Por Wellington Soares, professor e escritor 

 

Ela é uma pessoa intensa, a Marleide Lins, das que se entregam inteira a tudo que planeja. Tanto na vida pessoal quanto nos projetos culturais. Não faz nada pela metade ou mais ou menos. Quer como escritora, militante feminista, designer gráfico, editora e ativista política. Estou pra conhecer outra igual a essa paulista que veio ainda criança morar em Teresina. Daí minha profunda admiração por ela.

Sua trajetória literária percorreu caminho semelhante ao das grandes poetas dentro e fora do Brasil. Primeiro, adquiriu o gosto pela leitura desde cedo, hábito que a possibilitou viajar por infinitos horizontes. Segundo, descobriu alguns autores que a acompanhariam ao longo da vida, dentre outros, Maiakovski, Bashô e Bandeira. E, por último, decidiu ser escritora ao ler, em especial, duas obras: Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

Embora tenha feito alguns rabiscos antes, a estreia em livro somente ocorreu aos 17 anos, com Sub-vivo, impresso em mimeógrafo (1979). Depois vieram, para deleite dos leitores, outros títulos, entre os quais Oito para ela (1992), Interno/externo (2002), Plexo solar (2010) e Lirismo antropofágico e outras iscas minimalistas (2016). Sem falar ainda, claro, de participação em antologias coletivas.

Marleide Lins tem preferência por textos curtos, tanto no verso como na prosa, estética que ela batiza de “incisão de gorduras”, estruturada de forma densa e profunda. O poema conciso me atrai por ser leve e imagético, diz ela, enquanto é fascinada por mini e microcontos. Ao invés da inspiração, coloca-se diante da escrita como uma operária da palavra, humildemente em busca da alquimia verbal e da síntese temática.

Como ela se põe toda no muito que faz, parafraseando Ricardo Reis, sem exagero nem exclusão, deixemos que seu brilho literário nos ilumine nesta entrevista.

Que acha da afirmação de George Braque, pintor francês, quando disse que “a arte é uma ferida transformada em luz”? 

L’art est une blessure qui devient lumière. Sim, a arte, ao revolver os nossos modos de subjetivação, fere, sangra e, às vezes, deixa cicatrizes. Creio q todas as autênticas linguagens de arte passam por este processo: ferida/treva q se torna “luz” ao funcionar como antídoto do próprio veneno causador da úlcera. Percebo em mim, especialmente, como produtora de literatura, o seu veneno e bálsamo. Antes eu dizia “poemas são luzes nas trevas”, hoje eu sei q são, também, “Luzes das trevas”. E mais além, por conexão, a arte/ferida/luz é contagiante, alcança outras pessoas, cria asas e se recria. Entre distintos, ela passa por processo semelhante ao habitar outras solidões. Salve, salve George Braque e a saga dos “malditos franceses”.

Quando sua mãe queria castigar os filhos, ela os obrigava a ler e contar-lhe o resumo da obra. Essa é uma boa estratégia pra se criar o hábito da leitura nas crianças? 

“Criar filhos é um ato político”. Gostaria de contextualizar: minha mãe nasceu em 1924, em Valença-PI. Aquele cenário rupestre, pleno de significados, cercado de signos pré-históricos e histórias de “cabocos brabos”, não dizia muito para Dona Cândida. Sua avó fora “pega no laço”, e isso não se repetiria com ela, “não aceitaria o cabresto do pai, generoso, mas tão rude com as filhas.” Minha mãe, menina, tinha outros anseios e forjou asas. Casou-se, se tornou viúva e se casou com o meu Pai. Viajou, trabalhou bastante e não teve tempo para estudo, mas gostava de ler romances. Minha mãe quis nos oferecer conhecimentos e cada um, ao seu modo, absorveu as suas lições e não “castigos”. Ela comprava enciclopédias, coleções de escritores brasileiros e estrangeiros e os grandes pensadores. Exercia o seu papel de mostrar limites e apresentar caminhos, buscava mudar o foco daquilo q ela não considerava saudável ou ético, usando como estratégia o mundo da literatura (além de “tacas”…). Era para pensar e não deixar criar teia de aranhas naquele investimento. Enquanto q no Brasil parte dos genitores “espancam” seus filhos, na Itália o “castigo” é mandá-los pensar. “Zitta! Resta qui a pensare.” “Silêncio! Fica aqui a pensar”.

Louvo a sua atitude, da aquisição das obras consideradas mais relevantes para a formação do pensamento humano, assim como a utilização desta estratégia para conhecermos mais, incluindo-nos naquele universo além da nossa realidade periférica. Para mim, uma satisfação! Aos quinze anos eu já lia os maiores filósofos, Sócrates, Platão, Schopenhauer… Dos dezessete aos vinte anos busquei Nietzsche, Heidegger, Sartre, Simone Beauvoir, Cioran e Clément Rosset, entre outros e outras. Na literatura, eu já lia Dostoiévski, Proust, Ezra Pound, Fernando Pessoa, entre outros clássicos. Creio que esta intimidade com a literatura promoveu, além do hábito da leitura, a necessidade de escrever. Aos oito anos, muito intimista, a palavra não me funcionava como um signo linguístico de comunicação, mas como abstração. Aproximei-me, à época, de uma literatura considerada fantástica/onírica/nonsense, mas de movimento transgressivo, Alice no país das maravilhas e Don Quixote de la Mancha. Nos meus rabiscos iniciais, aos dez anos, eram perceptíveis as pinceladas surrealistas. Salve, salve, Dona Cândida!

Entre outras, poema curto é característica marcante da sua obra. Qual a razão dessa preferência? 

“Eu não nasci assim…” Em 1979, lancei meu primeiro livro, Sub-vivo, em mimeógrafo, temática sociopolítica, pelo contexto em que vivíamos, no entanto a linguagem poética não era panfletária. Geração movimento literário/libertário conhecido como “Poesia Marginal ou Geração Mimeógrafo”. Um poema da fase: “Na frieza de cada canhão/em ferro/Criam-se ninhos de paz/em fogo/Vão-se aos ares os pombos/em massa.” Entre 1980 e 1987 fui desconstruindo e construindo uma poética para chamar de minha. Segundo o poeta Affonso Ávila, em Discurso da difamação do poeta, “todo criador é tributário de outros no processo de linguagem da poesia”. E Eu flanei do megapoema maiakovskiano e pessoano/Álvaro de Campos (niilista-metafórico), como exemplo, “Teresinália, últimos dias de piauípéria – 1982”, ao concreto e ao haicai. Mergulhei no lago do Bashô, mas não me aquietei com a natureza do “sapo”. Trouxe Olga Savary e Safo, a poeta da “Paideia” grega e de todos os tempos.

O poema conciso me atrai por ser leve e imagético, mas não raso. É denso e profundo. Simples e/ou sofisticado tem alcance imediato, o âmago. A concisão minimalista é traço da minha dicção poética e embora eu faça alguns haicais, ao “modo Guilhermino” e experimentos de tankas, não me considero uma haicaísta. Estou cada vez mais livre, sem amarras. Os meus livros Sem Plano e sem piloto; Oito para ela; Os sinos q dobravam em silêncio e Lirismo antropofágico e outras iscas minimalistas, representam esta estética de incisão de gorduras. Em prosa, escrevo mini e microcontos, mas as “redes sociais” já veiculam a “twitteratura”, outra tendência minimal.

Como editora, que motivação a leva a publicar grupos “invisíveis”, a exemplo de mulheres, imigrantes e exilados políticos? 

A literatura tem significativa importância como elemento de construção do pensamento social e representa a sociedade de um determinado espaço e época. Se ela é produzida e editada apenas por uma elite branca, androcêntrica, misógina e LGTBfóbica q detém o poder, certamente, a sua produção literária não será representativa, mas excludente. É preciso fazer ecoar as vozes gerais q são silenciadas e considerar o discurso e lugar de fala do outro, da outra, do outre. Sofremos de um racismo estrutural q afastou durante anos alguns segmentos sociais da produção do discurso e da literatura. Mulheres, pessoas negras e negros, imigrantes e LGBTQI+ foram intencionalmente colocados no vão da invisibilidade. Na literatura brasileira percebemos vários exemplos. No romance os personagens em sua maioria são brancos e quando a pessoa negra aparece é quase sempre de forma pejorativa. O homem negro é visto como “cafuçu”, desprovido de inteligência e objeto de desejo da mulher branca. A mulher é quase sempre a vilã das relações afetivas. Há uma tentativa, na academia, de embranquecer nomes negros como Machado de Assis e Mário de Andrade, ao tempo em que buscam invisibilizar nomes como Solano Trindade e Conceição Evaristo q não conseguiu ocupar uma vaga na ABL, quem sabe por ser mulher e negra.

Na historiografia literária do Piauí havia uma lacuna entre o século dezenove e meados do século XX sobre a participação da mulher na literatura piauiense. Para mudar este cenário, apareceram algumas mulheres q realizaram investigações e registros. Entre outras, cito a profª Teresinha Queiroz, Olívia Candeia, Algemira Mendes, minha parceira nas produções de literatura e gênero. Publicamos pela Avant Garde Edições a obra Escritoras piauienses – Século XIX a contemporaneidade e mais cinco títulos sobre literatura e gênero. Editei a série “Identidades e Diversidade Cultural”, conquistando a parceria de Síria Borges e de várias instituições brasileiras e estrangeiras, especialmente, de Portugal e países da África. Pelo teor investigativo, científico e cultural recebemos duas chancelas internacionais, “Selo Ano-Brasil/Portugal” e “Selo de Cultura da União Europeia – Artes e Gestos Humanos”. Com o Grupo Matizes publicamos a obra de dupla face Letra da diversidade – Cenas e literatura de livre expressão. Este ano será editada a Antologia Brasil-Moçambique, em parceria com o NEPA-Núcleo de Estudos e Pesquisas Afro e afro-brasileira/UESPI e CCBM – Centro Cultural Brasil-Moçambique, com a curadoria de Assunção Sousa e Élio Ferreira e apoio do SIEC. Estamos organizando o livro de contos Racconti de farfalle / Contos das borboletas, a partir de laboratório de contos com transexuais brasileiras q residem na Itália e, com o Grupo Matizes, “Letras da diversidade – artigos acadêmicos”, entre outras obras.

Sob que aspecto o erotismo aparece em seus textos? 

O erotismo em alguns poemas meus e em minicontos aparece de forma lírica, imagética e, às vezes, homoerótica. Quase sempre são ficcionais… ou não. Cito este bem cinematográfico q não representa qualquer “escrevivência”: falo versus língua/pinga orvalho/e orgasmo finda. A análise fica a cargo da recepção. Alguns graduandos e mestrandos do curso de letras da Uespi já investigaram em meus livros este presente tema.

De que forma você explica o paraxodo entre a grande quantidade de obras poéticas lançadas e o reduzido número de leitores desse gênero literário

No momento não me considero apta para explicar tal fenômeno. O tema merece mais investigação. Quanto à formação de leitores de poemas, penso eu q se faz necessário descobrir q esta leitura é mais eficaz q “os tarjas pretas” e os livros de autoajuda. Poemas são antídotos fortes em doses homeopáticas, florais de Bach. Apresentar livros de poemas infantis a essa faixa etária, talvez seja a estratégia, pois é revolver subjetividades e incentivar o hábito à leitura. Eis o desafio: fazer com que a criança tenha intimidade e aprenda a brincar com as palavras desde cedo, interpretando-as e seus fenômenos oníricos e lúdicos, pois q este gênero contribui para a formação do imaginário criativo. Ponte entre o mundo real e o simbólico. Alguns pedagogos afirmam q a leitura poética pode contribuir, também, para o desenvolvimento cognitivo e sensibilidade estética. Portanto, é bastante significativo o empenho de alguns professores e professoras na formação de grandes leitores.

Que conselhos você dá a quem quer ser escritora? 

Conselhos? Difícil para algo tão intimista, mas diria q a leitura dos clássicos e dos contemporâneos, de todos os gêneros, se faz extremamente necessária, além da intimidade com a língua q se escreve. Outro ponto, importante não criar expectativas em relação à crítica, recepção da obra exposta. Clarice Lispector dizia não escrever para ninguém, apenas para si. Sim, também compreendo a escrita como necessidade orgânica e solitária, mas ao dar à luz a obra, a mesma cria asas. Então é escrever… escrever e escrever…e relaxar.