Por Lunara Maria Soares e Silva Moura

 

Lendo Contos de Assombro, deparei-me com um conto chamado “Uma jaula de animais ferozes” (1867), de Émile Zola, um relato feito por um Leão e uma Hiena de um zoológico de Paris, que tinham curiosidade em conhecer a jaula dos homens. Certa manhã tiveram a oportunidade, e, ao se aproximarem da cidade com seus ruídos de trânsito, sorrisos e lágrimas dos transeuntes, ambos se assustaram, pois tais sons pareciam uivos ferozes e dor.  Por fim, tudo naquela cidade parecia um terror, já que os homens matavam sem estar com fome, trancavam-se em suas casas por portas enormes e fortes cadeados para não se devorarem e atropelavam suas crianças com suas carruagens sem se darem conta. Todas aquelas imagens eram tão aterrorizantes que o Leão e a Hiena correram de volta às suas devidas jaulas para nunca mais saírem.

Esse conto chama atenção para o contexto de várias transformações político-sociais, no bojo da ideia de emancipação humana trazida pelo iluminismo, entre as quais o surgimento da ideia de direitos humanos. Não obstante esses avanços, a noção do outro retratada no conto ainda se encontra perdida no individualismo e uma violência absurda continuava (continua) presente no dia a dia das pessoas.

A ideia de que a existência de lei, de direitos (como nos moldes dos direitos humanos), diminuiria a violência é um tanto ilusória – a luta pela efetivação de direitos, especialmente dos direitos humanos, tem que ser diária, constante e permanente.

Afasto-me da crença de que os direitos humanos não são necessários. Pelo contrário, alerto que esses direitos a cada dia devem ser reforçados e reafirmados. A comunidade internacional precisa ter em mente a ideia de coletividade, os consensos que foram sendo construídos ao longo da história, que culminaram na ideia de “civilização” que operamos contemporaneamente. Não podemos perder de vista o difícil equilíbrio entre as demandas locais de cada cultura, as particularidades de cada contexto social, e a ideia de direitos universais personalíssimos, condição necessária para que possamos nos afastar da indiferença frente a violência crescente, tanto entre nações como no interior das comunidades locais.

Lynn Hunt, em A invenção dos direitos humanos: uma história, diz que só foi possível a ideia dos direitos humanos com a mudança da mentalidade da sociedade da época. Essa mudança de mentalidade só foi possível porque, em meados do século XVIII, as personagens dos romances epistolares, muito populares naquele período, ajudaram a desenvolver na mente das pessoas as ideias de autonomia e de empatia, como por exemplo, no romance Júlia ou a Nova Heloisa de Jean-Jacques Rousseau, publicado em 1761, antes de seu O contrato social.

A capacidade de se imaginar no lugar das personagens romanescas, vivenciar suas situações, o contato mesmo com essas obras de arte, aguçava a mente das pessoas, incentivando-as a criarem novas formas de organização social e política, a reclamarem direitos, a se mobilizarem por causas comuns. Eis o embrião do que culminou na ideia de direitos humanos.

É interessante observar que, em se tratando da vida em sociedade, a empatia para com o outro parece ser condição necessária para que uma comunidade persista. Ver o outro como aquele que possui os mesmos direitos que eu, que sente e tem as mesmas necessidades que eu tenho, ver o “eu” do outro como o meu “eu”, parece ser um passo fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igual para todos. O reconhecimento do eu no outro, essa reciprocidade entre o “eu” e o “outro”, é a base para que possamos construir uma ideia de direitos humanos universais.

Retomando a ideia do início do texto da surpresa do Leão e da Hiena com a violência dos seres humanos e seu desprezo pelo vida e pensando nas transformações políticas e sociais em marcha mundo afora, como as políticas de extrema-direita com discursos nacionalistas e autoritários, penso que os direitos humanos estão sob ameaça grave e os retrocessos em relação aos direitos conquistados não são apenas uma hipótese, mas uma realidade em vários lugares do mundo, como na Síria e na Venezuela e, inclusive, no Brasil.

Lynn Hunt nos fornece um bom caminho para superarmos a violência a que estamos expostos, seja pela ação dos governos internos, pelo conflito entre nações ou pelos interesses puramente econômicos dos grandes oligopólios financeiros internacionais: precisamos ler mais romances, aguçar a imaginação, desenvolver a empatia, criar um mundo melhor.