Wellington Soares

Coisas e outras

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Maria das Graças Targino: “Meu pai foi meu grande mestre”

 

 

Por Wellington Soares, professor e escritor

Seu nome completo é Maria das Graças Targino, com o qual assina os livros já lançados e os que estão por vir, pois adora viajar com e através das palavras. No trato pessoal, costuma ser chamada apenas de Graça Targino. É paraibana de João Pessoa, tendo chegado a Teresina no distante ano de 1971. Dos pais herdou a paixão pelo jornalismo e magistério.

Fora isso, ama cinema e teatro, áreas nas quais já arriscou uns passos. A música a transporta para o além, enquanto o voluntariado a acalma e lhe faz bem. Mas, por anos, fez tapeçaria e, acredite, ensaiou pintura de porcelana. Ama cozinhar, viajar, tem a casa como refúgio preferido e gosta de idiomas. Como ela se vê emocional e psicologicamente? “Sinto-me camaleão, luto como leão e sobrevivo como um pássaro azul”.

A estreia literária ocorreu em 2008, com o lançamento de Palavra de honra: palavra de graça. Depois veio Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos, em 2014. O livro mais recente, publicado em 2019, recebeu o sugestivo título de Amar, viver, escrever – síntese das veredas que marcam indelevelmente sua atribulada existência. Todos de crônica, focados em temas do cotidiano, linguagem simples, tom de esperança e marcados pela leveza do gênero.

Mas o que Graça sempre quis e conseguiu, evocando aqui o famoso texto de Simone de Beauvoir, “foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida. Acredito que eu consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos”.

Bom ouvir agora, sem mais delongas, esta Cidadã Teresinense, título merecidamente recebido da nossa Câmara Municipal, o que ela tem a nos dizer sobre literatura, crônica, textos acadêmicos, opção pelo magistério, crítica literária e, não podia faltar, sob que ponto de vista as relações humanas aparecem em sua obra. Dificilmente você não irá se apaixonar, feito eu, pela Maria das Graças Targino. Vamo que vamo!

 

Frida Kahlo dizia que a pintura dela trazia consigo a mensagem da dor. Quanto à sua literatura, traz o quê?

Talvez, esta seja uma pergunta a ser respondida pelos meus leitores mais assíduos. De qualquer forma, ouso afirmar que meus textos trazem uma mensagem de VIDA: vida e morte, alegria e tristeza, esperança e desesperança, amor e desamor, encanto e desencanto, paz e guerra, céu azul e céu cinzento… VIDA!

Qual escritor(a) a impactou tanto a ponto de querer trilhar também esse tortuoso caminho?

Respondo de imediato e sem vacilo: meu pai foi meu grande mestre. Partiu quando eu era ainda criança, aos 12 anos. Dentre todos os acontecimentos que marcaram minha infância e adolescência, esta foi a dor maior. Passei a vida inteira buscando “pai”, querendo colo, um desassossego só. Dele, do meu pai, herdei o temperamento irrequieto, a vontade de ler e escrever…
Ele, jornalista sem diploma. Ele, sem qualquer instrução formal. Ele, sem jardim de infância. Ele, sem bancos escolares. Ele, sem farda engalanada ou lanches achocolatados. Sob outro ângulo, ele, com inteligência, persistência, obstinação e imenso amor às letras. Letras que se tornam frases, textos, contos, livros, matérias jornalísticas, etc. Meu pai, autodidata, numa época em que vocação era magia e encantamento, tornou-se, em curto espaço de tempo, escritor, ghost-writer (termo inexistente, à época) de grandes políticos paraibanos e, sobretudo, jornalista, numa vida curta, mas vivida com intensidade, fervor e furor. Por suas mãos, desde muito cedo, descobri, pouco a pouco, escritores e poetas, considerados, à época, grandes nomes nacionais e internacionais, a exemplo de José de Alencar, Franz Kafka, Marcel Proust, Honoré de Balzac, José Lins do Rêgo, Machado de Assis, Fedor Dostoievski, Érico Veríssimo, Augusto dos Anjos e muitos outros. Por isso, evito, categoricamente, mencionar livros-chave ou autores-chave. Temo cometer injustiças, desde que, de uma forma ou de outra, todos me propiciaram momentos inesquecíveis de sonho e, principalmente, de descoberta de mundo. Mas, não titubeio: meu pai foi, sim, apesar de sua partida precoce, o escritor que me mostrou a estrada a percorrer e me deixou como herança a vontade insana de trilhar esse adorável caminho, não importa, se, vez por outra, tortuoso e íngreme.

O fato de eu ou alguém escrever um romance ou um conto não lhe assegura a garantia de bom literato. Há péssimos contistas, romancistas, poetas e assim por diante. O gênero não é determinante da qualidade dos textos.

Por que a escolha da crônica dentre as várias opções do gênero narrativo?

Não diria que foi uma escolha. Como desde jovem, vivo a compulsão de ver e enxergar as pessoas, numa busca quase obsessiva de autenticidade e verdade, a crônica instalou-se em meus escritos. Afinal, é ela o gênero que permite, com relativa facilidade, denunciar as mazelas sociais, o cotidiano de quem nem tem voz nem vez. Independentemente dos conceitos formais que rondam a crônica, sem dúvida, é este o cerne da crônica: olhares acertados ou enviesados acerca da linha tortuosa das cidades e do viver, ou seja, o registro bem ou mal humorado do dia a dia das coletividades. Aliás, o delicioso livro de Carlos Drummond de Andrade, “De notícias e não notícias faz-se a crônica”, ano 1974, reforça, desde o título, a concepção de crônica: as notícias, simbolizando o real; as não notícias, o imaginário do cronista.

Foi a escritora que a levou ao magistério superior ou o contrário?

Impossível delinear: vocações que se cruzam e entrecruzam. Aos que me perguntam algo similar, retrocedo na linha mágica e, ao mesmo tempo, cruel do tempo. E lembro, então, do que tão sabiamente o escritor colombiano Gabriel García Márquez diz, no preâmbulo do livro “Viver para contar”: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” Pois bem, me enxergo, rascunhando ou esboçando anotações em busca de imprimir feição definitiva a meus textos de menina e, logo depois, de adolescente, guardados, como não poderia deixar de ser, a sete chaves, ou melhor, a uma única, pequenina e frágil chave de um diário cor-de-rosa. Por outro lado, sempre brinquei de professora. Cedo, descobri ser este o caminho para desvendar com mais propriedade o viver. Como os pensamentos são sombras que vêm e que passam, às vezes, me pego a imaginar que nasci professora: revejo a sala grande de uma casa grande, onde aos meus irmãos cabia a função de atuar como endiabrados alunos. Quando resistiam, restavam minhas bonecas, de verdade ou de fantasia. Passados os anos, bonecas transmutadas em filhos, continuei a escrever.

Há preferência por algum de seus três livros e qual deles teve melhor acolhida pelos leitores?

Antes de meus três livros de crônicas aos quais se refere – “Palavra de honra: palavra de graça”, 2008; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos”, 2014; “Amar, viver, escrever”, 2019 – e concomitantemente a eles, como acadêmica, que ingressou muito jovem como aluna, aos 17 anos na Universidade Federal de Pernambuco e aos 22, como profissional bibliotecária e adiante como docente junto à Universidade Federal do Piauí (UFPI), tenho escrito bastante nos campos da Biblioteconomia, Ciência da Informação e Comunicação Social (Jornalismo). Textos de diferentes naturezas: livros, capítulos de livros, artigos técnico-científicos, comunicações em eventos científicos, tanto em suporte impresso quanto eletrônico. Segundo resgate do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do Currículo Lattes, até esta data, são nove livros; 66 capítulos de livros; 16 livros organizados; 181 artigos técnico-científicos; 33 artigos em revistas (magazines); 67 trabalhos publicados em anais de eventos; e 871 artigos em jornais.
O que ocorre é que os textos técnicos e científicos, lançados por instituições de ensino superior e editoras comerciais exigem do autor menor esforço de divulgação porque elas mantêm uma infraestrutura adequada e um público-alvo definido. Por exemplo, possuo capítulo em livro da renomada Editora Atlas; da Universidade de Brasília e de muitas outras IES. Lancei em coautoria com a Professora Sueli Mara S. P. Ferreira (USP), trilogia sobre editoração de revistas a cargo do SENAC-SP e minha tese de pós-doutoramento conquistou o Prêmio The Information for All Programme da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), fato ignorado pela mídia local. No auge do surgimento da internet, lancei capítulo sobre as decorrências sociais que adviriam da Rede, em capítulo do livro “Cultural ecology” do International Institute of Communications (Londres), ainda em 1997, com a ressalva de que, curiosamente, os impactos previstos se confirmaram.
Aliás, poderia discorrer muito mais sobre esta faceta de minha produção. Porém, retornando à questão específica alusiva aos livros de crônicas, empiricamente, têm nível de aceitação similar, com o adendo de que o primeiro deles está completamente esgotado. São livros editados sob meu encargo e sem qualquer ajuda de custo nem da instituição a que dediquei toda minha vida (UFPI) nem tampouco de órgãos governamentais. Jornada silenciosa e solitária… Consequentemente, divulgação lenta e capenga….

Que acha dos críticos que afirmam ser a crônica um texto literário menor, inferior?

Para falar a verdade, não tenho a pretensão, aqui e agora, de discorrer sobre crônica como gênero literário ou jornalístico, até porque os gêneros nada mais são do que um conjunto de traços característicos, mas instáveis, que marcam a obra dos autores. Aliás, o fato de eu ou alguém escrever um romance ou um conto não lhe assegura a garantia de bom literato. Há péssimos contistas, romancistas, poetas e assim por diante, como há péssimos cronistas. O gênero não é determinante da qualidade dos textos.
Indo além, dificilmente, um mesmo autor se prende a vida inteira a um só tipo de texto. Por exemplo, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende, trio que parece resgatar a crônica do limbo em que estava no contexto da literatura brasileira, à época, apesar de considerados os maiores cronistas do Brasil, também transitam em outros segmentos literários. Sabino, romancista, contista e novelista. Paulo Mendes, poeta e crítico literário. Otto, contista, novelista e romancista. Para ideia mais precisa, a Wikipedia, que ocupa, mais e mais, o espaço antes destinado à Britannica Online, em seu verbete – cronistas do Brasil –, arrola cerca de 100 nomes, dentre os quais, estão: Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José de Alencar, José Lins do Rego, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Mário Prata, Martha Medeiros, Nelson Rodrigues, Olavo Bilac, Rachel de Queirós, Rubem Alves, Rubem Braga, e assim quase indefinidamente. As exceções dos “cronistas de carteirinha” ficam por conta de alguns poucos. É o caso de Dom Hélder Câmara, polêmico arcebispo de Recife e Olinda, que dedicou parte de seu tempo a escrever belas e expressivas crônicas sobre as duas cidades. É o caso, também, de Paulo Fernando Craveiro, do tradicional Diário de Pernambuco (Recife), cujas crônicas auxiliam a reconstituir nosso tempo.
Logo, a fala dos críticos que afirmam ser a crônica um texto literário menor ou inferior não produz eco na esfera de meu viver ou ser…

Sob que enfoque aparecem as relações humanas em sua obra?

Tento – não sei se consigo – dar espaço, como falei anteriormente, a temas que afetam a existência dos que estão afundados (não alojados) em estratos sociais mais depreciados. Não falo somente de (des)nível social, cultural e/ou econômico. Imigrantes, homossexuais, velhos, doentes mentais, prostitutas e michês, drogaditos, quilombolas, indígenas, todos estes são temas recorrentes em meus escritos… Mas não há só dor. O canto das baleias nos encanta. Livros, leitura e bibliotecas dão esperança aos que integram o Projeto da Remição pela Leitura do Sistema Penitenciário Federal. O amor e a amizade incondicional valem muito! Em suma, há muito a ser visto e revisto nas relações humanas, o que nos fazem repensar a vida e a morte.

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Edmar Oliveira: “Eu só desejo conversar com meus fantasmas”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Podem não acreditar, mas já conhecia o Edmar Oliveira antes de conhecê-lo pessoalmente. Conhecia e, por conseguinte, o admirava bastante, uma vez que, dificilmente, acredite, alguém o conhece sem render-se aos seus encantos tanto como ser humano e intelectual, quanto como psiquiatra, militante da luta antimanicomial e comunista utópico.

Antes o conhecia pelo que falavam dele dentro e fora de Teresina. Que coeditou, em mimeógrafo, o jornal alternativo Gramma; que produziu filme com Torquato Neto, nos anos 1970; que comandava o Piauinauta, um blogue de contato entre os perdidos do espaço que tentam compreender a vida; e que não só foi diretor do Instituto Nise da Silveira (RJ) como também inspirou Stênio Garcia a encarnar, na novela “Caminho das Índias”, da Rede Globo, o personagem Dr. Castanho.

Os primeiros contatos com Edmar vieram através da leitura de Ouvindo vozes Von Meduna, títulos focados em saúde mental, área em que atua; e, depois, Sitiado e Não existe pretérito perfeito, romances que dialogam – de forma crítica – com o passado histórico brasileiro: Coluna Prestes e Ditadura Militar. Afinal, os escritores costumam se desnudar por meio de seus escritos.

Sua entrevista à Revestrés (#25) serviu para estreitar nossas relações. O encontro, na casa do seu irmão Moisés, bairro Aeroporto,  transcorreu num clima de franqueza e cordialidade. E o mais importante, sem tabu sobre qualquer assunto, desde a incumbência em dar eletrochoque no antigo Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, que ele driblou de maneira genial, até classificar-se como doido que não deseja cura. O lançamento dessa edição no Rio de Janeiro, em 2016, contou com o apoio integral do Edmar, inclusive mobilizando pessoas, e selou de vez a amizade com a trupe da revista.

Mas, enquanto esse piauiense arretado de bom, filho do município de Palmeirais, deseja conversar com os seus fantasmas, talvez ansioso por se conhecer melhor, os leitores desta entrevista só queremos embarcar nas suas viagens literárias e existenciais. Quem sabe nossos fantasmas não sejam os mesmos?

 

Mia Couto afirmou que o poeta, no sentido amplo, é aquele que conversa com as sombras. Que acha disso? 

Acho que o Mia Couto assume o papel político de tirar das sombras o passado de Moçambique, quase todo sustentado por uma frágil cultura oral, que o colonizador português sempre tentou apagar. Nesse sentido, conversar com as sombras, é uma missão da literatura de Mia para não deixar morrer a cultura que constituiu Moçambique. Mas no sentido amplo ele também tem razão. Quem escreve dialoga com seus fantasmas numa necessidade de manter viva a memória que constituiu o escritor. O velho Graça é soberbo na reconstituição de sua infância na obra que assim nomeou. O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas esse diálogo com os fantasmas que nos constituíram, que apesar de deformar a realidade, aproxima o real fantasmagórico da ficção criada. E como nada se cria – a química da literatura ficcional contém pedaços do escritor na ficção.

O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas o diálogo com os fantasmas que nos constituíram.

Que motivos o levaram a deixar o Piauí e migrar pro Rio de Janeiro? Já pensou em voltar? 

Já faz bastante tempo. Saí muito jovem. Teresina tinha a metade da população que tem hoje e o provincianismo era muito forte. Talvez hoje não tivesse saído. Como me envolvi com a cultura desde muito cedo, a visibilidade com que conquistei (sem querer) dificultava exercer minha profissão. Buscava naquele momento um anonimato que só uma cidade grande poderia me dar. Hoje, olhando pra trás, tenho muito mais tempo de vida no Rio do que vivi em Teresina. Teresina me passou de relance, um pouco de adolescente e pouquinho do adulto. Toda a minha infância foi em Codó, no Maranhão, apesar de ter nascido em Palmeirais. Não tenho mais dúvidas de que me casei com o Rio, apesar das dificuldades que a cidade atravessa. Teresina é uma namorada antiga inesquecível. De vez em quando a vejo, mas não tenho mais idade para uma paixão juvenil. Vou ficando no Rio.

Há afinidades entre psiquiatria e literatura, duas áreas nas quais você atua? 

Diria que as duas trabalham com o inconsciente. A prática em Saúde Mental, diferente da prática médica, trabalha uma clínica da narrativa e não uma clínica da evidência. Explicando: num infarto o médico tem de atuar rapidamente com os sintomas evidentes da crise. Na Saúde Mental, mesmo o paciente em crise, é preciso paciência do médico para entender a narrativa da história que o paciente conta. Portanto no método, minha profissão está muito próxima da literatura. Passo de uma à outra sem dificuldades.

Retomar a ditadura militar em Não existe pretérito perfeito, seu livro mais recente, foi mero resgate histórico de uma época ou um alerta aos que defendem um regime de exceção sem saber o que isso representa de fato? 

Fui tomado pela história que narro em “Não existe pretérito perfeito” logo após a eleição de Bolsonaro. O enredo foi aparecendo com um diálogo com os fantasmas do passado. E todos os elementos estão ali: o torturador como uma pessoa entre nós no papel de homem de bem; a prática da tortura sem a culpa do nosso homem de bem nas dores infringidas em quem ousa discordar do “bem”. O namoro da psicanálise com a tortura, que na vida real foi representada por Amílcar Lobo, de triste memória; o parentesco entre torturados e torturadores; e o Brasil, um casarão, onde moram todos os personagens. Duas revelações: namorei um casarão em Botafogo, de fato, para fazer dele meu personagem principal e nele coloquei meus personagens-fantasmas. Um desses personagens, o filho do militar torturador (nenhum personagem tem nome) tomou vida durante a escrita e ficou bem maior do que tinha imaginado. De fato, é nele que me encontro com os fantasmas que nos assombraram no passado. E o livro é um aviso medroso do que podia nos acontecer. E, para desgraça de todos nós, minha previsão vem se concretizando. Ainda tenho esperança de que o livro perca a razão. E fico muito triste por estar acertando.

Dois personagens são emblemáticos em Sitiado: o matuto Teodoro, alma pura do povo, e o fascinante Manuel Bernardino da Mata, síntese de espírita/vegetariano/socialista. Com qual deles você e os leitores se identificam mais? 

Manuel Bernardino, o Lenine da Mata, de fato existiu. Tentei fazer uma pesquisa em Dom Pedro, mas quando liguei para a biblioteca pública da cidade fui informado que nada existia sobre o personagem, mas que muitos velhos na cidade sabiam de sua história. Não fiz uma viagem até lá para pesquisar melhor e me ative ao Diário da Coluna Prestes, de Lourenço Moreira Lima, escrito no calor da luta. De lá tiro o personagem da realidade para jogar na ficção. Depois de ter escrito meu livro, soube de um média-metragem da Maranhense Rose Panet – um documentário sobre a memória de Manuel Bernardino. Entrei em contato com ela e mandei meu livro. Tínhamos programado fazer uma exibição do filme junto com um relançamento do livro no Maranhão, mas aí veio a pandemia e não foi possível. Aqui vai o link para o filme da Rose: https://www.youtube.com/watch?v=UVGNmU3afYU

. Foi uma grata surpresa e, embora eu não a conheça pessoalmente, posso dizer que somos amigos e trocamos muitas informações sobre literatura e cinema. Outra curiosidade, no filme é Zeca Baleiro que faz a voz nos discursos de Bernardino. Quando estive no Piauí no último Salipi, fiquei no mesmo hotel que o Zeca e Salgado Maranhão nos apresentou. Dei um livro para o Zeca Baleiro que gostou de saber que o Bernardinho estava no livro. Mas voltando à pergunta feita, Teodoro – o ingênuo da ficção e Bernardino são dois personagens marcantes, que facilmente cativam os leitores (muitos falaram deles). Mas o meu preferido é o mascate Abdon, que representa os árabes que ajudaram a formar o Maranhão e Piauí com suas viagens pelo sertão tocando matraca e trazendo objetos cobiçados pelas mulheres que viviam naquelas brenhas. O nome do personagem foi tirado de uma música do Gonzaga, que certamente homenageava os árabes do sertão.

Antes de cometer suicídio, Torquato Neto deixou um bilhete ao filho Tiago. Que bilhete você, que o conheceu pessoalmente, escreveria a ele depois de 49 anos após sua triste partida? 

“Rapaz, você não foi muito apressado em 72? Gostei não”.

A literatura piauiense tem muitos poetas e poucos romancistas. Há da sua parte, com cinco livros publicados, intenção de ocupar esse vazio em nossa ficção? 

Uma confissão: a poesia é a mais maravilhosa das artes e engana muitos que se dizem poetas. E hoje é para quem sabe usar o “paideuma” poundiano (Erza Pound – 1885/1972) com sabedoria. No mundo da pressa ninguém quer gastar tempo como escreviam os clássicos. Outra característica do poeta é arrancar das palavras o indizível. Tanto na onomatopeia do mestre Da Costa e Silva (“Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda”), seja na cirurgia de Salgado Maranhão limando a palavra para lhe dar novo sentido (“não cantarás aos muros de arrimo tua fantasia de pássaro”). Confesso que não tenho esse talento e fazer versos onde apenas se quebre o pé das palavras e se supõe que a rima já faz a poesia é falsificar o poeta. Acho mais fácil o romance, mas é preciso não ter preguiça no enredar a trama. Mas não me vejo ocupando qualquer lugar na literatura piauiense. Já temos muito bons escritores. Eu só desejo conversar com meus fantasmas.

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Fernanda Paz: “A literatura me levou a universos inimagináveis”

 Por Wellington Soares, professor e escritor

 

 

 

Minha identificação com a Fernanda Paz foi quase imediata quando a conheci. Como diria Bandeira, um alumbramento em termos de beleza e sensibilidade cultural. Gostamos das mesmas coisas praticamente: conto, teatro, desenho, Clarice Lispector, magistério, crianças, poesia, educação, Nelson Rodrigues, cinema, arte e do Pedro Ben, claro, músico com quem é casada.

O lançamento de Olhos de vidro, pela Quimera, foi outra coisa que nos ligou bastante. Como assim? Um dia, em 2018, ela apareceu, em nossa editora, a fim de publicar esse novo livro de contos. E avisou logo que não queria um projeto comum, mas um com formato artesanal. Além de barato, que fosse impactante ao leitor de tão bonito. E não satisfeita, produziu manualmente um saco de pano para envolvê-lo. A pequena tiragem não deu pra quem quis.

Logo depois, Fernanda já estava, pela qualidade literária, publicando contos na Luso-Brasileira, Acrobata, Revestrés e Diversos Afins, revistas culturais dentro e fora do Piauí. Sem falar de participação em antologias poéticas e coletâneas de contos. Por gostar de desenhar, seus textos costumam vir acompanhados de ilustrações, combinando as linguagens verbal e visual. Ainda neste ano, pretende lançar Duna, projeto no qual mistura performance, poesia e sons experimentais – já em processo de gravação.

Impressiona também sua relação com os baixinhos, alunos do ensino infantil, no tocante a despertar o gosto pela leitura desde cedo. As estratégias vão desde a contação de histórias em sala de aula até o projeto Sacola da Leitura, com empréstimo de livros às crianças para serem lidos, pelos pais, nos finais de semana. Crianças essas, bom destacar, da rede municipal de ensino e de famílias humildes da grande Teresina, cujos lares não dispõem desse objeto inacessível.

Embora pequena em quantidade, de apenas dois livros, a obra de Fernanda Paz perpassa temas bem atuais e instigantes: feminismo, diálogos entre o real e o fantástico, erotismo, relações abusivas e mundo de aparências: “… de tanto vestirmos nossas percepções e opiniões vamos alimentando uma sociedade mascarada, onde ninguém consegue ser o que é. Em um espelho, ficamos irreconhecíveis a nós mesmos”.

Para quem não a conhecia ainda, eis aqui a jovem escritora teresinense por inteiro. Desnuda, livre, verdadeira e atraída por universos inimagináveis que somente a literatura é capaz de levar.

 

Sem a literatura, falou Bukowski, a vida é um inferno. Pensa assim também?

Impossível afirmar que a vida seria igual sem acesso ao ilimitado que é a literatura e a arte em geral. A escrita nos permite convertemos esse inferno em afetos, ou até criarmos infernos maiores para sublimar os nossos. O encontro com a literatura desde sempre me levou a universos inimagináveis, não falo só escrevendo, o consumo de arte me modifica também.

Que livros despertaram em você o desejo de ser escritora?

Inicialmente, os clássicos juvenis da coleção Vaga-Lume que me faziam viajar em aventuras, também me impulsionaram a criá-las e guardá-las em velhos cadernos. Mais tarde a vida jovem noturna, a música, o álcool, Lispector em A Hora da estrela e “Laços de família”. O teatro me trazendo Nelson Rodrigues em Vestido de Noiva, Anjo Negro, Beijo no Asfalto, A mulher sem pecados (nessa última cheguei a atuar pelos palcos da cidade). Bukowski e Salinger cuspindo sem dó suas palavras na minha cara e Fernando Sabino simplesmente vivendo seu encontro marcado me levaram a iniciar um blog. Mas naqueles tempos, onde tudo se mostrava inacessível a jovens periféricos piauienses, ler Baião de dois, da Rosa Kapila, e conhecer sua origem e história – do bairro Vermelha, em Teresina, às universidades do Rio de Janeiro – foi o que impulsionou minha primeira publicação. Hoje entendo a representatividade e relevância dessa leitura pra mim. Posteriormente, fui presenteada com a biografia de Anne Sexton pela própria Rosa, que também prefaciou meu primeiro livro.

A leitura nunca foi democrática e acessível no país em que vivemos, e esse quadro só se agrava.

O conto ainda desfruta, na sua opinião, do mesmo prestígio de outrora?

A rapidez tecnológica vem afastando as novas gerações desse lugar infindo que é o livro. Nenhum estilo de escrita fica de fora. Mas há que se notar que a atualidade também abre novos espaços, desde a alta de obras literárias em formatos de películas cinematográficas nos streamings à bibliografias citadas por criadores de conteúdos em redes sociais, esses e outros movimentos elevam a procura dos exemplares em livrarias e sites, destaque para ficção científica. O conto tem, sim, suas vantagens nesse contexto e dialoga com a fluidez dos acontecimentos. Mas convenhamos, não há como olhar o passado com a perspectiva romantizada, a leitura nunca foi democrática e acessível no país em que vivemos, e esse quadro só se agrava.

De que forma literatura, música e artes plásticas marcam sua vida e obra?

Fernando Pessoa já soprava em nossos ouvidos: “A arte é a mestra da vida”! Em mim, tudo parece ser uma única coisa, que vai se emaranhando em afetos e trazendo percepções que serão pedacinhos de eternidade que eu mesma construí. Devo muitos textos a sons que me atravessaram em um dado momento, de leituras e escritos vou parindo ilustrações, amo também a sétima arte, viajo a mil mundos e me sinto criativa. A minha vida é involuntariamente marcada pela arte, em algum momento do dia ela estará presente sem esforço, e os meus olhos e sentidos estarão abertos. Não saímos os mesmos depois de sentir um som, ler um clássico ou imergir no mundo imagético das artes visuais, e essa outra de mim que nasce a cada contato, também doa em aprendizado à minha própria obra.

Que estratégias você usa a fim de despertar o gosto pela leitura em seus alunos?

Primeiro de tudo, muito contato com materiais diversos, que eles mesmos possam escolher, ou pela capa, ou pelo título, ou apenas pelas cores, o que os interessa. É um público infantil, então me desdobro em contações de histórias, uso corpo, entonação, movimento, nisso o teatro me ajudou demais. Por vezes, me fantasio ou confecciono materiais em e.v.a e feltro. Também fazemos um trabalho intitulado “sacola da leitura”, no qual emprestamos livros infantis para que as famílias leiam com suas crianças durante o final de semana. Na segunda, debatemos a leitura que fizeram em grupo. Os olhinhos sempre brilham e, quase sempre, eu me emociono muito em pensar o quanto a desigualdade social rouba um universo de possibilidades das nossas crianças.

O que o leitor vai encontrar ao ler, por exemplo, O buraco e outras histórias e Olhos de vidro?

Encontrará diálogos entre o real e o fantástico, personagens em aparente confusão mental que levam a atitudes desesperadas, aspectos indizíveis no relacionamento humano. Talvez um toque poético. Em O buraco e outras histórias sinto algumas palavras desgastadas pelo tempo, um trato até insensível com alguns temas que precisariam de um cuidado maior na abordagem, mas não vejo prejuízo ao trabalho como um todo. Escuto de leitores que, por vezes, meus contos possuem aspectos distópicos que flertam com ficção científica. Gosto de pensar que os leitores desses dois livros, ou dos que estão porvir, possam acessar novos lugares e perspectivas na mente. Não trabalho com o óbvio, imagino e escrevo novas realidades ou uso metáforas para descrevê-las, mas o faço de uma maneira acessível a qualquer tipo de leitor.

Como o feminismo e o erótico aparecem na sua obra?

O feminismo veio a mim em vivência, antes de leituras. De conselho e exemplo sofrido de mãe, de sentir na pele o quão difícil é ter o trabalho notado em uma sociedade extremamente patriarcal, vivendo numa cidade provinciana como a nossa. Hoje aumentar minhas referências nessa pauta me deixa pensativa sobre o quanto normalizamos o que não é normal, e o quanto suportamos caladas até aqui. Impossível tais vivências não influenciarem diretamente na minha escrita e produção como um todo. Em alguns contos, como “Envelope”, narro em metáforas doloridas a opressão vivenciada por tantas mulheres em um relacionamento abusivo. Uma mulher larga tudo, casa, marido, filhos, emprego para experimentar sua sexualidade em uma aventura juvenil no conto “Outra vida”. Em uma viagem otimista, escrevo em “Energia transitória” sobre uma personagem que transforma homens reais em bonecos eletrônicos de prazer, tornando isso um negócio que vai se expandindo e reinventando a sociedade. Isso fala muito sobre os reflexos da objetificação dos nossos corpos que são tidos como uma vitrine para homens, se usarmos em algo diferente que não seja o prazer masculino, o nosso corpo é “cancelado” pela sociedade, como vemos em protestos contendo nudez. Sou uma apaixonada por corpos, pela nudez. Eu a desenho, admiro, escrevo, consumo e nem sempre ela fala sobre erotismo, não deveria ser conteúdo sensível, a existência é nua, de tanto vestirmos nossas percepções e opiniões vamos alimentando um sociedade mascarada, onde ninguém consegue ser o que é. Em um espelho, ficamos irreconhecíveis a nós mesmos.

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Demetrios Galvão: “A poesia é uma arte subversiva”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Aos que me perguntam, digo que é difícil – quase impossível mesmo – não gostar do Demetrios Galvão. O cara é um baita poeta, professor extraordinário de história, encantador de gentes, curte rock and roll, pai do Assis e companheiro da Emanuelle, de esquerda e, não bastasse, teve em  Bandeira, Quintana e Neruda a inspiração inicial pela arte do versejar.

Quando o conheci? Faz um tantinho de anos, mas foi em 2012 sobretudo, quando fomos à Balada Literária de São Paulo, a convite  do intrépido Marcelino Freire, que entrelaçamos de vez nossa amizade e inquietações culturais. De tal forma que basta eu acenar, a exemplo desta entrevista, pra ele topar na hora; sendo a recíproca, claro, correspondida também.

Metido com a poesia até a alma, Demetrios tem quase 20 anos de estrada, uma obra constituída por cinco livros – entre os quais BifurcaçõesO avesso da lâmpada e Reabitar – e o projeto poético Capsular, sem falar ainda de textos publicados em antologias e revistas literárias. E pensar que tudo começou, na adolescência, ao frequentar bibliotecas públicas de Teresina.

Confessa que só foi se achar literariamente, algum tempo depois, ao ler poetas que, desafinando o cânone ocidental, entortam os leitores de maneira irreversível. Rimbaud, Chacal, Leminski, Torquato, Kerouac, Ginsberg e Burroughs são alguns desses autores que abrem olhares diferenciados sobre o cotidiano nas suas infinitas possibilidades de linguagem. Afinal, um poeta não se faz com versos, lição que Demetrios assimilou do nosso Anjo torto, mas correndo risco e sem medo do perigo.

Sua poética de temática variada e aberta, um assunto levando a outros e sem fim previsível, assenta-se num tripé pra lá de instigante: vida, subversão e atitude – uma coisa puxa outra a fim de criar espaços de respiro e grito coletivo, notadamente contra o provincianismo de Teresina, onde nasceu e vive.

Diferentemente do “homem que sente febre e tem medo de falar o que lhe dói”, tão bem retratado no texto Útero paterno, do livro Reabitar, Demetrios Galvão solta o verbo livremente nesta entrevista. E quem ganha, óbvio, somos nós que o admiramos como poeta e coeditor da Acrobata – revista de literatura, artes visuais e outros desequilíbrios.

 

A escritora espanhola Rosa Monteiro afirmou, certa vez, que escreve para suportar a vida. No seu caso, por que escreve? 

Escrevo porque isso me ajuda a pensar nas tramas da vida, nos pequenos infinitos que existem como delicadezas frágeis e vitais para a nossa sobrevivência. Escrevo porque o processo de criação me dá prazer e satisfaz algumas de minhas necessidades subjetivas, imaginárias. Mas escrevo, sobretudo, porque a poesia é uma arte de subversão e é por meio dela, que crio micro-resistência – um campo de possibilidades.

Há quem diga que não é a pessoa que escolhe a poesia, mas o contrário. Você lembra do momento quando foi, em definitivo, fisgado por ela? 

Ela me encontrou em algum momento de minhas andanças pelo centro da cidade e me puxou, pelo braço, até uma biblioteca pública e depois para outras tantas. Na adolescência as intensidades sonoras do rock marcavam o meu horizonte e, de certa fora, me abriu algumas portas e janelas para perceber que existia um outro tipo de existência fora da caretice conservadora habitual. Aos poucos fui aproximando as sinuosidades metafóricas da poesia com o inconformismo do rock and roll e aí, fiz uma descoberta importante. Nesse percurso, peguei algumas senhas importantes com a banda The Doors e o seu vocalista, Jim Morisson, que me levaram a poetas incendiários e rebeldes, como Rimbaud, Baudelaire, Ginsberg e todos os beats. Essa é a forma que encontro para falar dos meus inícios com a poesia e das descobertas que me levaram para um caminho sem volta. Penso que a poesia me educou, me alfabetizou nos temas do mundo sensível, me proporcionando uma virada qualitativa de vida.

A princípio, quando escrevo, nunca penso no leitor – a escrita é minha, a leitura é dele e nos encontramos no plano fantástico da imaginação, do prazer, do devaneio.

Que motivos o levaram a escolher justamente duas profissões tão menosprezadas no Brasil: professor e poeta? 

Creio que pelo fato de serem duas atividades com a palavra e por serem performativamente político-sensíveis, engajadas na profusão de sentidos, do diálogo. As minhas atividades como professor de história e de poeta, partem de uma reflexão que busca aproximar de forma consciente a poesia, a história, a pedagogia, a cultura, em um mesmo universo gravitacional de energias que se atraem. Esse encontro de potências passa pela implicação de ensinar/aprender, uma relação de troca, de intercâmbio que ampliam a imaginação e desdobram uma pluralidade de caminhos para a compreensão de si, do outro e do mundo. Mas, é claro que, essa potência (poesia/pedagogia) ganha status de marginalidade em um país onde as “pessoas de bem” valorizam armas e não, os livros. Pelo menos é o que vivemos agora com o projeto político que emergiu após as últimas eleições.

Acredito que a poesia/arte (substância criativa) e a pedagogia (ciência do esclarecimento) podem funcionar como uma espécie de antídoto para esse mal histórico que está em nossas raízes. É obvio que isso, por si só, não seria a resolução dos problemas do país.  Mas a valorização dos profissionais da educação e dos poetas/artistas, seria um passo qualitativo para a construção de uma sociedade mais acolhedora, humana, justa e disposta a criar um projeto diferenciado de nação.

Além de livros, você também é um dos editores da revista Acrobata. Do que trata essa revista celebrada dentro e fora do Piauí? 

A Acrobata é um território de pensamento, uma articulação afetiva-estética que transcende fronteiras geográficas, institucionais. A revista nasceu em Teresina no ano de 2013, pelas mãos de 4 pessoas amigas (eu, Aristides Oliveira, Thiago E e Meire Fernandes) com o intuito de difundir literatura, artes visuais e outros desequilíbrios. O tempo foi passando e a Acrobata foi ganhando corpo, a cada número mais pessoas envolvidas, mais longe se ia, mais leitores e leitoras tinham acesso as nossas edições. 8 anos depois, temos na bagagem 9 edições impressas com colaborações de escritores/artistas de diferentes partes do Brasil e do mundo, lançamentos por diferentes várias cidades do Brasil, participação em um tanto de eventos e continuamos vivos, com bastante saúde editorial.

Agora, em formato eletrônico, desde o final de 2019, atuamos em uma plataforma que tem publicações quase que diariamente – poemas, contos, entrevistas, traduções, ensaios, processos de criação, artes visuais, resenhas. Dos integrantes iniciais que criaram a revista, restaram eu e o Aristides, mas outras pessoas chegaram junto para fortalecer e ajudar a esticar essa história bonita que estamos inventando.

Em qual tradição literária se enquadra sua obra: apolínea ou dionisíaca? Explique essa escolha. 

No meu universo criativo Apolo e Dionísio sentam juntos para tomar umas e bater papo, sem problema. O impulso primeiro com a palavra é dionisíaco e o trabalho posterior, os detalhes e acabamentos do texto é apolíneo. Portanto, os dois estão juntos e seguem em uma relação não binária (kkk). Mas, admito que a tradição dionisíaca se sobressai na expressão final da poesia que faço, inclusive pelas minhas escolhas como leitor, ligadas aos poetas líricos do desregramento que seguem pelos caminhos do simbolismo, surrealismo, beat.

Ao longo de sua travessia poética, de quase 20 anos, que tem aprendido na relação entre vida, linguagem e realidade? 

Que não há vida sem linguagem e nem linguagem sem vida, que a poesia é um artefato mágico que nos ajuda a transcender a realidade convencional, criando outros mundos possíveis. Aprendi muito com os ensaios de Octávio Paz, as entrevistas de Roberto Piva, Hilda Hilst e com o famoso poema do Mário Faustino “vida toda linguagem”.

Encaro a poesia e a arte como artefatos vivos e repletos de sentidos, criados com o intuito de expandir o que chamamos de realidade, essa dimensão corriqueira que está povoada de convenções e de banalidades. Por isso, penso que a poesia que faço não pode repetir o que já existe e tem, no mínimo, que acrescentar algo a paisagem existente.

Que ideia faz do leitor que consome sua poesia e do papel que ele exerce na construção da mesma? 

A princípio, quando escrevo, nunca penso no leitor – a escrita é minha, a leitura é dele e nos encontramos no plano fantástico da imaginação, do prazer, do devaneio. Gosto de pensar que a poesia sempre irá saltar do texto e se embrenhar na floresta dos sentidos, como um ser indomável e selvagem. Com isso, minha poesia é desenhada para ter o máximo possível de interpretações, por isso exploro bastante o recurso das metáforas pra turbinar os aspectos subjetivos do texto e me distanciar da realidade dada, obvia. O meu papel como escritor é provocar a viagem do leitor e aí, ele vai pra onde quiser e como quiser.

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Dani Marques: “Fui fisgada pela prosa”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

 

No ano em que o Brasil reconquistava a democracia, pondo fim a 21 anos de ditadura militar, nascia Dani Marques, na Maternidade Evangelina Rosa. Estou falando de 1985, data festejada pelos brasileiros, e da capital Teresina, cidade onde nasceu. Mal sabiam os pais que a filhota iria, desde cedo, despertar o gosto pela leitura e guiar-se pelo signo da liberdade.

Aos 12 anos, já colecionava cadernos com as suas anotações, bem como devorava livros de Sidney Sheldon, Jorge Amado, Fernando Sabino, Luis Fernando Verissimo e, acredite, os nada fáceis textos de Clarice Lispector. Esses autores e suas instigantes histórias arrebataram de tal forma essa jovem do Mocambinho que, cercada por livros, ela deixou a solidão de lado – como filha única – e embarcou em viagens prazerosas através das palavras.

Surpreendente é que Dani, mesmo gostando de ler e escrever, formou-se em Química (Uespi) e Nutrição (Ufpi), cursos aparentemente distantes do universo literário. Mas não devemos esquecer que sem ligações com a realidade e alimentos fortalecendo a alma, fica difícil, pra não dizer impossível, construir uma obra de valor estético.

Entre verso e prosa, escolheu o último, ao contrário da maioria de nossas escritoras, optando assim pelo narrativo, sobretudo, a crônica, gênero que encanta os leitores pela leveza e por um olhar poético do cotidiano. Ao fazer isso, remonta à origem da literatura brasileira, em particular à Carta de Achamento, de Pero Vaz de Caminha, tida como certidão de batismo do país.

Seu nome está intrinsecamente ligado a vários aspectos da atual cultura no Piauí, em particular ao cenário da capital: lançamento de fanzines coletivos e individuais, saraus poéticos, “Leia Mulheres”, coluna no site Malamanhadas, literatura feminista e, não podemos esquecer, o “Desembucha, mulher!”, clube de leitura dedicado a textos escritos por manas. Sem falar ainda de Textos feitos em momentos (in)oportunos, sua estreia solo em livro, pequena coletânea inspirada nos sentimentos de maternidade.

Dito isso, façam silêncio e desliguem-se de tudo porque agora, senhoras e senhores, vocês serão fisgados pela bela entrevista da Dani Marques, uma autora de prosa envolvente e carisma irresistível.

 

Vinícius dizia que a construção literária é fruto da vida de cada um (a). Que acha dessa afirmação?

Sim, eu concordo. Eu, enquanto pessoa que escreve, posso dizer que fui forjada nos livros que li e nas minhas vivências. Uma grande parcela dos meus textos reflete minha indignação enquanto mãe-solo.

Você acredita na responsabilidade da literatura com a sua época? 

Totalmente. Cada autor tem sua visão de mundo, porém, enquanto leitora, não consigo consumir nada contemporâneo que seja escrito em cima de narrativas racistas, homofóbicas, machistas, que tenha menosprezo pelas minorias, que tenha desrespeito pelos Direitos Humanos, porque na época em que vivemos essas narrativas não são mais toleráveis. Eu acredito no poder modificador da Literatura, seja para o bem ou para o mal. Tanto que hoje em dia se observa que, paralelo a nossa realidade, alguns autores foram essenciais na construção dessa narrativa delirante que estamos vivenciando, infelizmente.

E a opção pela prosa, quando e como se deu? 

Por ser uma leitora de prosa, acabei me identificando com ela, mais especificamente com a crônica. Acho um gênero maravilhoso, atemporal. Fui fisgada pela prosa.

Seu nome está ligado hoje a dois projetos: “Leia Mulheres” e “Desembucha, mulher!”. São coisas distintas ou complementares? 

Leia Mulheres é uma das melhores coisas que me aconteceu (o Leia Mulheres é um clube de leitura que se propõe a ler obras escritas por mulheres). Eu sou muito grata à escritora piauiense Lorena Nery Borges que teve essa iniciativa de trazer o Leia pra cá em 2017. Sempre fui muito ativa no clube como frequentadora e, em 2018, recebi o convite para ser uma das mediadoras. O Leia está ligado ao nascimento do fanzine “Desembucha, mulher!”, porque uma das maiores façanhas do clube é mostrar que aqui, no Piauí, existem grandes escritoras. Então, a partir do momento que conseguimos conhecê-las, fica a mensagem que também é possível pra gente. O “Desembucha, mulher!” foi um projeto muito bonito, que nasceu dessa perspectiva, eram mulheres lançando seus textos sem medo, sem precisar de validação. Tudo era feito por uma mulher, desde a curadoria, passando pela diagramação, impressão e venda. Então, isso deixava as mulheres muito mais à vontade para desembucharem as palavras que estavam presas em suas gargantas.

Dos fanzines ao primeiro livro, Textos feitos em momentos (in)oportunos, foram alguns anos. Por que a demora e que significado tem essa estreia na sua carreira? 

O fanzine me abriu portas, foi ele que me encorajou a abrir uma editora independente, a Caneleiro Editora. Eu já tinha lançado três títulos e me dei conta que poderia lançar o meu pela editora, aqui vale aquela máxima “santo de casa não opera milagre”. Foi aí que saiu Textos feitos em momentos (in)oportunos, que nada mais é que um exorcismo em forma de textos, que foram saindo nos momentos oportunos, ou inoportunos, que a maternidade me proporcionou.

Quais escritoras marcam a sua voz literária? 

No Piauí, eu gosto muito da Sérgia A, Ananda Sampaio, Lorena Nery Borges, Cynthia Osório e Lara Matos. Além dessas maravilhosas, também sou fã da Jane Austen, Virginia Woolf, Conceição Evaristo, Lygia Fagundes Telles, Angélica Freitas, Marina Colasanti, Chimamanda Ngozi Adichie e Buchi Emecheta.

Em que aspectos a escrita feminina se diferencia da masculina? 

Em tudo. Sabemos que o cânone é eurocêntrico, masculino e branco. A mulher que aparece nessa literatura nos é falada por um homem. A partir do momento que se começa a dar visibilidade à escrita feita por mulheres, assim gosto de chamar, abre-se um leque, uma diversidade infinita de mulheres. Na verdade, essa diversidade sempre existiu, era invisibilizada. Apesar de existirem várias vozes femininas, infelizmente existem alguns pontos convergentes, como o machismo, por exemplo. Essa visibilidade tem o poder de mostrar à sociedade essa mazela que é o machismo em suas várias nuances.