Por Wellington Soares, professor e escritor

Essa afirmação dita acima, pela Márcia, não é jogo de retórica, não. Pode acreditar, pois quem a vê atuando, sozinha ou no Grupo Cafundó, percebe ser ela, entre todas, a criança mais feliz da roda. Animada, de olhos brilhando e sorriso aberto. Caso alguém duvide, recorro à expressão do velho cacique timbira, de Gonçalves Dias: “– Meninos, eu vi!”. Sempre que posso, assisto a seus espetáculos mágicos e envolventes.

Também pudera, Márcia Evelin teve uma infância povoada de livros e histórias. Sua família foi importantíssima, como faz questão de destacar, nesse gosto pela e com a palavra. Quer escrita ou oralizada. A primeira chegava, comprada pelos pais, em coleções e enciclopédias vendidas de porta em porta, uma vez que ainda não havia livrarias em Teresina. A segunda, através de contação de histórias, muito comuns na época, que varava as noites.

Daí para as outras manifestações artísticas foi um pulo, uma coisa puxando outra, levando-a, desde cedo, a perceber que, em termos culturais, quanto mais artes estiverem juntas e misturadas, melhor. Não tardou pra surgir então, com ajuda dos irmãos, o teatro, a dança e a música no cotidiano de todos, recursos fundamentais no seu futuro trabalho de contadora de histórias. Márcia Evelin se apresenta em praças, ruas, hospitais e encontros literários. Sem falar ainda da publicação de três livros autorais e dois em coautoria.

Conhecedor da paixão pelo que faz, costumo frequentemente convidá-la para as feiras literárias que organizo na capital e cidades do interior do estado. Salão do Livro do Dirceu (Saliceu) e Salão do Livro de José de Freitas (Salijo), pra ficarmos apenas em duas, são bons exemplos dessa nossa parceria. São os “baixinhos” e os “grandões”, nesses momentos, que ganham com atividades tão lúdicas e didáticas.

A inspiração para tantos afazeres – mãe, professora, contadora de histórias e escritora –, ela tira do verde das árvores e do canto dos pássaros do sítio onde mora, próximo a Teresina. Eis aqui, nesta entrevista, um pouco da Márcia Evelin, eterna criança deslumbrada com a poética das linguagens e com o universo enigmático da vida.

 

O escritor irlandês C. S. Lewis afirmou que uma história infantil que só pode ser apreciada por crianças não é uma boa história infantil. Que acha disso? 

Concordo plenamente com o escritor. Uma boa história sempre será apreciada por leitores de qualquer idade. Há uma ampla discussão em torno do adjetivo “infantil” para a literatura que é destinada a esse público, já que o infantil deve estar ligado a quem se destina e não a uma simplificação da linguagem para que seja entendida pela criança. A literatura que recebe o rótulo de infantil deve ser interativa, criativa, rica em metáforas, simbologias e não ditos, a fim de que o leitor possa preencher esses vazios com a sua própria história. Se o escritor enxerga essa literatura somente como pretexto para ensinamentos e conselhos morais, faz com que ela perca sua essência estética e fique sem espaços para o leitor habitar. Assim, ele não constrói leitores, não contribui para transformar leitores, nem faz uma literatura que agrade a todos. Por isso prefiro adotar para essa literatura a terminologia de livros para todas as idades. Dessa forma me sinto incluída, pois adoro comprar, ler e contar essas histórias. Elas alimentam a criança que há em mim.

Como surgiu em você a paixão pelos livros, em particular os infantis? 

Tive uma infância povoada de livros e histórias. Nesse tempo não havia muitas livrarias em Teresina e a venda de livros era feita de porta em porta, por vendedores ambulantes e suas grandes malas recheadas de livros, principalmente as coleções e enciclopédias (nosso Google de hoje). Tenho essa imagem muito viva em minha memória, desses livreiros que montavam expositores em nossos terraços. Eu ficava fascinada com a variedade de formas, tamanhos, cores… dos livros. Acredito que foi aí que nasceu minha paixão pelo objeto livro. Meus pais souberam passar para os filhos o valor e importância dos livros para nossas vidas, o que perdura até os dias de hoje. Eu e meus irmãos aprendemos a ler e a amar os livros debruçados nessas enciclopédias que traziam literatura e outros conhecimentos, por onde viajávamos em busca de aventuras. A Coleção O Mundo da Criança (da capa vermelha) foi uma dessas referências. Mais tarde veio a vida acadêmica, a escolha pela docência, a criação da livraria e Clube de Incentivo à Leitura Crie e Conte, a maternidade e a minha paixão pela palavra poética, pela narração de histórias, desembocando na escrita de livros literários destinados, principalmente, às crianças, mas que podem e devem ser lidos por todas as idades.

Nos seus três livros autorais lançados – O Boi do Piauí (2015), O Segredo da Chita Voadora (2017) e A Flor do Pequeno Principezinho (2019) -, que temas e lições de vida os leitores vão encontrar? 

O Boi do Piauí (2015/2021) foi minha primeira história, uma adaptação da cultura popular, que nasceu na oralidade e, depois de ser contada em vários lugares, virou livro impresso, a convite do editor Leonardo Dias, da Editora Nova Aliança (PI). O livro tem a força de manter no imaginário do leitor essa manifestação cultural tão importante que é o ritual do Bumba meu Boi. É um livro brincante e cantante que ganhou uma 2ª edição em 2021, tem a narrativa permeada por canções do Boi e podem ser ouvidas através de um QR Code localizado na contracapa do livro, que direciona o leitor para meu canal no YouTube, onde as músicas se encontram hospedadas.

O Segredo da Chita Voadora (2017) é um livro-homenagem onde referencio e enalteço a beleza da mulher negra e do tecido chita, numa linda história de amor, espécie de conto de fadas do sertão. Homenagem também ao continente africano, de onde eu trouxe o nome Abayomi para a protagonista da história. Nele, o leitor recebe como mimo uma bonequinha feita somente de nós, simbolizando essa personagem, que confecciono com minhas próprias mãos para cada um dos livros.

A Flor do Pequeno Principezinho (2019) é fruto de uma paixão que cultivo, desde a infância, pelo personagem do livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exúpery, obra que inspirou sua criação. É uma história em que coloco a Flor como protagonista, juntamente com o Principezinho e que mostra a força de se criar laços de amizade, de buscarmos nossas raízes ancestrais. Uma história que leva o leitor a um processo de construção de sua própria identidade étnica, quando apresenta um Pequeno Príncipe que se transforma ao pisar no solo do continente africano.

Todas as minhas histórias foram editadas pela Editora Nova Aliança (PI) e trazem o elemento mágico, a musicalidade, a valorização da cultura e do ser humano como tônicas da narrativa. Agora em janeiro de 2022 lanço meu novo livro, intitulado Menino do Congo, um presente de gratidão aos brincantes do Grupo de Congos de Oeiras (PI), com quem dividi minha pesquisa de mestrado, intitulada Tradição Oral e Literatura: laços de matriz cultural africana em crianças brincantes dos Conguinhos, cidade de Oeiras (PI), no ano de 2012. O livro também traz um QR Code, onde o leitor poderá ouvir as músicas cantadas no ritual.

Na sua opinião, a obra de Monteiro Lobato, que despertou o hábito da leitura em muita gente, ainda continua atual? 

Lobato foi muito importante para toda uma geração de leitores e escritores conceituados e tem sua relevância dentro da história da literatura infantil brasileira, isso não pode ser negado. Infelizmente sua obra, analisada com as lentes da contemporaneidade, apresenta muitos problemas relacionados a preconceitos e racismo, tanto na ilustração como na linguagem utilizada, o que tem contribuído para criar polêmicas em torno da aceitação e adoção pelas escolas e pelo público mais consciente do lugar que a literatura infantojuvenil ocupa como incentivadora de práticas antirracistas.

Além dos livros impressos, você leva também à criançada, através do Grupo Cafundó, contação de histórias. Qual dessas atividades desperta mais alegria em você? 

Ambas me alegram muito, porque faço por dom, desejo, paixão… Gosto muito de narrar histórias, de descobrir elementos que possam torná-las mais próximas das crianças, como a musicalidade presente no texto, as várias vozes dos personagens, as expressões corporais e toda a performance criada para contar. Primeiro nasceu a Márcia contadora de histórias, com o grupo Cafundó de Contadores de Histórias, na companhia de Anna Miranda (parceira de invencionices, que traz o dom de narrar na voz e no corpo), acompanhadas pelo musicista Garibaldi Ramos, mais tarde substituído por Fernando Ferreira e Tauana Queiroz, também musicistas. Juntos contamos histórias em praças, escolas, hospitais… em todos os lugares que tenham pessoas atentas a palavra narrada. Só depois de muitos anos dessa prática, me veio a vontade de experimentar a escrita. Diria que me considero uma contadora de histórias que de tanto contar histórias e visitar universos mágicos acabou tendo vontade de escrever.

A literatura infantil no Brasil, dentre todos os gêneros, é a que tem melhor acolhida junto aos leitores e às escolas. Como anda o nosso estado nesse cenário nacional? 

Produzimos muito, mas a nossa literatura ainda não tem grande visibilidade no cenário nacional. Precisamos acreditar no potencial literário dos escritores piauienses, na qualidade estética dos livros publicados por editoras do nosso estado e deixar de achar que o que produzimos é uma literatura menor. Somos muito bons e temos todas as qualidades para nos lançarmos no mercado editorial nacional. Infelizmente as escolas particulares e órgãos públicos ligados à educação do estado do Piauí ainda não pensam assim, não valorizam, como deveriam, a literatura infantojuvenil produzida por escritores piauienses, no que tange a conhecimento dos escritores, suas obras e adoção de títulos. Penso que temos um longo caminho a trilhar objetivando a mudança desse cenário, a começar pela união dos escritores e entidades literárias do Piauí.

Por que você costuma dizer que não conseguiria viver sem a literatura? 

Venho de uma família de artistas, das diferentes linguagens da arte. Sou apaixonada pela palavra poética e vivo cercada por ela. A literatura é meu instrumento de trabalho, minha arma contra o tédio, o ócio, a paralisação… Entendo a literatura como arte, criação e possibilidade de crescimento humano. Ela transforma, acalma, alimenta, nutre e responde a questionamentos. Como viver sem ela?