Por Wellington Soares, professor e escritor

No texto que abre Vênus em câncer, sua estreia na poesia, Clara Mello não tem receio em se desnudar aos leitores: “Nasci com essa incoerência/ um corpo estreito e miúdo/ e uma alma enorme e pesada/ o resultado é leve”. Mas não pense que “Incompatibilidade”, título do poema, termina assim, sem mais nem menos. Ela vai fundo, de forma sucinta, nesse enigma pessoal – “Não vou dizer que não falho,/ às vezes eu caio,/ mas só caio porque voo”.

Voo esse que remonta, em termos literários, ao lançamento de As maluquices do papai, quando Clara tinha apenas oito anos de idade. A rigor, nada mais que os primeiros passos – um exercício literário – de uma garota aberta ao instigante mundo das palavras. Depois vieram A casa de Isabel, que publicou aos 16 anos, e Despedida, narrativas de pegada intimista e psicológica.

A paixão pelos livros, nascida ainda na meninice, a fez descobrir escritores que marcariam sua escrita, a exemplo de Clarice Lispector, Eça de Queiroz, Camões e, não podia faltar, Fernando Pessoa, cuja poética tem estudado ultimamente, a quem considera seu mestre principal. Além de levá-la à carreira literária e concluir Letras na UFRJ, uma das mais respeitadas universidades do país.

Outra faceta importante da Clara, pouco conhecida infelizmente, é a de roteirista de cinema e TV. A famosa série “As guardiães da floresta”, sobre lideranças amazônicas femininas, e “Encantadeiras”, um longa documental, têm sua participação direta. Sem falar ainda, acredite, em duas outras: a de letrista, a exemplos de “Navegante” e “Facada”, em parceria com Patrícia Mellodi; e a de fascinada por astrologia, como boa virginiana que é.

Mas por que ela afirma, na entrevista, que sua literatura é uma fábula de si mesma? Como não sou estraga-prazer, longe de mim essa pecha, deixo que você descubra por conta própria. Adianto somente que Clara é visceral em tudo que faz, uma teresinense radicada no Rio de Janeiro e filha de dois talentosos artistas piauienses: João Cláudio Moreno (humorista) e Patrícia Mellodi (cantora).

 

Há quem diga que nosso tempo não é propício à literatura diante do império da imagem, da velocidade e da internet. Você concorda?

Em parte sim, porque a literatura precisa de contemplação, espaço de interiorização, concentração, e o excesso de telas reduz tudo isso. E tudo tem que ser muito imagético, rápido, tem que ter dancinhas, gifs, memes, artes gráficas elaboradas, ser muito rápido e mastigado, se não, não engaja. E tudo isso é muito difícil. Ter blog, por exemplo, que foi uma marca do meu início de carreira, não é mais tão viável. Ninguém acessa mais. Por outro lado, a criatividade humana é infinita, e eu sou otimista. Eu confio no poder da literatura de resistir às mudanças do mundo. A velocidade traz agilidade, poder de síntese, novas redes sociais voltadas só para a literatura, com seus leitores de nicho, novas formas narrativas e poéticas. Pessoas que não conseguiriam chegar no mercado editorial e estão produzindo e vendendo on-line. Eu vi até poetas de TIK TOK, coisas que nunca pensei que veria. Não dá pra lutar contra certas forças, como a força das redes, então a gente tem que se adaptar na medida do possível e usar a nosso favor.

Ter pais artistas me mostrou que era possível viver de arte e fazer disso uma carreira profissional.

De que maneira ser filha de humorista com cantora ajudou em seguir a carreira literária?

Ter pais artistas, para começar, me mostrou que era possível viver de arte e fazer disso uma carreira profissional. Muitas pessoas têm as mesmas ou até mais aptidões que eu, mas nascem em contextos em que isso seria impossível, uma desonra, um tabu, uma ruptura familiar. Me ajudou a ter bagagem e referências diversas também, observar processos criativos, ter familiaridade com a criação, o mercado, conhecer pessoas. Os ambientes artísticos sempre estiveram próximos. E, de certo modo, já havia algum público preparado por eles disposto a ver o que eu faço. Cada trajetória é única, claro, e cada um passa pelos erros que precisa, mas ajuda muito ter o aconselhamento e a vivência dos pais, tentar se espelhar em certos acertos e evitar alguns equívocos. Além de poder criar em família, o que é um luxo. Minha mãe é uma enorme parceira de composição, por exemplo.

Relendo hoje seu primeiro livro, A Casa de Isabel, escrito aos 16 anos, você gosta do resultado ou faria alguma ressalva?

Estava relendo agora mesmo, depois de muitos anos, quase como um ritual de atleta, de dar impulso para trás para ir em frente, numa maratona. Faria várias ressalvas, vi vários furos na narrativa, coisas que não são tão verossímeis, uma linguagem que mal reconheço como minha, muito formal. Além do tema do suicídio, que se fosse hoje, eu faria com muito mais responsabilidade e cautela. Mas quando lembro a menina boba que escreveu, perdoo tudo e acho que está ótimo. Eu era muito nova, já tinha uma boa bagagem de leitura, mas pouquíssima bagagem de vida. E isso é insubstituível. Mas continuo gostando do resultado, e achando que foi um trabalho bem feito.

Em 2017, você ressurge com outro romance, Despedida, cuja marca da obra é o vazio. História ficcional ou autobiográfica?

Os dois. Para mim é muito difícil separar. Meu mestre maior é Fernando Pessoa, o camarada que contou para a gente que o poeta é um fingidor. Mas eu mesma não sou nenhum pouco fingidora. Só sei fazer literatura tirando de todas as entranhas e vísceras de mim. Eu sou quase um instrumento de experimentação científico da minha arte. Sempre me defini pelo meu ofício, não com adjetivos mas com verbos. Escrevo, crio, comunico, expresso. Isso é o que eu conheço de mim no mais íntimo e profundo. Ao mesmo tempo, dizer que é puramente autobiografia é excluir parte fundamental do meu trabalho e retirar do balaio todos os meus estudos e conhecimentos narrativos, ficcionais, etc. É como se fosse uma fábula de mim mesma. Está tudo ali, mas em simbologia, não literalmente.

Ao lançar Vênus em câncer, um livro de “quase-poemas”, segundo apresentado por você, senti da sua parte uma certa insegurança. Medo das críticas ou receio de não agradar os leitores?

Nenhum nem outro, acho. Definir como quase-poemas tem mais a ver com o meu enorme compromisso com a despretensão. Com a parte de mim que gosta de ser um pouco amadora. Acho que minha pulsão criadora nasce muito desse lugar de leveza e intimidade, que é simplesmente fazer, sem tentar ser nada em especial. Nesse lugar de eterna concepção, uma pré-criação, que nunca vai ficar pronta, porque me interessa muito mais o processo que a suposta chegada. Não inscrever em pedra o que aquele texto é me dá uma sensação de liberdade que me interessa muito. Não sei o quanto disso dá para separar da insegurança ou dos medos, mas como disse Clarice Lispector, nunca se sabe o defeito que está sustentando o edifício todo.

Além do amor, que outros assuntos são essenciais nos seus livros?

Talvez eu esteja escrevendo para tentar responder a essa pergunta, para achar os meus temas essenciais. Na verdade, acho que eu sou bem monotemática. Como disse Adélia Prado lindamente, talvez eu passe a vida inteira reescrevendo meu primeiro livro. Acho que esse tom reticente de sempre se perguntar o que mais a vida pode ser, o mais eu posso sentir, como pequenas coisas nos tiram do automático e nos levam a outras dimensões e olhares. Perceber os detalhes da existência como portais de expansão, é essa coisa sem nome, banal mas ao tempo tempo mágica, que é o assunto dos meus livros.

Pode-se considerar feminista sua obra?
Sim, com certeza. Embora raramente tenha essa temática de forma direta, a minha obra é totalmente sobre a liberdade de escolhas, expressão e vivências de um corpo feminino. Inevitavelmente, toda a minha criação é feminista.
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