Por Francisco Amorim de Carvalho

 

A vivacidade se mostra nas maçãs do rosto. Diante da nua verdade, o primeiro que nos delata, além da íris, é o rubor do rosto. Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, considerando o trabalho de Cézanne sublinha que a pintura é, igual que a filosofia, não o mero reflexo de uma verdade prévia, mas sim que ela toma parte na concreção da verdade. Cézanne através da arte, mais que a maçã, queria trazer à presença a sensação-maçã, fazer visível o que nos afeta, a partir da “fonte inapreensível das sensações” e das “raízes do ser”, capturar o “mundo primordial”, a “natureza no seu estado originário”. Também Deleuze, em Lógica da sensação, atento a temas da arte, sobre a pintura de Cézanne escreve que a sensação não está no jogo “livre” ou desencarnado da luz e da cor (impressões), mas sim que “está no corpo, ainda que o corpo de uma maçã”; a sensação [cor, cheiro, textura] está no corpo, o “pintado é a sensação”; o que vemos [sentimos] no quadro é o corpo, não pelo que está representado, mas pelo que é “vivido como experimentando tal sensação”.

A lógica do sentido não está no sensacional, não reside na leitura, nem na espetaculosidade, a lógica da sensação é como pensamento vivente, orgânico: somos unos com o sentido no sentido mesmo que nos acontece; não se trata de algum “aspecto” fenomenológico de descrição, mas sim no corpo mesmo, “é” o corpo mesmo em tanto que acontece; é a maçã de Cézanne, o girassol de Van Gogh, as ninfeias de Monet, o anjo de Klee, o discurso do trabalhador alfabetizado de Brecht. O que se pinta é a experiência mesma da sensação em tanto que acontecimento, experiência viva.

Isto que fazem os grandes pintores é o que realizam políticos autênticos, que são políticos do acontecimento, e expressam a sensação do corpo no contexto. Então transfiguram a representação hegemônica em histórico-dialética. Assim, podem realizar a revolução junto a sua comunidade. Imersos nela, vibram e agenciam no desejo e no corpo se expressa em tomada de consciência e de decisões coletivas: atitudes, e a história se torna matéria de criação, é quando, escreve Deleuze: “A história acontece em desenhos novos”; é dizer: uma poética do político, é a verdade possível.

Mais importante que o pensamento é o que nos move a pensar; não teria êxito a serpente se não fosse a maçã tal que nos apetecera, a maçã é toda para ser desejada, ela foi feita a nossa medida; a cor, o cheiro, o sabor, toda a sensação-maçã é o conhecimento presente da verdade; a arquitetônica poética da verdade está no corpo, ele sabe mais de ti do que tu mesmo, é teu maior confidente; o sentido está no objeto mesmo, no acontecimento todo, o objeto é unido ao sujeito, a árvore foi situada em um lugar preciso, uma paisagem o sustenta e acompanha, lhe constitui; é ser no mundo.

Em La vida de Sir Isaac Newton, Stukeley escreveu: “Disse a mim que havia estado nesta situação quando a noção da gravidade o assaltou a mente. Foi algo ocasionado pela caída de uma maçã enquanto estava sentado em atitude contemplativa.”, relata-se a descoberta de Newton; a contemplação proporciona ser todo no acontecimento, objeto e sujeito são unos na experiência.

O Jardim das Hespérides é o horto de Hera no oeste, onde uma árvore de maçãs douradas proporciona imortalidade. Hera é a filha da Terra (Rea) e do Tempo (Cronos); para os romanos era Juno e sua oferenda um pavão real. As maçãs foram plantadas com ramas da fruta que Gea (Terra) havia dado a Hera como presente de casamento com Zeus (o céu). Neste jardim ninfas cuidam das maçãs de ouro. Se maçã de ouro não se come, o que significa que dê imortalidade a quem a colhe? Newton além de descrever a matéria, buscará compreender suas leis e transformá-la, daí seu interesse por alquimia. Hoje, fora do paraíso, fora de si, e sem árvore de maçãs de ouro e sem alquimia: arte da transmutação, ocorre o acúmulo de ouro não de modo natural nem por arte, o ouro como medida está sem sentido e sem lógica, a uns lhes falta, a outros em excesso, por isso o literal se impõe ao simbólico, míngua o conotativo, a razão necessitada e miserável afasta a razão poética.

Tem notícia de gente indo a restaurantes onde servem pratos com pó de ouro, e comem!

A lenda narra que Gea ordena a um dragão para guardar a estas árvores de maçãs de ouro; nesta e em outras culturas o cuidado está em não permitir roubar as maçãs, o roubo resulta em violência e perda da imortalidade. Que relação existe entre o roubo das maçãs e o roubo do fogo? A queda vem com a perda do seu sentido vital, a medida que floresce e madura. Talvez, o imortal da maçã está naquele que a leva. Holderlin diz que o que permanece, é obra dos poetas, diz também que é poeticamente como o ser humano habita sobre esta terra.

Mais que representar uma maçã, a arte está em fazer presente a sensação-maçã. Os antigos poetas, de acordo com o tema, no início dos seus cantos evocavam a potência protetora dos seus segredos. O poeta extrai de si: poeta-árvore-maçã. O poeta abre o livro da memória poeticamente, e não lhe seria possível de outra maneira. Rubem Alves é que nos mostra esse ethos dos poetas. Em A maçã e outros sabores nos apresenta crônicas escritas desde situações do presente que evocam memórias e sabores. No seu relato sobre conversas com alunos, descreve o outono como a estação das maçãs cujo “cheiro se mescla com o cheiro das folhas que cobrem o chão”. Tendo no centro da classe uma cesta de maçãs como inspiração, viu-se tomado por lembranças de quando era menino. Alves diz que a memória é um poder estranho, a memória guarda coisas nas suas gavetas, coisas que nem sabemos que existam; ainda que tentemos abrir, só se abrem quando querem; certo dia uma de suas gavetas se abriu, conta Alves, e dentro havia uma maçã vermelha, embrulhada em um papel de seda amarelo, era sua primeira maçã, na ocasião era menino pequeno, véspera de Natal. O poeta ensina que transformamos o mundo de acordo com a maneira que o olhamos. Alves, como fez Clarice em A maçã no escuro, mostra essa alquimia que ocorre dentro de nós quando olhamos de outro modo aquilo que sempre esteve ali, uma nota nos toca e despertamos sensações e sentimentos esquecidos, escondidos ou perdidos, em nós mesmos, em nossos internos jardins ou labirintos.

No Juízo de Páris, narra-se que Eris, deusa da discórdia, por não haver sido convidada para o casamento de Peleo, aparece e lança uma maçã dourada com a frase “para a mais bela”, três das deusas presentes Hera, Atenea e Afrodite mais que à maçã desejam o título; como ninguém se vê capaz de decidir, Zeus envia Hermes a ir buscar ao príncipe pastor Páris, para dirimir a disputa. Páris elege a Afrodite, a deusa do amor que lhe promete a conquista do coração de Helena. Isso lhe trouxe consequências fatais. Hesper tem a ver com Juno, também com a estrela vespertina, a estrela da manhã, Vênus. Eva se encanta pela maçã, era preciso não estar com fome, para olhar com outros olhos, por natureza desejava saber. Foi por encanto que evoluímos? No mito grego o dragão Ladón guarda as árvores de maçã de ouro, neste a serpente induz ao desejo do fruto que proporciona a consciência de si (autognosis) e daí, conhecimento do todo, somente assim compreenderia a deus.

Seja com a chapeuzinho vermelho, seja com o aluno que leva para o professor um fruto de cultivo próprio, ali estará a árvore, a serpente e a maçã; todo valor tem duplo aspecto: a inocência e a astúcia. Odisseu com astúcia se livra do peso que Atlas sustenta. A serpente cumpre sua missão secreta: não há nada que não possa ser conhecido ou descoberto. Eva olhando para si, viu que corpo e conhecer, olho e espírito, são um; por isto conhecer fez ruborizar seu rosto. Mas teve vergonha de saber, só quando veio saber, soube que não sabia, antes tudo era um mundo, nada faltava, nem sobrava, tudo só acontecia; o não-entender era maior que o entender. É isto: entender é uma atitude.

Mostra Cézanne que não se pode roubar o ser da sensação-maçã, o ser flui com o rio, não se apressa o rio, é preciso entrar no rio para ser. A compreensão tem seu tempo. O menino leva uma maçã ainda não mordida, por isso brinca de dar diferentes nomes às coisas, seu tempo ainda não tem o peso do metal, não se afunda. É um tempo vivo. A arte política, a arte poética ou a arte filosófica, é fruto que madura, tem raiz e um ciclo de vida, e seu firmamento. As maçãs colhidas antes do tempo, tem preço, mas não valor. O preço é o mercado quem estabelece. Os valores são as pessoas que reconhecem, os valores se mostram sempre em constelações: a verdade, o caminho e a vida; é preciso ter uma filosofia de vida para reconhecer um valor. Cuida que a doce maçã não esteja envenenada, ou dormirás para sempre. Não se rouba um amor, Páris rapta mas ao final não fica com Helena, não se rouba a beleza alheia, as maçãs douradas são valores quando na árvore, em um jardim, à vista de todos e para todos.