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Uma volta na Frei

Por Allyson Jullyan dos Santos Nascimento

 

Uma volta na Frei, respirando o ar da Liberdade, é cedinho e tem um sol limpo e harmonioso e só a São Benedito que quer desabar. Estamos com uma pandemia e no jornal não se fala de mais nada, nem de nós mesmos. Sigo na Antônino Freire e vejo o Karnak, estou cansado de ver ele ali, e vejo até além das paredes do próprio.  – Burle Marx que o fez: o jardim. Existe uma epistemologia clara na execução dos pensamentos ali expostos e a filosofia política não passa de uma matéria da graduação. Volto-me a esquerda e olho mais uma vez para a Frei: uma volta na Frei e o Santo preto está do lado de fora da Igreja, trepado, lá em cima: carnaúba e carnaubais. Um lugar tranquilo agora naquele momento e espaço, um jazz de reflexão explode num dado momento e misturado à autofagia da reflexão surge um debate: expressões intolerantes e humanas, de um lado, e os pombos, bem- ti- vis, rolinhas e pardais, de outro. Caldo de cana. Alguém está à beira da rua mas ninguém o vê. Chega a hora de uma filosofia de vida que dê conta desses extremos, significações tão claras de decadências humanas. Os pássaros voaram e tenho a impressão de liberdade.

 

 

O complexo de avestruz ou a grata sabedoria de estar consigo mesmo

Por Estevan de Negreiros Ketzer

 

gnvqi seauton /gnote theauton/ escrito no Oráculo de Delphos, significa simplesmente “conhece-te a ti mesmo”. Perturbador que algumas palavras ainda sejam tão cercadas de mistério e tão incompreendidas na história ocidental como esta. Agora, neste momento de desespero humano, epidemia traumática, pungente e, talvez, incontornável, em que nossos ideais foram desfeitos, a violência polarizada age contra nós. Teríamos nos perdido em nos adentrarmos em busca de nossas origens mais idiossincráticas?

Ainda que se possa dizer que um adolescente possui preocupações hormonais mais correntes que o princípio de realidade imposto à sociedade, não deixa de ser alarmante a produção em série de adolescentes atemporais: desinformação, insensibilidade ao que está fora do outro, emotividade instantânea e, não menos importante, vitimismo. E assim foi feito para que muito rapidamente também pudessem calar aqueles que buscam uma outra forma de educação, com mais rigor do que intensidade, mais vontade e autonomia do que entregar-se à fórmulas matemáticas desprovidas de experiência.

Na intelecção quase nunca temos estados de êxtase ou graça. Contudo, ali mora uma complexa reflexão anódina de uma pedra capaz de pensar a si mesmo, não com certezas, mas repleto de dúvidas. E sobreviver à dúvida não parece fácil. É nisto que se conjuga a falta de sabor com a explosão que a mídia e os intelectuais propõem um novo tipo de culto, desta vez completamente destituído de Deus. Cultua-se a matéria, mas o faz da seguinte forma: um aprendizado sobre a luta de classes que perpassa a história e o quanto a pessoa é culpada por ter privilégios; aprender a expiar esta culpa ao poder registrar sua revolta em manifestações populares com discursos de justiça e igualdade social; também lutar contra o vilão “fascista”, ou seja, qualquer um que ouse pensar outras maneiras de olhar o social sem utilizar-se de slogans panfletários; e finalmente, Amém, a ideia de que é melhor concordar do que contrariar. E este exemplo também vale para todo aquele que grita “comunista” de modo vexatório. É um mecanismo cultural emocional a nos afetar, em direção a uma resposta acalentadora diante ao atraso civilizacional vivido todos os dias. Como se toda a classe média que trabalha neste país fosse equivalente aos grandes capitalistas, ou players internacionais, alienados rancorosos e incultos, portanto, criminosos com o coletivo. Neste agrupamento fantasioso, cuja convivência é partilhada entre milicianos e coronéis, nosso sistema continua atuando de forma desenfreada contra qualquer um que assume o oposto dessa lógica ao repetir obviedades que não ajudam a diminuir o desemprego de mais de 12 milhões de brasileiros. Todos concordam imunizados e esterilizados com a remissão da culpa capitalista, porém atados ao mesmo sistema que não conseguem mudar. Talvez por não conseguirem nem mudar algo dentro de si mesmos.

Parece que todos já perderam a esperança. Pior do que isso: todos perdemos o ponto mediano tão importante à Aristóteles para que haja política e como resultado a comunhão entre as classes. Mas como encontrar em algum ponto mediano a esperança? Se o sistema é falido, se governo após governo tudo é a mesma situação e os poderosos obesos continuam no poder? E de forma surpreendente também nos deixamos guiar pelos instintos primitivos para ler coisas escritas com tamanha superficialidade. Nos tornamos assim sub-produtos na mão de burocratas com diploma superior. Sim, porque o Brasil é muito fordista quando se trata de criar massas pseudo-intelectuais que trabalham para uma mesma máfia de incompetentes bem remunerados, arrogantes, indignos da importância do cargo que ocupam, associados contra a sociedade civil ao utilizarem-se do aparelho público do Estado.

Simplesmente, tal como uma avestruz que esconde a cabeça embaixo da terra para que assim não se depare com a realidade pelo medo de não ter uma resposta, não saber enfrentar o instante difícil. E por esta razão olhar para aquilo do nosso passado primordial, da experiência de um menino com um lápis na mão, observando atentamente um quadro negro e uma professora falando alguma coisa que ela não sabe explicar bem. Seria isso possível? Seria dessa forma mesmo? Seria então a professora primária também uma avestruz assim como eu e muitos outros nos tornamos? Se somos avestruz porque não vem ninguém para nos ajudar a olhar e crescer?

A avestruz chegou e minha mão paralisou sobre o caderno. Naquela hora precisa a educação acabou e não voltaria a nascer por muitos anos uma vontade de aprender de modo genuíno. Pois só quando “conhece-te a ti mesmo” nasceu como berço da tradição e cultura é que podemos nos aproximar do que é “inteligência”, do latim, “o intelecto apreende o ser como verdade”. E se temos um ser ele também deve ser preservado na sua especificidade que me escapa se distorço intelectivamente o que ela se mostra aos nossos sentidos fazem. Eis o ideal da kalokagaqia /kalokagathia/, em que o bom e o belo compõem juntos a busca pela virtude, areth /areté/.  A falta de qualquer tipo de ideal de melhora contínua em nossa sociedade nos leva a um grande problema de proporções colossais sobre a educação. Os gregos assim denominaram de epistemh /episteme/ todo o saber de cunho científico, em oposição à precária opinião, chamada de doxa /doxa/ que temos quando apenas falamos em decorrência da parcialidade de nossa experiência pessoal, sem amplitude e profundidade investigativa necessária ao método científico galgado com ajuda dados registrados experimentalmente e arguta minúcia racional. Por estarmos sem uma base adequada ao conhecimento científico entramos na distorção cognitiva do analfabetismo funcional. Esta distorção diz respeito não apenas a relação signo e respectivo significado, incluindo inclusive dificuldade em perceber o objeto real que está à nossa frente. Este fato nos fecha em ideologias protetoras que custamos a nos desvencilhar, pois foram massificadas, tornaram-se um jargão simplista em que todos nos adaptamos para não ter de pensar. E os gregos também deram nome a este efeito: idiwthV /idiótes/, ou idiota, como sendo aquele que se fechou em um conhecimento e não é capaz de sair dele, questioná-lo, convocá-lo à prova da realidade que o circunda.

Tomados da sensação de culpa ou ressentimento pelas causas sociais poderíamos de fato nos deixar levar a uma saturação beligerante dos sentidos? E o mais curioso é que nem todas as coisas que vemos, escutamos e sentimos nos encantam mais. Assim, é um lamento profundo que não haja uma grande obra literária desde Guimarães Rosa e Clarice Lispector. As coisas já não são nem belas e nem boas. Tampouco podem ser livres para serem elas mesmas por medo de não estarem adequadas à grande massa ruidosa da maioria e sua voz cerceadora. Vozes da geração nem nem: nem trabalha, nem estuda, nem valorizar o que tem, nem a família, nem o amor genuíno a outra pessoa. Esse mundo que se torna triste porque é incapaz de investir em uma beleza autêntica, não como ideal, mas como prática diária e necessária à vida e permanência de um lastro social maduro que agregue a humanidade.

Memória em disputa: leitura de dois versos de Cuti

Por João Batista Sousa de Carvalho

 

Quantos 20 de novembro
O 13 de maio matou?
(Cuti)

Cuti – poeta paulista e estudioso da cultura negra – no seu poema “Teses”, do livro Negroesia (Mazza Edições, 2007), faz um questionamento à História: “quantos 20 de novembro/ o 13 de maio matou?”. A pergunta é construída tendo como principal vetor de significação o verbo matar, no tempo pretérito (“matou”). A carga semântica deste verbo remete à questão da violência, prática abominável, porém, por mais que seja combatida, está sempre presente nas relações humanas, sendo o ato de matar sua forma mais extrema. Matar é a destruição completa da vida. Nos versos de Cuti, relacionam-se com este verbo um sujeito (agente da ação de matar) e um objeto dessa ação. Com o uso do recurso da personificação, essas duas funções da frase são assumidas por duas datas históricas brasileiras: o 13 de maio (sujeito) e o 20 de novembro (objeto).

Pela forma como a pergunta foi formulada, infere-se que a voz poética tem convicção que nessa relação do sujeito com o objeto ocorreu/ocorre a violência extrema do ato de matar. O que não se sabe é quantas vezes isso ocorreu. Essas duas datas fazem parte do calendário nacional, e o poema, imageticamente, transfere-as para a rinha da história, como duas datas rivais. A leitura dos versos aponta que uma tem matado a outra. Por que e como isso tem ocorrido? A resposta quem dá é a própria história a que o poeta nos conduz com seu questionamento. Sabe-se que o 13 de maio sempre esteve atrelado à figura de uma princesa (Isabel) que, por ter assinado a Lei Áurea, é pretensamente posta como a redentora, a heroína das populações negras brasileiras, já que, com uma milagrosa “canetada”, salvou, assim, essas populações do cativeiro.

Por outro lado, o 20 de novembro homenageia Zumbi, uma das lideranças do maior quilombo do Brasil (Palmares), lembra o dia em que este guerreiro negro morreu, em luta pela liberdade de seu povo. É uma data de louvor à atitude de resistência a todo ato ou sistema que violenta os direitos dos sujeitos sociais negros. Pode-se entender que os versos do poeta visam desestabilizar uma força discursiva mantenedora de uma fake news histórica: as populações negras brasileiras não foram efetivamente beneficiadas com a assinatura da Lei Áurea. Não houve uma reparação, uma indenização para os indivíduos que viviam sob o regime de escravidão. Não houve justiça para com eles. A verdadeira alforria dessa gente está em construção, por meio de muita resistência, muitas estratégias de organização em defesa dos direitos conquistados.

A data que deve ser lembrada é a do 20 de novembro, porque o 13 de maio é demagógico; esta é uma data que os grupos sociais dominantes querem manter, como forma de ocultar a culpa que possuem sobre o sofrimento do passado e que prossegue nos dias atuais na vida da maioria das pessoas negras; é uma data que nega o protagonismo do povo negro na luta por liberdade e justiça. O 13 de maio é, sim, uma data assassina, pois ela mata o heroísmo negro, negligencia a capacidade que o povo negro sempre teve de encontrar formas de manter sua cultura, seus valores, seus saberes, suas crenças, em meio a tantas adversidades sociais. Fazer esquecer de Zumbi é um crime contra a memória histórica da resistência negra.

A pergunta dos versos de Cuti chama a atenção para essa disputa pelo controle da memória. Segundo Le Goff (2003), é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas tornarem-se senhores da memória e do esquecimento. Manipular o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido é uma estratégia de manutenção do poder. Portanto, o poeta leva o leitor a perceber essas armadilhas discursivas, e, em sintonia com a visão do historiador acima citado, faz, implicitamente, um requerimento para que haja justiça no exercício do lembrar histórico, para que, assim, “a memória coletiva sirva à libertação e não para a servidão dos homens”.

 

Máquina de fazer pensamentos

Por Estevan de Negreiros Ketzer

 

System One, da IBM

Tomamos o princípio da incerteza de Heisenberg: . Muito mais do que qualquer coisa que possamos entender, fora das observações laboratoriais, nos é necessário ter em mente o não entendimento do fenômeno quântico. Temos neste modelo da física uma delicada parte que parece agora fazer parte de nosso cotidiano sem nos darmos conta. Está inclusive agora em meu celular, transmitindo informações, muitas das quais influenciando diretamente minha vida, minhas decisões, inclusive quando não estou consciente de as estar tomando. Pois, para este domínio da física a energia é igual a multiplicação da Constante de Planck (h), da qual emana a radiação, com a velocidade do elétron, sendo sua fórmula consagrada:  . Isto porque Max Planck era apenas um cientista orgulhoso de seu esmerado trabalho acadêmico. Ele simplesmente experimentava em seu laboratório.

A aventura quântica nos levou seriamente a novas preocupações sobre os rumos da ciência no século XX. Friedrich Dürrenmatt descreveu muito bem este conflito em sua peça intitulada Os Físicos (Die Physiker), de 1962. Gostaria de ressaltar justamente o problema de que as descobertas da física poderão ser usadas para fins inescrupulosos, colocando os valores éticos sob suspeita, quando não ultrapassando-os rapidamente. Não podemos nos esquecer que só muito recentemente a IBM lançou seu computador quântico o System One em fevereiro de 2019. Esta importante marca nos leva a um novo paralelo histórico: o ser humano já não é mais capaz de competir com a máquina em termos de medida de conhecimento. O cálculo algorítmico desta máquina supera com perfeição, as variáveis da qualidade e do tempo, dados não paramétricos. Mais do que isso o System One é capaz de realizar pequenas modulações para atingir a curva pretendida, oferecendo previsões com grande exatidão, além de garantir sucesso ao entregar o exame esperado. O Big Data, como tem sido chamado pelos usuários do sistema Google tem criado novos mercados consumidores e feitos tantos outros desaparecerem por completo, ou os dispõe em fase proeminente de extinção.

Para melhorar este momento sublime, perdemos por completo a noção de liberdade tão cara a todos. Ser livre por quê? De alguma forma muito rápida e tão automática quanto um sistema cibernético simples, abrimos mão de sermos livres para atendermos a um ideal de conforto. Não é gratuito que o Estado esteja unido às grandes empresas monopolistas para obter um enorme conhecimento sobre nossas vidas. Um conhecimento que precisamente as empresas enxergam antes de nós. Yuval Noah Harari explica no programa Roda Viva, do dia 11 de novembro de 2019, acerca do conhecimento que uma empresa pode ter sobre o tempo de exposição que seu olho se detém sobre uma imagem do computador, determinando, em muitos graus, quais interesses estão ali, e assim “sugerir” qual marca é mais adequada para você. Estes elementos exploram de maneira complexa e muito mais eficaz a velocidade de resposta a um comportamento gerado pela interação social. É tão óbvio agora que nem vamos nos dar o luxo de reclamar, pois é parte do “progresso” civilizacional. A lógica não paramétrica do algoritmo lida com um homem precário, deficiente na tomada de suas escolhas, que ao lidar com as possibilidades de ser livre em direção a um futuro incerto, se fecha aonde seu comportamento é mais adaptado, para assim manter a aparência de que ele é livre, mas integrando sua mente a massa que guia a humanidade. A caixa de Skinner, ícone do comportamentalismo clássico da década de 1950, se tornou obsoleta.

Celebramos os resultados de uma ciência que se volta não apenas para acelerar os lucros especulativos, mas também para gerar um controle social nunca antes visto em quase seis mil anos de história ocidental. Este controle que hoje nos revoltamos, mas que até pouco tempo nos proporcionava um conforto surpreendente, a ponto de não vivermos mais sem Whatsapp, Twiter, Face e derivados do Google. Esta dependência chega ao ponto de eu escrever aqui e esses aplicativos para acelerar este texto e por esta razão também não desdenhar de seus avanços, mas celebrá-los como parte do desenvolvimento irretorquível da tecnologia assombrosa que o mundo liberal proporciona. Mais do que este problema de natureza inconciliável entre liberalismo e socialismo, é percebermos que aguardamos ansiosos a chegada ao mais completo estado de felicidade com tudo isto. Estado hipnótico de atender a necessidade imediata, gozo completo ao resplandecer toda a racionalidade que acreditamos inofensiva. E na falta de um travesseiro quente escorrega o delírio de um homem em frangalhos, naturalmente decepado de seu Netflix, indisponível ao movimento que hoje não podemos fazer devido a epidemia de Covid 19, sem data para terminar.

Então, o melhor momento para perder a autonomia chegou: em breve, quando a epidemia agravar, haverá o registro de nossos passos, a falta de abastecimento nos mercados, as companhias de internet não conseguindo dar conta da quantidade de usuários para, enfim, os mais aptos sobreviverem: não, este momento já chegou. A lógica darwiniana coro(n)a a cientificidade imaginada dos grandes homens quânticos. Será esta então a última era do homem antes de entregar-se à máquina? Entre a máquina que já chegou e o messias que ainda não veio também não será ali o nosso último de reflexão profunda sobre quem somos? Ou o ser humano pode sim se diferenciar da máquina? Uma nova forma de vida sem centro exato, espalhada por todos os lugares a nos observar com funções exatas, tão perto de um humano meio animal, quase máquina, quase tudo o que ainda puder ser ou se comprometer.

 

O delírio dos inumanos

Por  José Luís de Barros Guimarães

 

O real sucumbiu-se diante de nós! Perdeu toda a sua exuberância, limpidez e força persuasiva diante da veneração histérica da incompetente insciência. Pouco importa a imponência epistemológica das Ciências Humanas e Naturais, da compreensão sensível de mundo apresentada pelas mais revolucionárias artes experimentais, ou mesmo da impertinência humana que a reflexão filosófica há milênios nos traz. Todas estas denúncias, análises e narrativas têm sido enterradas “na vala comum de um discurso liberal”, como muito bem disse um compositor gaúcho que insiste em cantar que “A violência travestida faz seu trottoir”.

O real sucumbiu-se diante de nós! Mesmo diante das elaborações mentais que o pensamento denuncia ou na estética social que o concreto evidencia, a realidade despencou no abismo da histeria coletiva. O muro existencial que separava a civilização da barbárie ruiu, pois tivemos no santuário do parlamento uma menção elogiosa há um torturador sargento. E diante do culto de quem colocou rato na vagina das perseguidas políticas, bem como o silêncio ensurdecedor da elite burguesa em nome dos bons costumes e da família, santificamos os monstros e mostrificamos os sensíveis. E, a partir deste dia, perdemos a capacidade humana de diferenciarmos Jesus Cristo de Hitler. Banalizamos a vida e glorificamos a morte. Transformamos o Estado brasileiro na expressão sofisticada da necropolítica, mesmo diante da confirmação científica da letalidade da pandemia. E o Thanatos brasileiro, que ressurgiu dos porões imundos de 64, com o colapso da consciência vazia de uma massa apolítica, anestesiada e adormecida, assume sem receio que a vida não vale quase nada se a compararmos com o valor nefasto do dinheiro.

O real sucumbiu-se diante de nós! A terra tornou-se plana, os direitos humanos coisa de vagabundo, os livros converteram-se em mamadeiras de piroca, e a subserviência aos estadunidenses um ato patriótico. Os coachs foram eleitos como a nova comunidade científica, os produtores de fake news como os mais brilhantes jornalistas, o azul e rosa são as cores que determinam se somos meninos e meninas, da mesma maneira que o criacionismo se transformou na mais inovadora biologia. A afirmação de Nietzsche de que “nos indivíduos a loucura é algo raro, mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, regra”, nunca fez tanto sentido, pois estamos a viver uma verdadeiro “Ensaio sobre a cegueira”, como o José Saramago havia “previsto”.

O real sucumbiu-se diante de nós! Não existe mais diferença entre conhecimento científico e teoria da conspiração. Alguns governadores de direita, como Dória e Witzel, para os asseclas bolsonaristas, se transformaram nos mais novos comunistas, assim como a China está sendo chefiada pela cúpula petista. O fascismo consagrou-se como a mais nova religião da política brasileira e as mortes em massa, ocasionadas pela pandemia em parceria com o Estado, não deixou absolutamente ninguém como lágrima nos olhos. Os empresários se transformaram nos mais ilustres humanistas e os bancos privados em belas, nobres e justas organizações de filantropia.

O real sucumbiu-se diante de nós! A história do pensamento antigo apequenou-se diante dos sofisticados palavrões das teorias olavistas, tal qual as universidades construídas com o esforço dos medievalistas desmoronaram, em face da constatação de que o conhecimento produzido na academia é apenas um devaneio da burrice esquerdista. A luz da modernidade foi apagada com o negacionismo obscurantista dos terraplanistas e o bom senso cartesiano sepultado diante da esquizofrenia coletiva. É a roda grande entrando na roda pequena. É o céu cinza anunciando que o planeta vem respirando sob ajuda de aparelhos. É a humanidade assumindo a face sombria do ódio e do terror.  São os sonhos de justiça e equidade sendo implacavelmente triturados pela mão invisível do estado em um liquidificador. Trata-se inexoravelmente de uma Nova Era, que se impõe como farsa e tragédia, onde contemplamos perplexos como psicanalistas, que ouvem os grunhidos dos enfermos deitados em um divã, o delírio dos inumanos nos acordando diariamente como o sol radiante da manhã.