Por Wellington Soares, professor e escritor

 

Aos que me perguntam, digo que é difícil – quase impossível mesmo – não gostar do Demetrios Galvão. O cara é um baita poeta, professor extraordinário de história, encantador de gentes, curte rock and roll, pai do Assis e companheiro da Emanuelle, de esquerda e, não bastasse, teve em  Bandeira, Quintana e Neruda a inspiração inicial pela arte do versejar.

Quando o conheci? Faz um tantinho de anos, mas foi em 2012 sobretudo, quando fomos à Balada Literária de São Paulo, a convite  do intrépido Marcelino Freire, que entrelaçamos de vez nossa amizade e inquietações culturais. De tal forma que basta eu acenar, a exemplo desta entrevista, pra ele topar na hora; sendo a recíproca, claro, correspondida também.

Metido com a poesia até a alma, Demetrios tem quase 20 anos de estrada, uma obra constituída por cinco livros – entre os quais BifurcaçõesO avesso da lâmpada e Reabitar – e o projeto poético Capsular, sem falar ainda de textos publicados em antologias e revistas literárias. E pensar que tudo começou, na adolescência, ao frequentar bibliotecas públicas de Teresina.

Confessa que só foi se achar literariamente, algum tempo depois, ao ler poetas que, desafinando o cânone ocidental, entortam os leitores de maneira irreversível. Rimbaud, Chacal, Leminski, Torquato, Kerouac, Ginsberg e Burroughs são alguns desses autores que abrem olhares diferenciados sobre o cotidiano nas suas infinitas possibilidades de linguagem. Afinal, um poeta não se faz com versos, lição que Demetrios assimilou do nosso Anjo torto, mas correndo risco e sem medo do perigo.

Sua poética de temática variada e aberta, um assunto levando a outros e sem fim previsível, assenta-se num tripé pra lá de instigante: vida, subversão e atitude – uma coisa puxa outra a fim de criar espaços de respiro e grito coletivo, notadamente contra o provincianismo de Teresina, onde nasceu e vive.

Diferentemente do “homem que sente febre e tem medo de falar o que lhe dói”, tão bem retratado no texto Útero paterno, do livro Reabitar, Demetrios Galvão solta o verbo livremente nesta entrevista. E quem ganha, óbvio, somos nós que o admiramos como poeta e coeditor da Acrobata – revista de literatura, artes visuais e outros desequilíbrios.

 

A escritora espanhola Rosa Monteiro afirmou, certa vez, que escreve para suportar a vida. No seu caso, por que escreve? 

Escrevo porque isso me ajuda a pensar nas tramas da vida, nos pequenos infinitos que existem como delicadezas frágeis e vitais para a nossa sobrevivência. Escrevo porque o processo de criação me dá prazer e satisfaz algumas de minhas necessidades subjetivas, imaginárias. Mas escrevo, sobretudo, porque a poesia é uma arte de subversão e é por meio dela, que crio micro-resistência – um campo de possibilidades.

Há quem diga que não é a pessoa que escolhe a poesia, mas o contrário. Você lembra do momento quando foi, em definitivo, fisgado por ela? 

Ela me encontrou em algum momento de minhas andanças pelo centro da cidade e me puxou, pelo braço, até uma biblioteca pública e depois para outras tantas. Na adolescência as intensidades sonoras do rock marcavam o meu horizonte e, de certa fora, me abriu algumas portas e janelas para perceber que existia um outro tipo de existência fora da caretice conservadora habitual. Aos poucos fui aproximando as sinuosidades metafóricas da poesia com o inconformismo do rock and roll e aí, fiz uma descoberta importante. Nesse percurso, peguei algumas senhas importantes com a banda The Doors e o seu vocalista, Jim Morisson, que me levaram a poetas incendiários e rebeldes, como Rimbaud, Baudelaire, Ginsberg e todos os beats. Essa é a forma que encontro para falar dos meus inícios com a poesia e das descobertas que me levaram para um caminho sem volta. Penso que a poesia me educou, me alfabetizou nos temas do mundo sensível, me proporcionando uma virada qualitativa de vida.

A princípio, quando escrevo, nunca penso no leitor – a escrita é minha, a leitura é dele e nos encontramos no plano fantástico da imaginação, do prazer, do devaneio.

Que motivos o levaram a escolher justamente duas profissões tão menosprezadas no Brasil: professor e poeta? 

Creio que pelo fato de serem duas atividades com a palavra e por serem performativamente político-sensíveis, engajadas na profusão de sentidos, do diálogo. As minhas atividades como professor de história e de poeta, partem de uma reflexão que busca aproximar de forma consciente a poesia, a história, a pedagogia, a cultura, em um mesmo universo gravitacional de energias que se atraem. Esse encontro de potências passa pela implicação de ensinar/aprender, uma relação de troca, de intercâmbio que ampliam a imaginação e desdobram uma pluralidade de caminhos para a compreensão de si, do outro e do mundo. Mas, é claro que, essa potência (poesia/pedagogia) ganha status de marginalidade em um país onde as “pessoas de bem” valorizam armas e não, os livros. Pelo menos é o que vivemos agora com o projeto político que emergiu após as últimas eleições.

Acredito que a poesia/arte (substância criativa) e a pedagogia (ciência do esclarecimento) podem funcionar como uma espécie de antídoto para esse mal histórico que está em nossas raízes. É obvio que isso, por si só, não seria a resolução dos problemas do país.  Mas a valorização dos profissionais da educação e dos poetas/artistas, seria um passo qualitativo para a construção de uma sociedade mais acolhedora, humana, justa e disposta a criar um projeto diferenciado de nação.

Além de livros, você também é um dos editores da revista Acrobata. Do que trata essa revista celebrada dentro e fora do Piauí? 

A Acrobata é um território de pensamento, uma articulação afetiva-estética que transcende fronteiras geográficas, institucionais. A revista nasceu em Teresina no ano de 2013, pelas mãos de 4 pessoas amigas (eu, Aristides Oliveira, Thiago E e Meire Fernandes) com o intuito de difundir literatura, artes visuais e outros desequilíbrios. O tempo foi passando e a Acrobata foi ganhando corpo, a cada número mais pessoas envolvidas, mais longe se ia, mais leitores e leitoras tinham acesso as nossas edições. 8 anos depois, temos na bagagem 9 edições impressas com colaborações de escritores/artistas de diferentes partes do Brasil e do mundo, lançamentos por diferentes várias cidades do Brasil, participação em um tanto de eventos e continuamos vivos, com bastante saúde editorial.

Agora, em formato eletrônico, desde o final de 2019, atuamos em uma plataforma que tem publicações quase que diariamente – poemas, contos, entrevistas, traduções, ensaios, processos de criação, artes visuais, resenhas. Dos integrantes iniciais que criaram a revista, restaram eu e o Aristides, mas outras pessoas chegaram junto para fortalecer e ajudar a esticar essa história bonita que estamos inventando.

Em qual tradição literária se enquadra sua obra: apolínea ou dionisíaca? Explique essa escolha. 

No meu universo criativo Apolo e Dionísio sentam juntos para tomar umas e bater papo, sem problema. O impulso primeiro com a palavra é dionisíaco e o trabalho posterior, os detalhes e acabamentos do texto é apolíneo. Portanto, os dois estão juntos e seguem em uma relação não binária (kkk). Mas, admito que a tradição dionisíaca se sobressai na expressão final da poesia que faço, inclusive pelas minhas escolhas como leitor, ligadas aos poetas líricos do desregramento que seguem pelos caminhos do simbolismo, surrealismo, beat.

Ao longo de sua travessia poética, de quase 20 anos, que tem aprendido na relação entre vida, linguagem e realidade? 

Que não há vida sem linguagem e nem linguagem sem vida, que a poesia é um artefato mágico que nos ajuda a transcender a realidade convencional, criando outros mundos possíveis. Aprendi muito com os ensaios de Octávio Paz, as entrevistas de Roberto Piva, Hilda Hilst e com o famoso poema do Mário Faustino “vida toda linguagem”.

Encaro a poesia e a arte como artefatos vivos e repletos de sentidos, criados com o intuito de expandir o que chamamos de realidade, essa dimensão corriqueira que está povoada de convenções e de banalidades. Por isso, penso que a poesia que faço não pode repetir o que já existe e tem, no mínimo, que acrescentar algo a paisagem existente.

Que ideia faz do leitor que consome sua poesia e do papel que ele exerce na construção da mesma? 

A princípio, quando escrevo, nunca penso no leitor – a escrita é minha, a leitura é dele e nos encontramos no plano fantástico da imaginação, do prazer, do devaneio. Gosto de pensar que a poesia sempre irá saltar do texto e se embrenhar na floresta dos sentidos, como um ser indomável e selvagem. Com isso, minha poesia é desenhada para ter o máximo possível de interpretações, por isso exploro bastante o recurso das metáforas pra turbinar os aspectos subjetivos do texto e me distanciar da realidade dada, obvia. O meu papel como escritor é provocar a viagem do leitor e aí, ele vai pra onde quiser e como quiser.

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