compreensão do mundo contemporâneo, vivemos em um mundo doente, com pessoas cada vez mais doentes. O pior é que sabemos disso, como também sabemos a cura, todavia, a covardia de se viver a vida no enfrentamento para de fato vivê-la, nos domina e vai nos aniquilando. Podemos exemplificar essa nossa condição ao nos deparar com duas obras distintas de um mesmo autor com Dostoiévski. Como nos arrepia e nos oferece um soco no estômago Memórias do subsolo. Nesse livro, percebemos o quanto somos sujeitos ruins, doentes e mentirosos. Construímos ilusões em malefício nosso e dos outros. Quando algo nos é trazido sem um véu destas fantasias estéreis, rejeitamos imediatamente, por exemplo, no enredo, quando uma prostituta busca consolo com o narrador no lamento da morte de uma amiga também prostituta, que será enterrada como indigente. Nesse caso, nosso narrador-personagem, sem nenhum receio, indaga por que ela estranha isso, e ressalta que o destino dela será o mesmo, sem qualquer dúvida.

Assim, encarar a realidade não é fácil na sua sagacidade, então, apelamos defensivamente para o otimismo e para a bondade humana, e eis que novamente Dostoiévski nos humilha com outra narrativa que nos assombra, em O Idiota. O personagem principal, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, ou só príncipe Míchkin, nos irrita não por suas atrocidades comuns aos nossos dias, mas por toda a sua bondade. Mesmo quando as pretensões de outros personagens como Gánia, e em alguns momentos, Nastácia Filíppovna, são de irritá-lo, ofendê-lo, diminuí-lo, não ocorre por parte dele nenhum incômodo. Mantém-se da mesma maneira, sereno e tranquilo, e não só de modo aparente, como também em seu ser, isto é, ele não cria uma máscara de feições, ele não se irrita porque de fato não se sente ofendido, diminuído. Todo esse excesso de bondade dele desenvolve em nós aflições, pois nem de longe conseguimos ser pessoas desprovidas de egocentrismo e de maldade. Somos sujeitos que, na maldade alheia, nos vemos e nos irritamos e, na bondade de outros, temos a mesma postura. Isso só demonstra que, quando nos voltamos para nós (para si), é que nos vemos, diante destas obras ficcionais e dos diálogos filosóficos, o quanto somos cada vez menores, em todos os sentidos.

Quando o poeta Francis Ponge afirma que os homens na sua maior parte parecem privados das palavras e estão tão mudos quanto às carpas e pedregulhos, ele não deixa de ter razão. Estamos mudos e surdos diante do mundo. Fugimos da palavra-símbolo, utilizamos apenas a palavra no sentido referencial para nos comunicar e não nos inquietar tanto, menos ainda nos provocar angústias. Viver neste automatismo verbal nos alenta e, portanto, não se alimentar desta palavra-símbolo, sugestiva, oferecida pela literatura e filosofia, faz acreditar que nos faz bem, e desta maneira seguimos o conselho irônico e realista dos nossos dias feito por Albert Camus em A Queda, prometemos ser verdadeiros e mentirmos da melhor maneira que pudermos.

 

Entre Star Trek e Mad Max

Por João Caetano Linhares

 

O que Star Trek, uma série que se passa num futuro tecnológico e cooperativo, e Mad Max, um conjunto de filmes que também se passa num futuro só que distópico marcado pela violência e competição por coisas das necessidades básicas, poderiam ter em comum? Eu diria que eles possuem em comum o fato de serem arquétipos de futuros possíveis. Futuros disponíveis para nós a partir de nosso atual horizonte de decisões. Podemos escolher entre eles e estamos escolhendo.

Heidegger defendia que pelo menos duas características são distintivas do ser humano: o estar-lançado e o pro-jeto. O estar-lançado é ser aí com os outros, já o projetar-se consiste em conceber o futuro. Todos os outros animais também estão lançados, o que nos distingue é o fato de sermos capazes de compreender este aspecto da nossa existência. Por outro lado, o projetar-se pertence apenas a nossa espécie e consiste num calculo sobre o futuro.

É neste sentido que Star Trek e Mad Max nos são interessantes. Como uma espécie de calculo sobre o futuro. Devemos decidir se vamos cooperar e dar lugar para o nosso lado mais racional ou nos entregar a competição irracional até não sobrar mais nada digno do humano. Digno do Humano: aquilo que nos distingue como ser humano. Pois se reduzidos as meras volições viveremos aquilo que uma vez Agamben chamou de vida nua.

As perspectivas mais otimistas veem como algo possível uma virada para o bom senso, que sejamos capazes de usar a ciência para o progresso humano, algo que só pode se dar se for mais ou menos equilibrado nas desigualdades objetivas. O professor Elielton Sousa é parte dos otimistas. Em seu livro “As Virtudes da Responsabilidade Compartilhada” (2017), ele amplia a ética das virtudes de MacIntyre de modo a dar lugar para a importância que todas nós temos com todo o planeta, com a própria existência. Ou seja, ele é um desses autores que pretendem fornecer o material necessário para que sejamos capazes de ainda ter esperança.

Já eu, apesar de não ter ainda sistematizado nenhum texto a respeito, faço parte dos pessimistas. Não acredito, e esta é uma crença não justificada teoricamente mas tão somente uma impressão, que seremos capazes de resolvermos todos os problemas humanos e naturais que causamos ao longo dos últimos séculos. Por fim, acho que o que nos aguarda é Mad Max, a beleza da violência sem medida, e não a beleza tecnológica de Star Trek.

Um cesto de maçãs

Por Francisco Amorim de Carvalho

 

A vivacidade se mostra nas maçãs do rosto. Diante da nua verdade, o primeiro que nos delata, além da íris, é o rubor do rosto. Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, considerando o trabalho de Cézanne sublinha que a pintura é, igual que a filosofia, não o mero reflexo de uma verdade prévia, mas sim que ela toma parte na concreção da verdade. Cézanne através da arte, mais que a maçã, queria trazer à presença a sensação-maçã, fazer visível o que nos afeta, a partir da “fonte inapreensível das sensações” e das “raízes do ser”, capturar o “mundo primordial”, a “natureza no seu estado originário”. Também Deleuze, em Lógica da sensação, atento a temas da arte, sobre a pintura de Cézanne escreve que a sensação não está no jogo “livre” ou desencarnado da luz e da cor (impressões), mas sim que “está no corpo, ainda que o corpo de uma maçã”; a sensação [cor, cheiro, textura] está no corpo, o “pintado é a sensação”; o que vemos [sentimos] no quadro é o corpo, não pelo que está representado, mas pelo que é “vivido como experimentando tal sensação”.

A lógica do sentido não está no sensacional, não reside na leitura, nem na espetaculosidade, a lógica da sensação é como pensamento vivente, orgânico: somos unos com o sentido no sentido mesmo que nos acontece; não se trata de algum “aspecto” fenomenológico de descrição, mas sim no corpo mesmo, “é” o corpo mesmo em tanto que acontece; é a maçã de Cézanne, o girassol de Van Gogh, as ninfeias de Monet, o anjo de Klee, o discurso do trabalhador alfabetizado de Brecht. O que se pinta é a experiência mesma da sensação em tanto que acontecimento, experiência viva.

Isto que fazem os grandes pintores é o que realizam políticos autênticos, que são políticos do acontecimento, e expressam a sensação do corpo no contexto. Então transfiguram a representação hegemônica em histórico-dialética. Assim, podem realizar a revolução junto a sua comunidade. Imersos nela, vibram e agenciam no desejo e no corpo se expressa em tomada de consciência e de decisões coletivas: atitudes, e a história se torna matéria de criação, é quando, escreve Deleuze: “A história acontece em desenhos novos”; é dizer: uma poética do político, é a verdade possível.

Mais importante que o pensamento é o que nos move a pensar; não teria êxito a serpente se não fosse a maçã tal que nos apetecera, a maçã é toda para ser desejada, ela foi feita a nossa medida; a cor, o cheiro, o sabor, toda a sensação-maçã é o conhecimento presente da verdade; a arquitetônica poética da verdade está no corpo, ele sabe mais de ti do que tu mesmo, é teu maior confidente; o sentido está no objeto mesmo, no acontecimento todo, o objeto é unido ao sujeito, a árvore foi situada em um lugar preciso, uma paisagem o sustenta e acompanha, lhe constitui; é ser no mundo.

Em La vida de Sir Isaac Newton, Stukeley escreveu: “Disse a mim que havia estado nesta situação quando a noção da gravidade o assaltou a mente. Foi algo ocasionado pela caída de uma maçã enquanto estava sentado em atitude contemplativa.”, relata-se a descoberta de Newton; a contemplação proporciona ser todo no acontecimento, objeto e sujeito são unos na experiência.

O Jardim das Hespérides é o horto de Hera no oeste, onde uma árvore de maçãs douradas proporciona imortalidade. Hera é a filha da Terra (Rea) e do Tempo (Cronos); para os romanos era Juno e sua oferenda um pavão real. As maçãs foram plantadas com ramas da fruta que Gea (Terra) havia dado a Hera como presente de casamento com Zeus (o céu). Neste jardim ninfas cuidam das maçãs de ouro. Se maçã de ouro não se come, o que significa que dê imortalidade a quem a colhe? Newton além de descrever a matéria, buscará compreender suas leis e transformá-la, daí seu interesse por alquimia. Hoje, fora do paraíso, fora de si, e sem árvore de maçãs de ouro e sem alquimia: arte da transmutação, ocorre o acúmulo de ouro não de modo natural nem por arte, o ouro como medida está sem sentido e sem lógica, a uns lhes falta, a outros em excesso, por isso o literal se impõe ao simbólico, míngua o conotativo, a razão necessitada e miserável afasta a razão poética.

Tem notícia de gente indo a restaurantes onde servem pratos com pó de ouro, e comem!

A lenda narra que Gea ordena a um dragão para guardar a estas árvores de maçãs de ouro; nesta e em outras culturas o cuidado está em não permitir roubar as maçãs, o roubo resulta em violência e perda da imortalidade. Que relação existe entre o roubo das maçãs e o roubo do fogo? A queda vem com a perda do seu sentido vital, a medida que floresce e madura. Talvez, o imortal da maçã está naquele que a leva. Holderlin diz que o que permanece, é obra dos poetas, diz também que é poeticamente como o ser humano habita sobre esta terra.

Mais que representar uma maçã, a arte está em fazer presente a sensação-maçã. Os antigos poetas, de acordo com o tema, no início dos seus cantos evocavam a potência protetora dos seus segredos. O poeta extrai de si: poeta-árvore-maçã. O poeta abre o livro da memória poeticamente, e não lhe seria possível de outra maneira. Rubem Alves é que nos mostra esse ethos dos poetas. Em A maçã e outros sabores nos apresenta crônicas escritas desde situações do presente que evocam memórias e sabores. No seu relato sobre conversas com alunos, descreve o outono como a estação das maçãs cujo “cheiro se mescla com o cheiro das folhas que cobrem o chão”. Tendo no centro da classe uma cesta de maçãs como inspiração, viu-se tomado por lembranças de quando era menino. Alves diz que a memória é um poder estranho, a memória guarda coisas nas suas gavetas, coisas que nem sabemos que existam; ainda que tentemos abrir, só se abrem quando querem; certo dia uma de suas gavetas se abriu, conta Alves, e dentro havia uma maçã vermelha, embrulhada em um papel de seda amarelo, era sua primeira maçã, na ocasião era menino pequeno, véspera de Natal. O poeta ensina que transformamos o mundo de acordo com a maneira que o olhamos. Alves, como fez Clarice em A maçã no escuro, mostra essa alquimia que ocorre dentro de nós quando olhamos de outro modo aquilo que sempre esteve ali, uma nota nos toca e despertamos sensações e sentimentos esquecidos, escondidos ou perdidos, em nós mesmos, em nossos internos jardins ou labirintos.

No Juízo de Páris, narra-se que Eris, deusa da discórdia, por não haver sido convidada para o casamento de Peleo, aparece e lança uma maçã dourada com a frase “para a mais bela”, três das deusas presentes Hera, Atenea e Afrodite mais que à maçã desejam o título; como ninguém se vê capaz de decidir, Zeus envia Hermes a ir buscar ao príncipe pastor Páris, para dirimir a disputa. Páris elege a Afrodite, a deusa do amor que lhe promete a conquista do coração de Helena. Isso lhe trouxe consequências fatais. Hesper tem a ver com Juno, também com a estrela vespertina, a estrela da manhã, Vênus. Eva se encanta pela maçã, era preciso não estar com fome, para olhar com outros olhos, por natureza desejava saber. Foi por encanto que evoluímos? No mito grego o dragão Ladón guarda as árvores de maçã de ouro, neste a serpente induz ao desejo do fruto que proporciona a consciência de si (autognosis) e daí, conhecimento do todo, somente assim compreenderia a deus.

Seja com a chapeuzinho vermelho, seja com o aluno que leva para o professor um fruto de cultivo próprio, ali estará a árvore, a serpente e a maçã; todo valor tem duplo aspecto: a inocência e a astúcia. Odisseu com astúcia se livra do peso que Atlas sustenta. A serpente cumpre sua missão secreta: não há nada que não possa ser conhecido ou descoberto. Eva olhando para si, viu que corpo e conhecer, olho e espírito, são um; por isto conhecer fez ruborizar seu rosto. Mas teve vergonha de saber, só quando veio saber, soube que não sabia, antes tudo era um mundo, nada faltava, nem sobrava, tudo só acontecia; o não-entender era maior que o entender. É isto: entender é uma atitude.

Mostra Cézanne que não se pode roubar o ser da sensação-maçã, o ser flui com o rio, não se apressa o rio, é preciso entrar no rio para ser. A compreensão tem seu tempo. O menino leva uma maçã ainda não mordida, por isso brinca de dar diferentes nomes às coisas, seu tempo ainda não tem o peso do metal, não se afunda. É um tempo vivo. A arte política, a arte poética ou a arte filosófica, é fruto que madura, tem raiz e um ciclo de vida, e seu firmamento. As maçãs colhidas antes do tempo, tem preço, mas não valor. O preço é o mercado quem estabelece. Os valores são as pessoas que reconhecem, os valores se mostram sempre em constelações: a verdade, o caminho e a vida; é preciso ter uma filosofia de vida para reconhecer um valor. Cuida que a doce maçã não esteja envenenada, ou dormirás para sempre. Não se rouba um amor, Páris rapta mas ao final não fica com Helena, não se rouba a beleza alheia, as maçãs douradas são valores quando na árvore, em um jardim, à vista de todos e para todos.

Convite a pensar nos direitos humanos

Por Lunara Maria Soares e Silva Moura

 

Lendo Contos de Assombro, deparei-me com um conto chamado “Uma jaula de animais ferozes” (1867), de Émile Zola, um relato feito por um Leão e uma Hiena de um zoológico de Paris, que tinham curiosidade em conhecer a jaula dos homens. Certa manhã tiveram a oportunidade, e, ao se aproximarem da cidade com seus ruídos de trânsito, sorrisos e lágrimas dos transeuntes, ambos se assustaram, pois tais sons pareciam uivos ferozes e dor.  Por fim, tudo naquela cidade parecia um terror, já que os homens matavam sem estar com fome, trancavam-se em suas casas por portas enormes e fortes cadeados para não se devorarem e atropelavam suas crianças com suas carruagens sem se darem conta. Todas aquelas imagens eram tão aterrorizantes que o Leão e a Hiena correram de volta às suas devidas jaulas para nunca mais saírem.

Esse conto chama atenção para o contexto de várias transformações político-sociais, no bojo da ideia de emancipação humana trazida pelo iluminismo, entre as quais o surgimento da ideia de direitos humanos. Não obstante esses avanços, a noção do outro retratada no conto ainda se encontra perdida no individualismo e uma violência absurda continuava (continua) presente no dia a dia das pessoas.

A ideia de que a existência de lei, de direitos (como nos moldes dos direitos humanos), diminuiria a violência é um tanto ilusória – a luta pela efetivação de direitos, especialmente dos direitos humanos, tem que ser diária, constante e permanente.

Afasto-me da crença de que os direitos humanos não são necessários. Pelo contrário, alerto que esses direitos a cada dia devem ser reforçados e reafirmados. A comunidade internacional precisa ter em mente a ideia de coletividade, os consensos que foram sendo construídos ao longo da história, que culminaram na ideia de “civilização” que operamos contemporaneamente. Não podemos perder de vista o difícil equilíbrio entre as demandas locais de cada cultura, as particularidades de cada contexto social, e a ideia de direitos universais personalíssimos, condição necessária para que possamos nos afastar da indiferença frente a violência crescente, tanto entre nações como no interior das comunidades locais.

Lynn Hunt, em A invenção dos direitos humanos: uma história, diz que só foi possível a ideia dos direitos humanos com a mudança da mentalidade da sociedade da época. Essa mudança de mentalidade só foi possível porque, em meados do século XVIII, as personagens dos romances epistolares, muito populares naquele período, ajudaram a desenvolver na mente das pessoas as ideias de autonomia e de empatia, como por exemplo, no romance Júlia ou a Nova Heloisa de Jean-Jacques Rousseau, publicado em 1761, antes de seu O contrato social.

A capacidade de se imaginar no lugar das personagens romanescas, vivenciar suas situações, o contato mesmo com essas obras de arte, aguçava a mente das pessoas, incentivando-as a criarem novas formas de organização social e política, a reclamarem direitos, a se mobilizarem por causas comuns. Eis o embrião do que culminou na ideia de direitos humanos.

É interessante observar que, em se tratando da vida em sociedade, a empatia para com o outro parece ser condição necessária para que uma comunidade persista. Ver o outro como aquele que possui os mesmos direitos que eu, que sente e tem as mesmas necessidades que eu tenho, ver o “eu” do outro como o meu “eu”, parece ser um passo fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igual para todos. O reconhecimento do eu no outro, essa reciprocidade entre o “eu” e o “outro”, é a base para que possamos construir uma ideia de direitos humanos universais.

Retomando a ideia do início do texto da surpresa do Leão e da Hiena com a violência dos seres humanos e seu desprezo pelo vida e pensando nas transformações políticas e sociais em marcha mundo afora, como as políticas de extrema-direita com discursos nacionalistas e autoritários, penso que os direitos humanos estão sob ameaça grave e os retrocessos em relação aos direitos conquistados não são apenas uma hipótese, mas uma realidade em vários lugares do mundo, como na Síria e na Venezuela e, inclusive, no Brasil.

Lynn Hunt nos fornece um bom caminho para superarmos a violência a que estamos expostos, seja pela ação dos governos internos, pelo conflito entre nações ou pelos interesses puramente econômicos dos grandes oligopólios financeiros internacionais: precisamos ler mais romances, aguçar a imaginação, desenvolver a empatia, criar um mundo melhor.