Por Wellington Soares, professor e escritor
De supetão, ele resumiu assim a história: “Você foi meu professor no Colégio Objetivo, perto do Verdão, lá pelo ano de 1990. Sala 2M306, até hoje na memória, com aulas maneiras de literatura – viagens nas quais embarquei de corpo e alma.” Lembrar tudo isso, acredite, é sinal que fiz bem o dever de casa em sala de aula. Sensação gratificante essa de marcar a vida dos nossos ex-alunos.
Mas o melhor ainda estava por vir, quando Nathan Sousa, feliz da vida, me presenteou com O percurso das horas, seu livro de estreia, lançado em 2012 no Salipi. De cara, gostei de Combate, texto em que diz, metalinguisticamente, que “escrever poemas/ é como rasgar a camisa,/ mostrar o peito,/ se armar com uma faca cega,/ olhar no olho do mundo/ e autorizar:/ pode vir”. Ali deu pra perceber, diante da atitude desafiadora frente à escrita e à própria existência, um escritor que cavaria um lugar de destaque na literatura. Dentro e fora do estado.
Ser lembrado pelos alunos é algo maravilhoso, imagina reencontrar um deles que, sob o ponto de vista da leitura e da escrita, supera de longe o antigo mestre do ensino médio. É a glória total nesses casos. Além de torcer pelo sucesso na carreira literária, fui tratar de ler sua obra, hoje premiadíssima, e acompanhar seu crescimento literário.
Destaco entre os catorze já publicados, englobando poesia e ficção, os seguintes títulos: Um esboço de nudez (2014), livro finalista do Jabuti57; Nenhum aceno será esquecido, seu primeiro romance; Semântica das aves (2017), Prêmio Internacional Vicente de Carvalho (UBE/RJ); e Anfíbia (2019). Em todos eles a literatura, pra nosso deleite, transformada em exercício estético, a novidade em linguagem para espanto e estranheza do leitor.
Agora vamos conferir, sem mais delongas, o porquê da literatura, segundo Nathan Sousa, ser um ato de prazer.
Você acredita também que a escrita, como afirmava Drummond, é uma luta vã?
Certamente. Porque a palavra nada mais é do que um artefato rudimentar que encontramos para que possamos dar vazão a uma necessidade orgânica que é típica dos seres humanos: a comunicação. De algum modo, precisamos expressar algo. Ainda que seja para ninguém. Como disse Ferreira Gullar: “é próprio da palavra/não dizer/ou/melhor dizendo/só dizer”. Portanto, lutar contra as próprias armas não é uma luta perdida; é uma luta sem sentido.
Em que momento o garoto de São Gonçalo meteu na cabeça que seria escritor?
A paixão pelos livros se deu ainda na infância, quando minha mãe comprou, de um vendedor ambulante, em Santa Inês (MA), lá pelo final da década de 1970, uma coleção de livros infantis para mim e para a minha irmã. Sou filho de um caminhoneiro e eletricista rural, e de uma professora do primário que também era artesã. Tratava-se da coleção “Reino Colorido da Criança”. Mas foi somente na década de 1990, quando eu já estava na Universidade, cursando Economia, que eu, totalmente tomado pela literatura, ainda que de uma maneira um tanto boêmia, procurei amadurecer a ideia. Confesso que quase tudo em minha vida aconteceu de maneira tardia. Curiosamente, eu não pretendia enveredar pela poesia, mas pelo romance. Até que um dia, já em 2010, instigado pela leitura de poetas como Marina Colasanti, Ferreira Gullar, Salgado Maranhão, Rainer Maria Rilke e Carlos Drummond de Andrade, eu suspirei fundo e mergulhei na realidade. Para que o primeiro livro saísse, vendi um Ford Del Rey que eu ganhara de meu pai, e que eu o batizei carinhosamente de “Bob Dylan”, e contei com o apoio da prefeitura municipal de São Gonçalo e com a ajuda de uma tia. O milagre aconteceu em agosto de 2012. Saiu, então, meu primeiro livro: O percurso das horas.
Como explicar o fato de continuar desconhecido entre os leitores, apesar de ser hoje o autor piauiense mais premiado?
Ocorrem alguns fenômenos paralelamente para explicar essa questão. Primeiro: eu nunca tive apoio ou dispus de condições financeira suficientes para tirar mais de 1000 exemplares por edição, o que torna o meu poder de distribuição limitadíssimo. Segundo: só consegui publicar meus livros através de editoras pequenas, ou seja, que esbarram na dificuldade anteriormente citada. Terceiro: poesia é o gênero menos lido e, talvez pela sua estrutura linguista, pelo uso de metáforas e por seu poder de concisão, desperta menor interesse de leitura na população. As premiações me ajudaram muito a divulgar meu nome. Não a divulgar meus livros. De modo que acabei caindo em uma armadilha: sou muito conhecido entre os escritores e leitores de poesia, e pouco conhecido entre leitores de prosa, ou seja, ainda sou desconhecido para o público maior de leitores.
Por que você afirma em Anfíbia, texto que dá nome a uma de suas obras poéticas, que “nasci para parir o esquecimento”?
Por ser poeta e, como foi tratado na questão anterior, representar uma voz que é praticamente inaudível. Por saber que a minha expressão atinge muito poucas pessoas, considerando que pouca gente se interessa, verdadeiramente, por poesia. Mesmo sabendo que a condição de “ser poeta” não depende desta realidade. O poeta não escolhe ser poeta. Há uma força inexplicável que o torna assim. Ainda assim, há uma constatação estranha (e feliz): tal esquecimento não representa uma limitação que nos impossibilite de continuar escrevendo que a poesia nos chama. Sem querer cair na vala comum, é uma atividade artística-existencial que se parece muito com a do semeador. Se a planta vai nascer, aí são outros quinhentos.
De que forma sua obra dialoga com a música e o cinema?
Sou letrista de uma maneira quase acidental, porém, a relação da minha obra com a música ocorre de modo muito intenso. Sabemos que escrever poemas e escrever letra de música são ações com propósitos diferentes, o que acaba nos levando a “dançar” a mão sobre o papel de maneira diversa. No mais, a sonoridade que eu busco no poema beira a uma espécie de canto extinto; de uma oração deixada por algum profeta em um lugar remoto. Do cinema, eu me atenho à formação de boas imagens, como se fossem fotografias em movimento, além de projeção de um tempo que ainda dorme, dada a minha afeição a filmes como Blade Runer e Mad Max, tendo em vista que trabalhar essa perspectiva de novas formas de vida e linguagem me atrai muito. É comum você encontrar essas formas em meus poemas. Há uma comunicação – e isso se dá de maneira intencional – com diversas artes porque eu sinto essa necessidade, ou seja, de me banhar em rios, mares, açudes e lamaçais para sentir que estou dizendo algo que vai além de um simples relato. Como eu já disse em um poema: “Nada do que escrevo vem dos desertos”.
Quais temas perpassam indelevelmente sua literatura?
O corpo, a geografia (mais humana do que física), a memória e a própria linguagem. Olhando o percurso de minhas horas, agora que muita coisa se passou, percebo que sempre estive intrigado com essa relação: homem-mundo-linguagem. Talvez aí esteja a sombra de Mário Faustino ou mesmo de Ezra Pound, mas nada disso me acompanha sobre as águas da consciência. Ainda assim, eu posso dizer, sem titubear, que o tempo é o tema soberano na minha produção, independente do gênero.
Certo país adotou como punição, aos que eram pegos sem máscara, a leitura de livros. Que pensa dessa medida?
Peço aos deuses e deusas da literatura que isso nunca aconteça com meus livros. Literatura tem que ser, antes de tudo, um ato de prazer. Ninguém vai tomar gosto pela leitura por métodos que não despertem tesão. Ninguém passou a ler ou ler mais nessa pandemia por causa do confinamento. Quem leu mais é porque já gostava de ler. E escrever, por sua vez, é uma representação da volúpia. Ler é um descortinar interminável de rotas para o desconhecido. Se isso não acontecer, vão apenas engrossar a fila dos que detestam a leitura. O livro é um pássaro, e ter a leitura como punição é ter que contemplar esse pássaro na gaiola. Na boa: não dá pra mim!