Por Georgina Quaresma Lustosa
A imagem inicial de um professor carismático, mestre na transmissão de conhecimento e valores, ligada ao caráter sacerdotal da profissão, surgida na Idade Média, percebia a profissão docente como missão que pressupunha uma vocação que se traduzia num dom transcendental. Neste espaço, é importante abrir parênteses para entender melhor a concepção do professor carismático que ficou na história. Carisma vem do grego chàrisma que deriva da chàris, que significa “Gracia”. Na mitologia grega, chàris eram as deusas da felicidade e da beleza. Conforme o entendimento de Serres, em A lenda dos anjos (1986), e Bulfinch, em O livro de ouro da mitologia: historias dos deuses e heróis (2002), associava-se a essas deusas tudo o que promovia encantamento, brilho e satisfação.
Dizemos, por conseguinte, que dar graças é deixar o mundo protegido, abençoado. Uma pessoa que tem graça é alguém que deixa o mundo melhor, é alguém que enche o mundo de graças. Contudo, é com Max Weber, em Economia e Sociedade (1991), que a palavra carisma se difundiu pelo mundo e, desde então, passou a ser identificada por qualidades como prestígio, magnetismo, influência, capacidade de persuasão, motivação e saber criar consenso entre as pessoas. Na base da palavra carisma, implícita de ética e reciprocidade, o que importa é inspirar a si mesmo e aos outros a construir um nós, esquecendo o eu individual tão presente na atual cultura pós-moderna.
Diante do sentido etimológico da palavra carisma, sobressai a compreensão de que o professor deveria conservar o poder das deusas gregas da felicidade e da beleza, promovendo encantamento, brilho e satisfação em suas atividades docentes, enchendo o mundo de graças e inspirando a construção do encontro do eu com o nós, na busca do ser e do tornar-se professor. E nesta dança do devir e da magia do encantamento, da necessidade de um se completar com o outro, transita o ser humano desafiado pelo cotidiano de viver e tentar se fazer feliz, a si e aos outros.
Assim, seria interessante que o professor mantivesse o carisma acompanhado da magia, do encantamento, do brilho e da satisfação no encontro de suas aulas. Encontro que na compreensão do Deleuze de Logica del sentido (1994) “é uma experiência intensiva com afetamentos, que pode suscitar uma manifestação derivada, um afeto, a produção de um sentido para essa experiência: uma ficção com realidade”. Pensar na vivência da aula, no exercício que extrapola a ideia de transmissão de conhecimentos, embarcando nos campos da educação e da subjetividade, é produzir a noção de aula como encontro de afetamentos e criação. Aí, sim, conservaríamos o encantamento, a magia, a sabedoria e o prazer estético do encontro.
A imagem inicial do professor carismático, que traz consigo uma imagem transcendental do ofício de ensinar, foi substituída pela imagem do professor tecnicamente competente ou especialista na gestão dos conhecimentos. Não obstante, assistimos, hoje, como afirma Boavida, em Filosofia – do ser e do ensinar (1991), “a indiferença generalizada em relação a quase tudo o que diga respeito a valores de vida e formas transcendentes que impliquem um homem essencial”. Realmente, os tempos mudaram e deixaram de ser propícios a formas de transcendência.
Lembramos que as funções desempenhadas pelos professores ao longo da história, as concepções de educação e os modos de ser professor sempre estiveram ligados a um intrincado jogo de relações sociais. Mas as sociedades foram definindo seus contornos, traçando limites, construindo, em cada época, um sistema de formação por meio de relações diversas e complexas, num processo que abriga contradições, rupturas e continuidades. É importante ressaltar que, enquanto o ideário da profissão docente esteve fundado na concepção de que ser professor era um dom natural, como menciona Cardoso, em Formação de professores: mapeando alguns modos de ser professor ensinado por meio do discurso científico-pedagógico (2003), as disciplinas pedagógicas dos cursos de formação de professores não priorizaram o ensinar a ser e a tornar-se professor.
Por muito tempo o discurso científico-educacional esteve fundado na ideia de que se nascia professor, ou seja, o dom prescindia do caráter formativo. Registramos que, com o surgimento das críticas a essa forma de pensar a docência e com a valorização do preparo técnico-político da formação, o discurso começa a explicitar a ideia de identidade profissional docente como construção.
Hoje, temos consciência e conhecimento de que a identidade humana e profissional não é algo natural, imutável, pronta e concluída. A identidade é construção que se dá passo a passo, é uma construção diária, de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociada de um projeto maior e coletivo. A identidade é um processo de construção do sujeito historicamente situado. Assim, vai sendo construída com as experiências e a história pessoal, no coletivo e na sociedade. Como expressa Moita, em Percursos de formação e de trans-formação (2007), “a identidade pessoal é um sistema de múltiplas identidades e encontra a sua riqueza na organização e dinâmica dessa diversidade”.
A identidade profissional é uma construção que se opera a partir da significação social da profissão; uma construção que se efetiva a partir do olhar constante dos significados sociais, associadas a práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Nesta vertente, acompanhamos a compreensão de Pimenta, expressa em Formação de professores: identidade e saberes da docência (2000), de que a identidade profissional é construída pelo significado que cada professor, enquanto ator/autor confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida do seu ser professor.
Compreendemos, assim, que criar e fortalecer a identidade é ser cada um de nós e dos muitos outros que nos compõem, tendo em vista ser a identidade “(…) um sistema de múltiplas identidades”, todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, somando, crescendo e se multiplicando, originando-se de outras categorias da interdisciplinaridade como a parceria, a espera, a coerência, o gesto, o respeito, o olhar, a ação. Este sistema de múltiplas identidades é uma construção permanente permeada por todas as demais dimensões que nos fazem ser gente e ser professor.