Wellington Soares

Coisas e outras

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Adriano Lobão Aragão: “Meu primeiro impulso era desenhar histórias em quadrinhos”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

 

Antes do poeta, conheci o professor que encantava os alunos com suas aulas de literatura. Não aulas comuns, decorebas, mas envolventes e cheias de humor. Daqueles que assimilaram direitinho, tão poucos hoje em dia, a sábia lição de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Maravilha é saber que Adriano Lobão Aragão, lotado agora no IFPI de Cocal, interior do Piauí, ainda continua no batente da sala de aula com a mesma paixão. Ele recitando versos de Gregório de Matos e Castro Alves, sendo acompanhado pelos alunos, é algo de marcar em definitivo nossas retinas tão fatigadas.

Foi ao ler um livro de H. Dobal, puro estranhamento, que sentiu o chamado pra se enamorar da poesia. Relação essa que mudou sua vida e que, a depender dele, vai perdurar eternamente. O livro em questão era O tempo consequente, lançado em 1966, do poeta teresinense consagrado dentro e fora do Piauí. Antes havia sido tocado, como quase todo brasileiro, pelos versos simples de Manuel Bandeira, para quem escrever é volúpia ardente, tristeza esparsa e remorso vão.

Somente depois fui conhecer sua obra, composta de poesia e ficção, com temas variados e linguagem bem cuidada, que desperta o interesse na gente a partir dos títulos. Entrega a própria lança na rude batalha em que morra, Os intrépidos andarilhos e outras margens e Destinerário, pra ficarmos em três apenas, são exemplos ilustrativos disso. Difícil é sair impune, acredite, desse impactante contato com seus textos.

Não bastasse, ainda se entrega à publicação da Desenredos, uma revista digital de cultura e literatura surgida em 2009, com foco em trabalhos artísticos e acadêmicos. Outro de seus entusiasmos é pelo desenho, arte que pratica com esmero e frequência, ilustrando capas e textos dos próprios livros. Quanto ao futebol, paixão também das grandes, é torcedor aguerrido do Flamengo e zagueiro do Ferrugem Futebol Clube, time formado por amigos das antigas.

Com a palavra agora, Adriano Lobão Aragão: professor excepcional, escritor múltiplo (poeta, contista e romancista), desenhista talentoso, torcedor rubro-negro, zagueiro dos bons e, acima de tudo, um ser humano fora de série.

 

Há quem diga que pra escrever o autor precisa estar com um certo estado de espírito. Você concorda?

Para ser bem franco, nunca penso sobre isso. Apenas escrevo e reescrevo continuamente. De qualquer forma, escrevo muito mais do que publico, e raramente publico a primeira versão de um texto. Quase todos são resultado de diversas reescritas feitas em momentos distintos. Então, pelo menos para mim, se há um estado de espírito, eu o chamo de trabalho, leitura e releitura.

Quais escritores e obras são importantes na sua construção literária?

Na adolescência, as histórias em quadrinhos de Frank Miller e os romances de Machado de Assis foram as primeiras a me instigar a tentar produzir alguma coisa. Manuel Bandeira foi fundamental para direcionar meu interesse para a poesia. Pouco depois de publicar meu primeiro livro, Uns Poemas, em 1999, lia constantemente João Cabral de Melo Neto, H. Dobal, T.S. Eliot, Rainer Maria Rilke e a tradução da Ilíada feita pelo Carlos Alberto Nunes. Creio que eles passaram a ser minhas influências mais recorrentes desde então. No âmbito da prosa, cito Italo Calvino (Se um viajante numa noite de inverno), Jorge Luis Borges (Ficções) e Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão) como indispensáveis para minha formação.

Embora escreva prosa, seu nome está mais ligado à poesia. Por que essa preferência pelo gênero lírico?

Não faço ideia. Cronologicamente, meu primeiro impulso foi o de me dedicar a desenhar histórias em quadrinhos. Depois, escrever romances. A preferência pela poesia só surgiu depois, mas acabou se tornando minha atividade artística predominante. No entanto, não penso muito sobre isso. Apenas vou fazendo o que instiga meu interesse expressivo em cada momento, independente do gênero.

Fala-se sempre que os estudantes brasileiros, em todos os níveis, estão lendo pouco ou quase nada. Como professor de literatura, você tem essa mesma impressão?

Penso que não apenas os estudantes. Isso é muito relativo e complexo. Sempre convivi com alunos desinteressados por leitura e com alunos ávidos por leitura. Almejo estimular os primeiros passos dos mais desinteressados e ampliar os horizontes dos mais ávidos. Numa sociedade tão desigual, tão injusta e iletrada, tento dedicar a eles o que de melhor eu possa oferecer nesse sentido.

Entre seus livros, qual o da sua preferência e qual teve melhor acolhida do público?

Destinerário, que reúne poemas sobre cidades, foi o que mais gostei de fazer. Para escrever os poemas que compõem o livro, estive em mais de 70 cidades espalhadas pelo Piauí, Ceará e alguns outros estados. E isso foi uma experiência muito instigante. E, felizmente, foi bem acolhido. Além do Destinerário, creio que o romance Os intrépidos andarilhos e outras margens e o livro de poemas As cinzas as palavras foram meus livros que melhor circularam.

Além de livros impressos, você e alguns amigos publicam uma revista virtual. Do que trata a Desenredos?

Comecei a publicar a revista eletrônica Desenredos, juntamente com Wanderson Lima, a partir de 2009, publicando poemas, contos, traduções, resenhas, ensaios, artigos acadêmicos. E esse trabalho continua até hoje, tendo como editores eu e Assunção Leal. A missão continua a mesma, estimular a criação artística e promover o debate de temas vinculados, direta ou indiretamente, à literatura. Sendo assim, a Desenredos não se propõe a ser uma revista literária stricto sensu, mas um espaço que, tomando a literatura como epicentro das Humanidades, esteja atento aos movimentos da Cultura.

O ministro da Economia do atual governo, Paulo Guedes, defende a taxação de livros sob o argumento de ser consumido somente pelos ricos. Que acha dessa proposta e de sua fundamentação?

Mais um atentado contra a educação, a cultura e a ciência. A fundamentação é, obviamente, tornar o livro ainda mais inacessível. De um desgoverno que menospreza a educação, a cultura, a ciência, o amparo social, o meio ambiente, os direitos trabalhistas, a liberdade sexual, e que busca continuamente promover o preconceito, a violência e a segregação social, não é possível esperar nada de proveitoso.

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Clara Mello: “Minha literatura é uma fábula de mim mesma”

 

Por Wellington Soares, professor e escritor

No texto que abre Vênus em câncer, sua estreia na poesia, Clara Mello não tem receio em se desnudar aos leitores: “Nasci com essa incoerência/ um corpo estreito e miúdo/ e uma alma enorme e pesada/ o resultado é leve”. Mas não pense que “Incompatibilidade”, título do poema, termina assim, sem mais nem menos. Ela vai fundo, de forma sucinta, nesse enigma pessoal – “Não vou dizer que não falho,/ às vezes eu caio,/ mas só caio porque voo”.

Voo esse que remonta, em termos literários, ao lançamento de As maluquices do papai, quando Clara tinha apenas oito anos de idade. A rigor, nada mais que os primeiros passos – um exercício literário – de uma garota aberta ao instigante mundo das palavras. Depois vieram A casa de Isabel, que publicou aos 16 anos, e Despedida, narrativas de pegada intimista e psicológica.

A paixão pelos livros, nascida ainda na meninice, a fez descobrir escritores que marcariam sua escrita, a exemplo de Clarice Lispector, Eça de Queiroz, Camões e, não podia faltar, Fernando Pessoa, cuja poética tem estudado ultimamente, a quem considera seu mestre principal. Além de levá-la à carreira literária e concluir Letras na UFRJ, uma das mais respeitadas universidades do país.

Outra faceta importante da Clara, pouco conhecida infelizmente, é a de roteirista de cinema e TV. A famosa série “As guardiães da floresta”, sobre lideranças amazônicas femininas, e “Encantadeiras”, um longa documental, têm sua participação direta. Sem falar ainda, acredite, em duas outras: a de letrista, a exemplos de “Navegante” e “Facada”, em parceria com Patrícia Mellodi; e a de fascinada por astrologia, como boa virginiana que é.

Mas por que ela afirma, na entrevista, que sua literatura é uma fábula de si mesma? Como não sou estraga-prazer, longe de mim essa pecha, deixo que você descubra por conta própria. Adianto somente que Clara é visceral em tudo que faz, uma teresinense radicada no Rio de Janeiro e filha de dois talentosos artistas piauienses: João Cláudio Moreno (humorista) e Patrícia Mellodi (cantora).

 

Há quem diga que nosso tempo não é propício à literatura diante do império da imagem, da velocidade e da internet. Você concorda?

Em parte sim, porque a literatura precisa de contemplação, espaço de interiorização, concentração, e o excesso de telas reduz tudo isso. E tudo tem que ser muito imagético, rápido, tem que ter dancinhas, gifs, memes, artes gráficas elaboradas, ser muito rápido e mastigado, se não, não engaja. E tudo isso é muito difícil. Ter blog, por exemplo, que foi uma marca do meu início de carreira, não é mais tão viável. Ninguém acessa mais. Por outro lado, a criatividade humana é infinita, e eu sou otimista. Eu confio no poder da literatura de resistir às mudanças do mundo. A velocidade traz agilidade, poder de síntese, novas redes sociais voltadas só para a literatura, com seus leitores de nicho, novas formas narrativas e poéticas. Pessoas que não conseguiriam chegar no mercado editorial e estão produzindo e vendendo on-line. Eu vi até poetas de TIK TOK, coisas que nunca pensei que veria. Não dá pra lutar contra certas forças, como a força das redes, então a gente tem que se adaptar na medida do possível e usar a nosso favor.

Ter pais artistas me mostrou que era possível viver de arte e fazer disso uma carreira profissional.

De que maneira ser filha de humorista com cantora ajudou em seguir a carreira literária?

Ter pais artistas, para começar, me mostrou que era possível viver de arte e fazer disso uma carreira profissional. Muitas pessoas têm as mesmas ou até mais aptidões que eu, mas nascem em contextos em que isso seria impossível, uma desonra, um tabu, uma ruptura familiar. Me ajudou a ter bagagem e referências diversas também, observar processos criativos, ter familiaridade com a criação, o mercado, conhecer pessoas. Os ambientes artísticos sempre estiveram próximos. E, de certo modo, já havia algum público preparado por eles disposto a ver o que eu faço. Cada trajetória é única, claro, e cada um passa pelos erros que precisa, mas ajuda muito ter o aconselhamento e a vivência dos pais, tentar se espelhar em certos acertos e evitar alguns equívocos. Além de poder criar em família, o que é um luxo. Minha mãe é uma enorme parceira de composição, por exemplo.

Relendo hoje seu primeiro livro, A Casa de Isabel, escrito aos 16 anos, você gosta do resultado ou faria alguma ressalva?

Estava relendo agora mesmo, depois de muitos anos, quase como um ritual de atleta, de dar impulso para trás para ir em frente, numa maratona. Faria várias ressalvas, vi vários furos na narrativa, coisas que não são tão verossímeis, uma linguagem que mal reconheço como minha, muito formal. Além do tema do suicídio, que se fosse hoje, eu faria com muito mais responsabilidade e cautela. Mas quando lembro a menina boba que escreveu, perdoo tudo e acho que está ótimo. Eu era muito nova, já tinha uma boa bagagem de leitura, mas pouquíssima bagagem de vida. E isso é insubstituível. Mas continuo gostando do resultado, e achando que foi um trabalho bem feito.

Em 2017, você ressurge com outro romance, Despedida, cuja marca da obra é o vazio. História ficcional ou autobiográfica?

Os dois. Para mim é muito difícil separar. Meu mestre maior é Fernando Pessoa, o camarada que contou para a gente que o poeta é um fingidor. Mas eu mesma não sou nenhum pouco fingidora. Só sei fazer literatura tirando de todas as entranhas e vísceras de mim. Eu sou quase um instrumento de experimentação científico da minha arte. Sempre me defini pelo meu ofício, não com adjetivos mas com verbos. Escrevo, crio, comunico, expresso. Isso é o que eu conheço de mim no mais íntimo e profundo. Ao mesmo tempo, dizer que é puramente autobiografia é excluir parte fundamental do meu trabalho e retirar do balaio todos os meus estudos e conhecimentos narrativos, ficcionais, etc. É como se fosse uma fábula de mim mesma. Está tudo ali, mas em simbologia, não literalmente.

Ao lançar Vênus em câncer, um livro de “quase-poemas”, segundo apresentado por você, senti da sua parte uma certa insegurança. Medo das críticas ou receio de não agradar os leitores?

Nenhum nem outro, acho. Definir como quase-poemas tem mais a ver com o meu enorme compromisso com a despretensão. Com a parte de mim que gosta de ser um pouco amadora. Acho que minha pulsão criadora nasce muito desse lugar de leveza e intimidade, que é simplesmente fazer, sem tentar ser nada em especial. Nesse lugar de eterna concepção, uma pré-criação, que nunca vai ficar pronta, porque me interessa muito mais o processo que a suposta chegada. Não inscrever em pedra o que aquele texto é me dá uma sensação de liberdade que me interessa muito. Não sei o quanto disso dá para separar da insegurança ou dos medos, mas como disse Clarice Lispector, nunca se sabe o defeito que está sustentando o edifício todo.

Além do amor, que outros assuntos são essenciais nos seus livros?

Talvez eu esteja escrevendo para tentar responder a essa pergunta, para achar os meus temas essenciais. Na verdade, acho que eu sou bem monotemática. Como disse Adélia Prado lindamente, talvez eu passe a vida inteira reescrevendo meu primeiro livro. Acho que esse tom reticente de sempre se perguntar o que mais a vida pode ser, o mais eu posso sentir, como pequenas coisas nos tiram do automático e nos levam a outras dimensões e olhares. Perceber os detalhes da existência como portais de expansão, é essa coisa sem nome, banal mas ao tempo tempo mágica, que é o assunto dos meus livros.

Pode-se considerar feminista sua obra?
Sim, com certeza. Embora raramente tenha essa temática de forma direta, a minha obra é totalmente sobre a liberdade de escolhas, expressão e vivências de um corpo feminino. Inevitavelmente, toda a minha criação é feminista.
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JL Rocha do Nascimento: “Nossa contística rompeu com o regionalismo tacanho”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Antes de apresentar o autor, contista consagrado da nossa literatura, faz-se necessário uma trilha sonora, de preferência com Evaldo Braga, um dos ídolos da música brega. Pra começo, que tal Sorria, sorria e Eu não sou lixo? Depois organizar, à maneira do cinema, a história em cenas distintas, mas interligadas. Artes essas que, inspirando a literatura, formam o alicerce da sua produção escrita.

 

Cena 1 

Meu interesse pelos seus textos remonta a 1979, quando ele, junto com Francisco Sales e Manoel de Moura Filho (Leonam), publicam Um dedo de prosa, livro meio artesanal e com capa do genial Fernando Costa.

Cena 2 

Lançamento em 2007, no Clube dos Diários, da antologia Geração de 1970 no Piauí: contos antológicos, reunindo textos de oito autores, entre eles JL e Aírton Sampaio, e belíssima capa de Antônio Amaral.

Cena 3 

Com o salão da Adufpi lotado, ele e Leonam e Aírton Sampaio lançam, em 2012, o mais belo livro erótico das letras piauienses, Dei pra mal dizer, JL abrindo o ousado projeto gráfico de Antônio Amaral com Fesceninos – “Instantes depois, nossas roupas misturadas pelo chão, nossos corpos nus perseguiam um ao outro e nossas carnes, trêmulas, ardiam em brasa.”, a exemplo desse trecho do conto Morangos silvestres.

Cena 4 

Em 2019, inaugura um novo marco na carreira literária, ao lançar Um clarão dentro da noite, seu primeiro livro individual, com boa acolhida dos críticos. Não tardou muito pra publicar este ano, embalado pelo incentivo dos leitores, Os pés descalços de Ava Gardner. E o que é melhor: existem outros no ponto de virem à tona brevemente.

Instigante na obra de JL, independente se coletiva ou individual, são as marcas da modernidade, diferencial que o distingue da maioria dos contistas locais: narrativas urbanas, densidade psicológica, linguagem trabalhada, intertextualidade e, traço importante, valorização do aspecto estético.

Embalado agora pelo som de Paulo Sérgio, outra referência do brega romântico – com as músicas Desiludido e Não creio em mais nada –, gênero  simpático a algumas de suas personagens, deixo com vocês esse oeirense que domina tão bem a palavra, quer como escritor, juiz do trabalho e professor.

  

1. Segundo João Cabral de Melo Neto, a vida não se resolve com palavras. Pode-se dizer o mesmo pra literatura? 

A vida não se resolve apenas com palavras, e sim com atos concretos, mas a palavra é nossa condição de possibilidade de estar no mundo, não temos acesso direto às coisas, tudo que fazemos na vida e no mundo é mediado pela linguagem, portanto, pela palavra. E se não resolve, pelo menos revolve, como diz o poeta. A literatura como recriação verbal da realidade bem cumpre esse papel, porque tanto o seu objeto como o processo de criação são linguísticos, tem a palavra como principal ferramenta.  

2. O que levou você, depois de integrar algumas obras coletivas, a trilhar uma carreira individual? 

Com o falecimento do Airton Sampaio em 2016, o grupo Tarântula de Contistas meio que se desfez, ficando reduzido a uma dupla (eu e o M de Moura filho, que o Bezerra JP muito antes já o tínhamos perdido para a esquizofrenia). O Airton era o elemento agregador do grupo, responsável por nos juntar quando passávamos muito tempo separados um dos outros, o que levou ele dizer, numa certa entrevista, que era uma pena que a literatura tivesse perdido dois escritores. Um para a magistratura, meu caso. Outro para a advocacia, o M. de Moura Filho. O direito bem que tentou, mas nunca conseguiu me separar da literatura. Ao contrário, por entender que o direito tem muito o que aprender com a arte literária, faço aproximações entre direito e literatura nas minhas pesquisas acadêmicas, trazendo o direito para dentro da literatura. Fiz isso na minha dissertação de mestrado e na Tese de Doutorado em Direito Público.  Em 2009, com o lançamento do livro “Geração de 1970 no Piauí: contos antológicos”, o Airton conseguiu reunir novamente o grupo e dessa (re)união surgiu em 2012 o livro “Dei pra mal dizer: contos eróticos”. Em 2016 estávamos preparando um novo livro, tendo a velhice como tema central, quando o projeto foi interrompido pela sua morte prematura. Meio que ficamos órfãos e resolvi partir para o voo solo e tenho incentivado o M de Moura Filho a fazer o mesmo. Em 2019 lancei o meu primeiro livro individual de contos (“Um clarão dentro da noite”), que teve uma boa recepção de crítica e de leitores. “Os pés descalços de Ava Gardner”, o segundo livro, deverei lançar no dia 22.05.21. Há um terceiro livro pronto em fase de revisão e a expectativa é publicá-lo até dezembro de 2021. Neste livro, intitulado provisoriamente “Dentro do olho do cão azul”, eu volto a trabalhar o erotismo como tema central. Há outros projetos. Para 2022, a publicação de mais dois livros, um de microcontos (“O livro de João”) e uma novela em construção, cujo título já está definido: “Diagnóstico precoce da farsa”. Em 2023, o projeto é partir para o meu primeiro romance.

3. Que objetivos buscavam vocês ao criarem o Grupo Tarântula de Contistas e de que forma essa experiência marcou a sua escrita? 

Entre nós havia algo em comum: idades aproximadas, ambiente universitário e a literatura com um sentido ontológico, como um existencial, um modo de ser. Além disso, nos identificávamos muito com o conto, talvez por ter sido este a principal expressão do “boom” literário surgido nos anos setenta e que deu origem a uma nova geração de escritores, contistas, sobretudo. Mas algo nos incomodava. A percepção de que o conto piauiense de até então não refletia esse movimento, ainda estava preso a temáticas regionais, não que esse tema não renda boas narrativas. A questão é outra. É que boa parte das obras não ultrapassavam a simples “contação” de causos, sem qualquer tipo de problematização, tratamento estético ou profundidade, enfim, ninguém se arriscava em penetrar territórios difíceis. O Airton tinha um nome pra isso: regionalismo tacanho. Resolvemos então criar o grupo Tarântula com o objetivo de, com um olhar crítico, propor uma contística centrada na problematização de temas urbanos, universais, mais complexos e provocativos, tudo isso sem descuidar da estética, da qualidade no tratamento dado à palavra escrita. Tais fundamentos são os que ainda movem minha escrita.

4. Ainda se pode considerar, no dizer do Mário de Andrade, qualquer texto um conto? 

Definir o que é o conto sempre foi uma tarefa difícil e olhe que estamos falando de uma das mais antigas formas de expressão literária. Trata-se de uma dificuldade própria dos textos em prosa, que não encontramos, por exemplo, na poesia. Quando lemos um poema, mesmo que tenha sido escrito em prosa, já temos a pré-compreensão de que se trata de um poema e não de um conto ou crônica.

Na prosa, não só a ficcional, recorrentemente se tem definido o conto a partir da distinção em relação aos demais subgêneros (romance, novela, crônica). E nem se diga que a extensão da narrativa é o critério mais acertado, que esse é o pior deles. Tome-se, por exemplo, “Um copo de cólera” e “Menina a caminho”, de Raduan Nassar. O primeiro tem um pouco mais de 80 páginas e é catalogado como um romance. O segundo é um conto, mas tem mais da metade das páginas do primeiro.

A tarefa se torna mais tormentosa quando o desafio é diferenciar o conto da crônica, pois ambos podem ser tanto curtos como longos. Com um agravante, dado que às vezes as estações se misturam e, nesse caso, dão origem a outra dificuldade: o conto pode não ser pura ficção, no sentido de invenção e a crônica pode revelar algo mais do que um simples retrato do cotidiano. Mas isso de se prender a um enquadramento rigoroso é muito complicado mesmo. Em muitos textos de Jorge Luís Borges, por exemplo, que só escreveu contos, fica difícil dizer onde começa o conto e onde termina o ensaio. Ele mistura tudo propositalmente, mas os chamou de contos, foram lidos como contos e foi nessa condição que se tornaram famosos, isso é o que importa.

Muito provavelmente a razão esteja com J. J. Veiga quando disse que a definição definitiva de conto nunca será encontrada e nem isso tem muita importância porque o conto é uma criação de mais de mil faces, portanto, é indefinível, e assim deverá continuar. Ou com Clarice Lispector ao dizer que era inútil querer enquadrá-la. Simplesmente não dava muito bola para essa classificação de gêneros e subgêneros.  Algo parecido já tinha feito Charles Baudelaire que ao publicar Le spleen de Paris (“As melancolias de Paris”), deu ao livro o subtítulo de “pequenos poemas em prosa”. No mesmo sentido, o contista peruano Julio Ramón Ribeyro com o livro “Prosas Apátridas”. Achou que a expressão “apátridas” merecia explicação e justificou pelo fato de que não havia como enquadrar plenamente a obra em nenhum dos gêneros, não pertencia a um território literário próprio. Talvez tenha sido por tudo isso que Mário de Andrade radicalizou ao dizer que “conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”. Em certa medida, continua valendo.

5.- Em “fesceninos”, contos que abrem o livro Dei pra Mal Dizer, escrito em parceria com Airton Sampaio e M. de Moura Filho, você mostra sua faceta erótica. A recepção foi a mesma dos livros anteriores? 

Embora recorrente, o erotismo ainda é um tema interditado, quase sempre visto com alguma com reserva, sobretudo por quem não sabe fazer distinção entre erotismo e pornografia. Parafraseando o filósofo alemão Hans-Giorg Gadamer, se o leitor quer compreender um texto, tem que deixar que ele diga algo, numa palavra: tem que dar uma chance ao texto. Foi isso que aconteceu. Quem suspendeu os seus pré-juízos e leu o livro, percebeu que o tratamento dado ao tema foi sério, há nele uma preocupação estética. Infelizmente, alguns leitores fizeram apenas juízos morais e não estéticos.

6. De que maneira Um clarão dentro da noite, seu primeiro livro solo, pode ser tomado como um divisor de águas em sua obra? 

Primeiro, por se tratar do marco inicial de uma virada na carreira. Ontem, as obras coletivas, hoje as obras individuais. Segundo, pelo fato de que o livro reflete o amadurecimento do escritor. É o primeiro de uma série de outros que se seguirão, a começar por “Os pés descalços de Ava Gardner”.

7. Observa-se entre nossos escritores contemporâneos um anseio grande em pertencer a academias literárias, desejo que não víamos tanto no passado. Como você analisa tal fenômeno e se tem essa pretensão?  

Trata-se de um fenômeno curioso, mas impensável há 40 anos. Faço parte de uma geração de escritores denominada pelo Airton Sampaio de “Geração 70”, cuja consciência foi forjada no meio do movimento estudantil universitário e em um ambiente de resistência e de luta contra a ditadura militar. Nesse cenário, havia uma aversão a tudo que, de algum modo, lembrasse ou se identificasse com o sistema, com o “establischment”. Justo ou não, tínhamos a percepção de que as academias de letras, em especial a ABL, assim como qualquer outro sodalício, com a pompa e a circunstância que lhe são próprias, eram alheias à realidade daquele momento da nossa história e isso meio que nos afastou da ideia de pretender pertencer a uma academia. Nossas referências eram Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, que nunca pertenceram à academia, tempo em que jamais poderíamos conceber um Ferreira Gullar envergando o fardão. Quando formamos o Grupo Tarântulas de Contistas na primeira metade dos anos 80, fizemos um pacto: quem ingressasse em alguma academia seria excluído do Grupo.

Claro que olhando pelo retrovisar, penso que, de certa forma, fomos rigorosos demais na crítica, mas há que se considerar o contexto em que a ideia se formou. Hoje não penso mais da mesma forma e reconheço o valor das academias. Quando digo isso, me refiro às instituições sérias e com propósitos definidos e vinculados à literatura, o que não inclui as meramente ornamentais e que, no limite, abrigam membros que nunca escreveram uma linha literária sequer.

Quanto ao anseio dos escritores contemporâneos em entrar para as academias, trata-se de um reflexo da realidade que vivemos hoje. Há uma notória carência de significantes e pertencer a uma academia, não importa qual, pode ser sinal de prestígio, pode render alguns dividendos, enfim serve para aumentar o portfólio do escritor, mesmo porque, não devemos esquecer, vivemos naquele mundo de que nos falava Zygmunt Bauman: fugaz, de tempos líquidos e instantâneos, que privilegia as efetividades quantitativas no lugar das qualitativas. Desse mundo, tudo indica que somos reféns. Quanto mais tentamos nos livrar, mais somos puxados para dentro. Ele, praticamente, nos obriga a sermos felizes, ainda que a felicidade que anunciamos para o mundo inteiro não passe de um autoengano. Quanto a mim, por enquanto continuo imune à picada do aguilhão. Não tenho interesse em ingressar em academia, mesmo porque não tenho méritos para tanto.

Marleide Lins: “O poema conciso me atrai por ser leve e imagético”

Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

Ela é uma pessoa intensa, a Marleide Lins, das que se entregam inteira a tudo que planeja. Tanto na vida pessoal quanto nos projetos culturais. Não faz nada pela metade ou mais ou menos. Quer como escritora, militante feminista, designer gráfico, editora e ativista política. Estou pra conhecer outra igual a essa paulista que veio ainda criança morar em Teresina. Daí minha profunda admiração por ela.

Sua trajetória literária percorreu caminho semelhante ao das grandes poetas dentro e fora do Brasil. Primeiro, adquiriu o gosto pela leitura desde cedo, hábito que a possibilitou viajar por infinitos horizontes. Segundo, descobriu alguns autores que a acompanhariam ao longo da vida, dentre outros, Maiakovski, Bashô e Bandeira. E, por último, decidiu ser escritora ao ler, em especial, duas obras: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

Embora tenha feito alguns rabiscos antes, a estreia em livro somente ocorreu aos 17 anos, com Sub-vivo, impresso em mimeógrafo (1979). Depois vieram, para deleite dos leitores, outros títulos, entre os quais Oito para ela (1992), Interno/externo (2002), Plexo solar (2010) e Lirismo antropofágico e outras iscas minimalistas (2016). Sem falar ainda, claro, de participação em antologias coletivas.

Marleide Lins tem preferência por textos curtos, tanto no verso como na prosa, estética que ela batiza de “incisão de gorduras”, estruturada de forma densa e profunda. O poema conciso me atrai por ser leve e imagético, diz ela, enquanto é fascinada por mini e microcontos. Ao invés da inspiração, coloca-se diante da escrita como uma operária da palavra, humildemente em busca da alquimia verbal e da síntese temática.

Como ela se põe toda no muito que faz, parafraseando Ricardo Reis, sem exagero nem exclusão, deixemos que seu brilho literário nos ilumine nesta entrevista.

Que acha da afirmação de George Braque, pintor francês, quando disse que “a arte é uma ferida transformada em luz”? 

L’art est une blessure qui devient lumière. Sim, a arte, ao revolver os nossos modos de subjetivação, fere, sangra e, às vezes, deixa cicatrizes. Creio q todas as autênticas linguagens de arte passam por este processo: ferida/treva q se torna “luz” ao funcionar como antídoto do próprio veneno causador da úlcera. Percebo em mim, especialmente, como produtora de literatura, o seu veneno e bálsamo. Antes eu dizia “poemas são luzes nas trevas”, hoje eu sei q são, também, “Luzes das trevas”. E mais além, por conexão, a arte/ferida/luz é contagiante, alcança outras pessoas, cria asas e se recria. Entre distintos, ela passa por processo semelhante ao habitar outras solidões. Salve, salve George Braque e a saga dos “malditos franceses”.

Quando sua mãe queria castigar os filhos, ela os obrigava a ler e contar-lhe o resumo da obra. Essa é uma boa estratégia pra se criar o hábito da leitura nas crianças? 

“Criar filhos é um ato político”. Gostaria de contextualizar: minha mãe nasceu em 1924, em Valença-PI. Aquele cenário rupestre, pleno de significados, cercado de signos pré-históricos e histórias de “cabocos brabos”, não dizia muito para Dona Cândida. Sua avó fora “pega no laço”, e isso não se repetiria com ela, “não aceitaria o cabresto do pai, generoso, mas tão rude com as filhas.” Minha mãe, menina, tinha outros anseios e forjou asas. Casou-se, se tornou viúva e se casou com o meu Pai. Viajou, trabalhou bastante e não teve tempo para estudo, mas gostava de ler romances. Minha mãe quis nos oferecer conhecimentos e cada um, ao seu modo, absorveu as suas lições e não “castigos”. Ela comprava enciclopédias, coleções de escritores brasileiros e estrangeiros e os grandes pensadores. Exercia o seu papel de mostrar limites e apresentar caminhos, buscava mudar o foco daquilo q ela não considerava saudável ou ético, usando como estratégia o mundo da literatura (além de “tacas”…). Era para pensar e não deixar criar teia de aranhas naquele investimento. Enquanto q no Brasil parte dos genitores “espancam” seus filhos, na Itália o “castigo” é mandá-los pensar. “Zitta! Resta qui a pensare.” “Silêncio! Fica aqui a pensar”.

Louvo a sua atitude, da aquisição das obras consideradas mais relevantes para a formação do pensamento humano, assim como a utilização desta estratégia para conhecermos mais, incluindo-nos naquele universo além da nossa realidade periférica. Para mim, uma satisfação! Aos quinze anos eu já lia os maiores filósofos, Sócrates, Platão, Schopenhauer… Dos dezessete aos vinte anos busquei Nietzsche, Heidegger, Sartre, Simone Beauvoir, Cioran e Clément Rosset, entre outros e outras. Na literatura, eu já lia Dostoiévski, Proust, Ezra Pound, Fernando Pessoa, entre outros clássicos. Creio que esta intimidade com a literatura promoveu, além do hábito da leitura, a necessidade de escrever. Aos oito anos, muito intimista, a palavra não me funcionava como um signo linguístico de comunicação, mas como abstração. Aproximei-me, à época, de uma literatura considerada fantástica/onírica/nonsense, mas de movimento transgressivo, Alice no país das maravilhas e Don Quixote de la Mancha. Nos meus rabiscos iniciais, aos dez anos, eram perceptíveis as pinceladas surrealistas. Salve, salve, Dona Cândida!

Entre outras, poema curto é característica marcante da sua obra. Qual a razão dessa preferência? 

“Eu não nasci assim…” Em 1979, lancei meu primeiro livro, Sub-vivo, em mimeógrafo, temática sociopolítica, pelo contexto em que vivíamos, no entanto a linguagem poética não era panfletária. Geração movimento literário/libertário conhecido como “Poesia Marginal ou Geração Mimeógrafo”. Um poema da fase: “Na frieza de cada canhão/em ferro/Criam-se ninhos de paz/em fogo/Vão-se aos ares os pombos/em massa.” Entre 1980 e 1987 fui desconstruindo e construindo uma poética para chamar de minha. Segundo o poeta Affonso Ávila, em Discurso da difamação do poeta, “todo criador é tributário de outros no processo de linguagem da poesia”. E Eu flanei do megapoema maiakovskiano e pessoano/Álvaro de Campos (niilista-metafórico), como exemplo, “Teresinália, últimos dias de piauípéria – 1982”, ao concreto e ao haicai. Mergulhei no lago do Bashô, mas não me aquietei com a natureza do “sapo”. Trouxe Olga Savary e Safo, a poeta da “Paideia” grega e de todos os tempos.

O poema conciso me atrai por ser leve e imagético, mas não raso. É denso e profundo. Simples e/ou sofisticado tem alcance imediato, o âmago. A concisão minimalista é traço da minha dicção poética e embora eu faça alguns haicais, ao “modo Guilhermino” e experimentos de tankas, não me considero uma haicaísta. Estou cada vez mais livre, sem amarras. Os meus livros Sem Plano e sem piloto; Oito para ela; Os sinos q dobravam em silêncio e Lirismo antropofágico e outras iscas minimalistas, representam esta estética de incisão de gorduras. Em prosa, escrevo mini e microcontos, mas as “redes sociais” já veiculam a “twitteratura”, outra tendência minimal.

Como editora, que motivação a leva a publicar grupos “invisíveis”, a exemplo de mulheres, imigrantes e exilados políticos? 

A literatura tem significativa importância como elemento de construção do pensamento social e representa a sociedade de um determinado espaço e época. Se ela é produzida e editada apenas por uma elite branca, androcêntrica, misógina e LGTBfóbica q detém o poder, certamente, a sua produção literária não será representativa, mas excludente. É preciso fazer ecoar as vozes gerais q são silenciadas e considerar o discurso e lugar de fala do outro, da outra, do outre. Sofremos de um racismo estrutural q afastou durante anos alguns segmentos sociais da produção do discurso e da literatura. Mulheres, pessoas negras e negros, imigrantes e LGBTQI+ foram intencionalmente colocados no vão da invisibilidade. Na literatura brasileira percebemos vários exemplos. No romance os personagens em sua maioria são brancos e quando a pessoa negra aparece é quase sempre de forma pejorativa. O homem negro é visto como “cafuçu”, desprovido de inteligência e objeto de desejo da mulher branca. A mulher é quase sempre a vilã das relações afetivas. Há uma tentativa, na academia, de embranquecer nomes negros como Machado de Assis e Mário de Andrade, ao tempo em que buscam invisibilizar nomes como Solano Trindade e Conceição Evaristo q não conseguiu ocupar uma vaga na ABL, quem sabe por ser mulher e negra.

Na historiografia literária do Piauí havia uma lacuna entre o século dezenove e meados do século XX sobre a participação da mulher na literatura piauiense. Para mudar este cenário, apareceram algumas mulheres q realizaram investigações e registros. Entre outras, cito a profª Teresinha Queiroz, Olívia Candeia, Algemira Mendes, minha parceira nas produções de literatura e gênero. Publicamos pela Avant Garde Edições a obra Escritoras piauienses – Século XIX a contemporaneidade e mais cinco títulos sobre literatura e gênero. Editei a série “Identidades e Diversidade Cultural”, conquistando a parceria de Síria Borges e de várias instituições brasileiras e estrangeiras, especialmente, de Portugal e países da África. Pelo teor investigativo, científico e cultural recebemos duas chancelas internacionais, “Selo Ano-Brasil/Portugal” e “Selo de Cultura da União Europeia – Artes e Gestos Humanos”. Com o Grupo Matizes publicamos a obra de dupla face Letra da diversidade – Cenas e literatura de livre expressão. Este ano será editada a Antologia Brasil-Moçambique, em parceria com o NEPA-Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro e afro-brasileira/UESPI e CCBM – Centro Cultural Brasil-Moçambique, com a curadoria de Assunção Sousa e Élio Ferreira e apoio do SIEC. Estamos organizando o livro de contos Racconti de farfalle / Contos das borboletas, a partir de laboratório de contos com transexuais brasileiras q residem na Itália e, com o Grupo Matizes, “Letras da diversidade – artigos acadêmicos”, entre outras obras.

Sob que aspecto o erotismo aparece em seus textos? 

O erotismo em alguns poemas meus e em minicontos aparece de forma lírica, imagética e, às vezes, homoerótica. Quase sempre são ficcionais… ou não. Cito este bem cinematográfico q não representa qualquer “escrevivência”: falo versus língua/pinga orvalho/e orgasmo finda. A análise fica a cargo da recepção. Alguns graduandos e mestrandos do curso de letras da Uespi já investigaram em meus livros este presente tema.

De que forma você explica o paraxodo entre a grande quantidade de obras poéticas lançadas e o reduzido número de leitores desse gênero literário

No momento não me considero apta para explicar tal fenômeno. O tema merece mais investigação. Quanto à formação de leitores de poemas, penso eu q se faz necessário descobrir q esta leitura é mais eficaz q “os tarjas pretas” e os livros de autoajuda. Poemas são antídotos fortes em doses homeopáticas, florais de Bach. Apresentar livros de poemas infantis a essa faixa etária, talvez seja a estratégia, pois é revolver subjetividades e incentivar o hábito à leitura. Eis o desafio: fazer com que a criança tenha intimidade e aprenda a brincar com as palavras desde cedo, interpretando-as e seus fenômenos oníricos e lúdicos, pois q este gênero contribui para a formação do imaginário criativo. Ponte entre o mundo real e o simbólico. Alguns pedagogos afirmam q a leitura poética pode contribuir, também, para o desenvolvimento cognitivo e sensibilidade estética. Portanto, é bastante significativo o empenho de alguns professores e professoras na formação de grandes leitores.

Que conselhos você dá a quem quer ser escritora? 

Conselhos? Difícil para algo tão intimista, mas diria q a leitura dos clássicos e dos contemporâneos, de todos os gêneros, se faz extremamente necessária, além da intimidade com a língua q se escreve. Outro ponto, importante não criar expectativas em relação à crítica, recepção da obra exposta. Clarice Lispector dizia não escrever para ninguém, apenas para si. Sim, também compreendo a escrita como necessidade orgânica e solitária, mas ao dar à luz a obra, a mesma cria asas. Então é escrever… escrever e escrever…e relaxar.

Nathan Sousa: “Literatura é, antes de tudo, um ato de prazer”

Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

De supetão, ele resumiu assim a história: “Você foi meu professor no Colégio Objetivo, perto do Verdão, lá pelo ano de 1990. Sala 2M306, até hoje na memória, com aulas maneiras de literatura – viagens nas quais embarquei de corpo e alma.” Lembrar tudo isso, acredite, é sinal que fiz bem o dever de casa em sala de aula. Sensação gratificante essa de marcar a vida dos nossos ex-alunos.

Mas o melhor ainda estava por vir, quando Nathan Sousa, feliz da vida, me presenteou com O percurso das horas, seu livro de estreia, lançado em 2012 no Salipi. De cara, gostei de Combate, texto em que diz, metalinguisticamente, que “escrever poemas/ é como rasgar a camisa,/ mostrar o peito,/ se armar com uma faca cega,/ olhar no olho do mundo/ e autorizar:/ pode vir”. Ali deu pra perceber, diante da atitude desafiadora frente à escrita e à própria existência, um escritor que cavaria um lugar de destaque na literatura. Dentro e fora do estado.

Ser lembrado pelos alunos é algo maravilhoso, imagina reencontrar um deles que, sob o ponto de vista da leitura e da escrita, supera de longe o antigo mestre do ensino médio. É a glória total nesses casos. Além de torcer pelo sucesso na carreira literária, fui tratar de ler sua obra, hoje premiadíssima, e acompanhar seu crescimento literário.

Destaco entre os catorze já publicados, englobando poesia e ficção, os seguintes títulos: Um esboço de nudez (2014), livro finalista do Jabuti57; Nenhum aceno será esquecido, seu primeiro romance; Semântica das aves (2017), Prêmio Internacional Vicente de Carvalho (UBE/RJ); e Anfíbia (2019). Em todos eles a literatura, pra nosso deleite, transformada em exercício estético, a novidade em linguagem para espanto e estranheza do leitor.

Agora vamos conferir, sem mais delongas, o porquê da literatura, segundo Nathan Sousa, ser um ato de prazer.

 

Você acredita também que a escrita, como afirmava Drummond, é uma luta vã? 

Certamente. Porque a palavra nada mais é do que um artefato rudimentar que encontramos para que possamos dar vazão a uma necessidade orgânica que é típica dos seres humanos: a comunicação. De algum modo, precisamos expressar algo. Ainda que seja para ninguém. Como disse Ferreira Gullar: “é próprio da palavra/não dizer/ou/melhor dizendo/só dizer”. Portanto, lutar contra as próprias armas não é uma luta perdida; é uma luta sem sentido.

Em que momento o garoto de São Gonçalo meteu na cabeça que seria escritor? 

A paixão pelos livros se deu ainda na infância, quando minha mãe comprou, de um vendedor ambulante, em Santa Inês (MA), lá pelo final da década de 1970, uma coleção de livros infantis para mim e para a minha irmã. Sou filho de um caminhoneiro e eletricista rural, e de uma professora do primário que também era artesã. Tratava-se da coleção “Reino Colorido da Criança”. Mas foi somente na década de 1990, quando eu já estava na Universidade, cursando Economia, que eu, totalmente tomado pela literatura, ainda que de uma maneira um tanto boêmia, procurei amadurecer a ideia. Confesso que quase tudo em minha vida aconteceu de maneira tardia. Curiosamente, eu não pretendia enveredar pela poesia, mas pelo romance. Até que um dia, já em 2010, instigado pela leitura de poetas como Marina Colasanti, Ferreira Gullar, Salgado Maranhão, Rainer Maria Rilke e Carlos Drummond de Andrade, eu suspirei fundo e mergulhei na realidade. Para que o primeiro livro saísse, vendi um Ford Del Rey que eu ganhara de meu pai, e que eu o batizei carinhosamente de “Bob Dylan”, e contei com o apoio da prefeitura municipal de São Gonçalo e com a ajuda de uma tia. O milagre aconteceu em agosto de 2012. Saiu, então, meu primeiro livro: O percurso das horas.

Como explicar o fato de continuar desconhecido entre os leitores, apesar de ser hoje o autor piauiense mais premiado? 

Ocorrem alguns fenômenos paralelamente para explicar essa questão. Primeiro: eu nunca tive apoio ou dispus de condições financeira suficientes para tirar mais de 1000 exemplares por edição, o que torna o meu poder de distribuição limitadíssimo. Segundo: só consegui publicar meus livros através de editoras pequenas, ou seja, que esbarram na dificuldade anteriormente citada. Terceiro: poesia é o gênero menos lido e, talvez pela sua estrutura linguista, pelo uso de metáforas e por seu poder de concisão, desperta menor interesse de leitura na população. As premiações me ajudaram muito a divulgar meu nome. Não a divulgar meus livros. De modo que acabei caindo em uma armadilha: sou muito conhecido entre os escritores e leitores de poesia, e pouco conhecido entre leitores de prosa, ou seja, ainda sou desconhecido para o público maior de leitores.

Por que você afirma em Anfíbia, texto que dá nome a uma de suas obras poéticas, que “nasci para parir o esquecimento”? 

Por ser poeta e, como foi tratado na questão anterior, representar uma voz que é praticamente inaudível. Por saber que a minha expressão atinge muito poucas pessoas, considerando que pouca gente se interessa, verdadeiramente, por poesia. Mesmo sabendo que a condição de “ser poeta” não depende desta realidade. O poeta não escolhe ser poeta. Há uma força inexplicável que o torna assim. Ainda assim, há uma constatação estranha (e feliz): tal esquecimento não representa uma limitação que nos impossibilite de continuar escrevendo que a poesia nos chama. Sem querer cair na vala comum, é uma atividade artística-existencial que se parece muito com a do semeador. Se a planta vai nascer, aí são outros quinhentos.

De que forma sua obra dialoga com a música e o cinema? 

Sou letrista de uma maneira quase acidental, porém, a relação da minha obra com a música ocorre de modo muito intenso. Sabemos que escrever poemas e escrever letra de música são ações com propósitos diferentes, o que acaba nos levando a “dançar” a mão sobre o papel de maneira diversa. No mais, a sonoridade que eu busco no poema beira a uma espécie de canto extinto; de uma oração deixada por algum profeta em um lugar remoto. Do cinema, eu me atenho à formação de boas imagens, como se fossem fotografias em movimento, além de projeção de um tempo que ainda dorme, dada a minha afeição a filmes como Blade Runer e Mad Max, tendo em vista que trabalhar essa perspectiva de novas formas de vida e linguagem me atrai muito. É comum você encontrar essas formas em meus poemas. Há uma comunicação – e isso se dá de maneira intencional – com diversas artes porque eu sinto essa necessidade, ou seja, de me banhar em rios, mares, açudes e lamaçais para sentir que estou dizendo algo que vai além de um simples relato. Como eu já disse em um poema: “Nada do que escrevo vem dos desertos”.

Quais temas perpassam indelevelmente sua literatura? 

O corpo, a geografia (mais humana do que física), a memória e a própria linguagem. Olhando o percurso de minhas horas, agora que muita coisa se passou, percebo que sempre estive intrigado com essa relação: homem-mundo-linguagem. Talvez aí esteja a sombra de Mário Faustino ou mesmo de Ezra Pound, mas nada disso me acompanha sobre as águas da consciência. Ainda assim, eu posso dizer, sem titubear, que o tempo é o tema soberano na minha produção, independente do gênero.

Certo país adotou como punição, aos que eram pegos sem máscara, a leitura de livros. Que pensa dessa medida? 

Peço aos deuses e deusas da literatura que isso nunca aconteça com meus livros. Literatura tem que ser, antes de tudo, um ato de prazer. Ninguém vai tomar gosto pela leitura por métodos que não despertem tesão. Ninguém passou a ler ou ler mais nessa pandemia por causa do confinamento. Quem leu mais é porque já gostava de ler. E escrever, por sua vez, é uma representação da volúpia. Ler é um descortinar interminável de rotas para o desconhecido. Se isso não acontecer, vão apenas engrossar a fila dos que detestam a leitura. O livro é um pássaro, e ter a leitura como punição é ter que contemplar esse pássaro na gaiola. Na boa: não dá pra mim!