Luiz Alberto Mendes
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Cultura Criminal

Meu nome é Luiz Alberto Mendes. Cumpri 31 anos e 11 meses de prisão. Estou solto há quase doze anos. Não há ressentimentos. Concordo que os erros que cometi sejam passíveis de severas penalidades. Também, como todos, quero segurança para aqueles que amo. Apenas considero que prisão, tal como existe no país, é instituição falida e não cumpre a função para a qual foi projetada. Muito pelo contrário.

Cumpri minha pena lendo e escrevendo. Fui analisando tudo o que vi e vivenciei, tentando compreender o que acontecia e porque. Aqueles que orientam a opinião pública acerca da vida intramuros, desconhecem completamente sobre o que falam. Como ninguém cobra veracidade, já que os interessados, os presos, têm suas bocas fechadas, prisão, tal como ela é, permanece uma ideia obscurecida. A consequência é obvia: ninguém sabe como atuar nessa área.

De cerca de 30 anos a essa parte, as prisões têm sido degradadas. O que havia de investimento, de tentativa de recuperação social do homem preso, foi sendo dilapidado. A verba reduziu-se drasticamente em relação direta à superlotação dos presídios. Setores prioritários como educação, trabalho e saúde foram perdendo a importância. Prisão tornou-se depósito em que se enterram homens em pé.

Tudo é simples e claro. Os transgressores são recolhidos da ação criminosa diretamente para as prisões. Cada qual com seu modus operandis e conhecimentos especializados no crime. Provêm de bairros, cidades e até países diferentes. O homem é um ser que produz cultura. Onde estiver e em que condição estiver, é produtor cultural por natureza e necessidade. Que cultura poderá produzir, a partir das informações criminosas que traz consigo, abandonado às suas próprias cogitações, entregue a seus desvarios e à sua visão distorcida do que seja a vida?

Dadas tais condições, se conclui que o ser aprisionado só poderá produzir a cultura do crime. Será espontâneo. É a única possível, não há meios ou qualquer incentivo para qualquer outra. A sociedade os abandona nas mãos daqueles que dirigem as prisões, sem efetuar cobrança alguma. Criam aquela cultura traduzida pela somatória das ações criminosas acumuladas no meio em que convive obrigatoriamente. É a cultura do abandonado.

E o que contém essa cultura? A ciência de quem aprende a sobreviver ao meio adverso. É obvio que aprimora suas técnicas e realiza novos aprendizados criminosos. Aprende a esvaziar-se de seus sentimentos mais nobres: “coração de malandro é na sola do pé”. Qual o diálogo possível entre quem matou ou roubou, com quem traficou ou sequestrou? Fica fácil concluir que será sobre crimes, já que não há outro assunto que lhes venha de fora para conversar.

O nordestino, depois de décadas morando no Sul do país, continua gostando de comer, ouvir, a comida e a música de sua terra. Cultura não morre, permanece para sempre. São segmentos que, em sequência, formam cada um de nós. Uma vez contaminado pela cultura criminal, a dificuldade de superá-la é considerável. Anos imerso numa tal cultura, impregna o inconsciente. A vítima (só pode ser vítima quem esta a mercê de tal doença social) terá sua capacidade crítica prejudicada. Procurará seus iguais e afins, os únicos que falam sua linguagem e possuem seus valores culturais. Os passos seguintes serão óbvios.

Quando não se toma atitude alguma e se julga que essa cultura criminal deve ser lesiva apenas à sua vítima, erra-se longe. É tal qual jogasse uma bomba para o alto e se esperasse que ela criasse asas, como pássaros, e voasse para longe. A ação de qualquer cultura visa sua expansão. Qual vírus social de contaminação espontânea, devorará culturas mais enfraquecidas. Foi assim que nasceram o comando Vermelho, o Terceiro Comando, as Milícias no Rio de Janeiro e o Primeiro Comando da Capital em São Paulo.

Posteriormente, desenvolveram maior capacidade de organização econômica, política e de fogo. Do domínio das prisões para o controle dos morros, favelas e das periferias das grandes cidades, foi um pulo. A cultura desses lugares sempre esteve fragilizada pela miséria, pelo analfabetismo e pelo desemprego. Prato cheio para uma cultura poderosa como a criminal, alimentada pelo tráfico de cocaína.

A solução, está claro, não é invadir o morro com fuzis e metralhadoras. O confronto com carros blindados, balas e bombas trará mais revolta e espaço para a criminalização do povo humilde e sofrido dos morros, favelas e das periferias. Antes é preciso levar trabalho, cultura, escola, cursos, livros, psicologia e assistência social. Lazer, arte, esporte, emprego, cursos profissionalizantes, enfim, instrumentos sociais de valorização humana.

Nas prisões, abrir os portões e colocar o homem fora das grades não significa libertá-lo. Para que a liberdade seja verdadeira, necessário se faz que seja cultural, econômica e psicológica. Posto que liberdade é conquista moral e social.

As bombas não vão criar asas.

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Luiz Mendes

17/12/2015.

Das distâncias que caem a razões pouco razoáveis

Não há notícias de que alguém ande por aí a medir a espessura ou o volume ou o peso das gotas de chuva, o que não exclui a possibilidade de que existam pessoas realizando tão relevante tarefa, grupos de cientistas, estudiosos anônimos e determinados, pode-se dizer até obcecados, incumbidos das obrigações científicas de explicar os mistérios do mundo, imagine dois desses gênios andando por aí, talvez até rivais em competição, Essa mede tanto, Essa mede tanto, Olhe, minha chuva está mais grossa que a sua, venci, Ora, a sua chuva pode ser mais espessa mas a minha molha mais, disputas do gênero tão comuns no dia a dia dos seres humanos seja em que área for do conhecimento, e até do desconhecimento, digamos assim. Vamos desconsiderar momentaneamente essa possibilidade, mas podemos afirmar que chovia uma chuva fina na tarde em que Alfredo conheceu Beatriz e que, a despeito do aparente pouco volume de água presente em cada pingo da chuva que Alfredo tomava, ele estava bastante molhado. Tentou correr para evitar que se ensopasse mas foi uma inútil tentativa, é esse um dilema bastante antigo da humanidade, como se molha mais, quando se corre na chuva com a pressa de terminar logo o trajeto ou quando se anda lentamente, a segunda hipótese demanda mais tempo na travessia porém diminui o impacto das gotas no corpo e ao menos em tese reduz a quantidade de água acumulada, e essa, convém dizer, é a hipótese lançada por um grupo talvez mais preguiçoso ou sem grande vontade de correr, ainda há gente realizando essa pesquisa mundo afora, talvez aqueles mesmos já citados, porém sem resultados concretos, e espera-se para breve uma resposta definitiva a tão inquietante questão, quem sabe a metodologia adequada seja mesmo a medição da espessura das gotas, vamos torcer pelo fim das pesquisas, que já nos cansam a todos esperar, mas por ora pode-se afirmar sem medo de equívoco que Alfredo estava, mesmo, completamente encharcado, nenhuma novidade, era assim sempre que se esquecia de carregar o guarda-chuvas, como naquela tarde. Nunca houve um só dia em sua vida em que, carregando o guarda-chuvas, este tenha se tornado instrumento útil, se o trazia consigo, por mais que ventasse, trovejasse, relampeasse ou sua mãe o avisasse, nada de chuva, nem um pingo, nem uma gota, nem um mililitro, nada, se o céu estivesse pesado e arroxeado para chover não chovia, mesmo que se sentisse o cheiro de terra molhada que anuncia a chuva, é bom que aqui se abra um parêntese para dizer, apenas a título de curiosidade e sem mais pretensões, que tal cheiro nunca sai da terra, mas sim provém de uma bactéria presente no ar e que se rompe em alta de umidade e libera o que se convencionou chamar de cheiro de chuva, e é um cheiro que quase toda a gente diz ser bom, talvez alguma nostalgia atávica, enfim, não é esse o ponto e, sim, que se Alfredo carregasse consigo o guarda-chuvas e o serviço de meteorologia avisasse no rádio de uma chuva torrencial ela não vinha, se a moça do tempo ajoelhasse na tela da TV jurando por todos os santos, por Nossa Senhora, pelo Santo Padre, pela mãe, o pai ou mesmo os filhos que choveria naquele dia, nada, tudo pareceria armado para a mais diluviana tempestade mas ela não viria. Ao contrário, bastava Alfredo sair sem o guarda-chuvas um dia que fosse e lá vinha ela, fina, persistente, constante, não havia como falhar, tudo que fosse ao contrário do afirmado acima, ou seja, mesmo que o céu estivesse azul, aberto, claro, ou, se de noite fosse, estrelado, limpo, mesmo que não houvesse vento nem cheiro de chuva nem previsão meteorológica, mesmo que nos jornais aparecesse ao lado da data de publicação um pequeno sol desenhado, como é de praxe nos periódicos diários, mesmo assim, era só Alfredo se descuidar, se distrair e sair de casa sem o guarda-chuvas pendurado no braço direito e, exatamente após concluir o centésimo vigésimo quarto passo, começava a garoa. Pois era uma dessas tardes. Alfredo havia esquecido o guarda-chuvas, já dera bem mais que cento e vinte e quatro passos, talvez passassem já dos mil e quinhentos, o que nos induz a crer que verdadeira, diante do já exposto, sua situação de encharcado, foi nessa situação que Alfredo, molhado até a alma se almas existirem e de alguma maneira possam se molhar, ao dobrar a esquina deu de cara com Beatriz. A bem da verdade dos fatos é bom considerar que “deu de cara” é uma afirmação hiperbólica, já que Beatriz vinha caminhando em sua direção, porém, à distancia de cerca de um quarteirão, ou algo próximo a cem metros do local em que Alfredo se encontrava naquele instante, e foi tão grande o impacto que Alfredo não conseguiu dar mais um passo que fosse. De alguma maneira, mesmo estando o rosto de Beatriz a tal distância, pareceu a Alfredo estar ali a menos de um centímetro, talvez meio ou menos, de seus olhos, Alfredo nunca havia visto assim tão de perto um rosto de mulher, exceção feita ao rosto de sua finada mãe, e vamos novamente lembrar que o rosto de Beatriz se encontrava a cerca de cem metros de distância. E enquanto ela caminhava em sua direção essa distância caía à razão de um metro a cada dois segundos, agora eram noventa e nove, agora noventa e oito, agora noventa e sete, e assim foi até que Beatriz e seu rosto estacionaram a trinta e oito metros dos olhos de Alfredo, mas para ele foi como se ela estivesse dentro dele, como se ela houvesse invadido cada ínfimo espaço de seu corpo, não mais órgãos, não mais vísceras, tudo agora dentro dele era Beatriz, seu coração pulsava Beatriz, seus pulmões respiravam Beatriz, e para poupar o leitor de descrições anatômicas desnecessárias vamos afirmar que, interiormente, todo Alfredo era agora Beatriz, que se Beatriz respirasse também respiraria Alfredo, que se Beatriz sorrisse também sorriria Alfredo, que se Beatriz derramasse lágrimas haja lenços para consolar Alfredo, e que, se Beatriz por algum motivo misterioso desaparecesse do raio de visão de Alfredo, morto ele estaria, já que, assim como morrem os seres humanos à falta de oxigênio, morreria Alfredo sem Beatriz, que, a partir daquele instante, ele respirava. E naquele ponto da rua ficou Alfredo estacionado, completamente imóvel, quase petrificado, algum desavisado poderia pensar ser uma estátua, uma homenagem dos munícipes ao encharcado anônimo, mas era Alfredo, olhos fixos em Beatriz, que voltara a se mover em sua direção mas ainda sem o olhar nos olhos, não que ela os evitasse, mas é que os olhos de Beatriz corriam alegres pela rua, iam de um lado a outro, de uma calçada a outra, olhavam para baixo e um segundo depois para cima, e muito havia para ser visto pelos olhos de Beatriz que olhava para tudo muito e bastante curiosa e desatenta, e seria muito mesmo uma obra do acaso se em algum momento os olhos de Alfredo e Beatriz se cruzassem, quase tão improvável quanto um choque planetário entre Vênus e Plutão, e Beatriz sorria, e Alfredo tentava entender porque e como em meio à chuva que caía por toda a cidade Beatriz caminhava com o sol brilhando sobre ela. Um sol leve, como um sol que acaba de nascer, refletindo-se nos cabelos, era como se Beatriz emanasse luz, e o sol ainda pintava de leve amarelo as flores que Beatriz trazia na cabeça, e Alfredo ainda também não entendia como e porque ao redor de Beatriz havia borboletas, azuis, verdes, lilases, de todas as cores, que dançavam ao seu redor enquanto ela caminhava e sorria. E Beatriz já voltara a diminuir a distância entre ela e o estacionado Alfredo à razão de um metro a cada dois segundos, agora, vinte e seis, agora vinte e cinco, contemos mais rapidamente e agora eram vinte metros, dezoito metros, agora oito metros, logo seis metros, e então Beatriz parou a exatos dois metros de Alfredo. E se o mundo é feito de regularidades, e se a ciência se baseia nas probabilidades e nas certezas, se as certezas decorrem da razão empírica, a razão, rainha de tudo o que há, se o mundo conhecido é feito pelas convicções e as coisas possíveis (dizem que já é morta a metafísica), nada existe fora da substância, é o que dizem muitos, então se é isso que é, algo de muito misterioso e improvável e enigmático, talvez só compreensível aos místicos e aos que tais, aconteceu. Beatriz parou em frente a Alfredo, olhou nos olhos de Alfredo e sorriu.

“E num sofrer de gozo entre palavras”‏

Quando me perguntam se é interessante consumir a literatura erótica, respondo que não vejo problema nenhum. Desde que se leia, parafraseando Oswald de Andrade, com olhos livres. A cultura para ser bem digerida, aliás, costuma dispensar todas as formas de preconceito e moralismo. Sem falar, é óbvio, de qualquer pretexto que nos remeta à censura e ao patrulhamento artístico. Depois de certa idade, parece até brincadeira ou provocação uma instituição ou alguém determinar o que devemos ler ou não. Como pássaros, queremos voar longe, descobrindo novos horizontes e possibilidades infinitas. A maldade, como se sabe, existe somente na cabeça das pessoas, principalmente daquelas que abdicam do livre arbítrio e não acreditam na felicidade. Para quem ler bula de remédio, nada mais excitante do que correr os olhos por umas histórias mais envolventes e sedutoras. A maçã, desde sempre, despertou em nós um grande e saudável apetite.

casa-dos-budas-ditosos-joao-ubaldoDos textos lidos, merece destaque o estupendo A Casa dos Budas Ditosos, do escritor João Ubaldo Ribeiro, relato sincero e provocante da vida sexual de uma mulher de 68 anos, que, dentre outras experiências vividas, confessa ter tido como melhor amante o próprio irmão, a quem amou secreta e desesperadamente. “O único que soube ser tudo”, segundo ela, “macho, puto, fêmea, descarado, sádico, masoquista, mentiroso, verdadeiro, lindo, feio, disposto, preguiçoso, lindo, lindo, lindo, lindo, meu irmão Rodolfo”. Adaptado para o teatro em forma de monólogo, a peça ainda hoje é encenada no país. O público que assiste ao espetáculo vai ao delírio com as estripulias da senhora devassa, interpretada nos palcos pela talentosa atriz Fernanda Torres. João Ubaldo conseguiu nessa obra, com a mesma verve de Gregório de Matos e Jorge Amado, outros dois autores baianos que abordaram também o erotismo, falar de sexo sem tabu nem preconceito. E o melhor, com bastante humor. Texto simplesmente imperdível. Quanto ao monólogo, tomara que chegue por aqui um dia.

Outro livro muito interessante, que tem arrebatado não só leitores italianos como do mundo afora, é Cem Escovadas Antes de Ir para a Cama, da jovem siciliana Melissa Panarello. Cem escovadas antes de ir para a camaNa obra, escrita em forma de diário, ela relata as suas precoces e surpreendentes experiências no campo sexual, quando era apenas uma pura adolescente entre 15 e 16 anos. Em sua busca desenfreada pelo verdadeiro amor, Melissa se doa integralmente aos homens em práticas nada convencionais, transitando do sexo em grupo ao sadomasoquismo. Daí sempre em casa, ao retornar dessas prazerosas e frustradas aventuras, escovar sucessivamente os belos cabelos antes de dormir, num sofrido ritual de purificação. A tão almejada cara metade surgiu quando menos ela esperava, através de um simples e comovido olhar: “Estou chorando, diário, chorando de tanta alegria. Eu sempre soube que a alegria e a felicidade existiam. Algo que busquei em tantas camas, em tantos homens, até numa mulher, que procurei em mim mesma e depois perdi por minha própria culpa. E no lugar mais anônimo e mais banal eu encontrei. E não em uma pessoa, mas no olhar de uma pessoa”. Adaptado recentemente para o cinema, a película ficou aquém do texto literário.

Mas foi uma respeitada crítica de arte francesa, Catherine Millet, que publicou uma das obras mais polêmicas nesse gênero, ao tornar público os detalhes de sua movimentada vida sexual, marcada pela quantidade inacreditável de relações físicas com homens e, eventualmente, mulheres. Nesse relato, apresentado com inédita crueza e sem qualquer máscara, ela expõe o sexo desvinculado de laços afetivos, como plena realização de uma necessidade instintiva da carne, ao escrever: “Contentava-me em descobrir que este desfalecimento voluptuoso, experimentado no contato com a inefável doçura de todos os lábios estranhos ou quando uma mão se colava em meu púbis, podia se renovar infinitamente, pois confirmava que o mundo estava cheio de homens dispostos a isto. catherine-mO resto me era indiferente”.  Livro extraordinário e bem escrito esse, A Vida Sexual de Catherine M., no qual uma intelectual não tem pudor de se assumir como libertina, encarando o amor físico com a mesma naturalidade com que respira.

Destacaria ainda, na impossibilidade de mencionar todos, mais outros dois: O Doce Veneno do Escorpião, o best-seller de Bruna Sufistinha, e Amor Natural, do nosso consagrado Carlos Drummond de Andrade. No primeiro, temos as confidências de uma garota de programa de classe média que, ao deixar o conforto do lar, acaba caindo na “vida”, praticando sexo em troca de dinheiro e droga. Obra que revela o submundo da prostituição nas grandes cidades e que, nas lacradas páginas pretas, desvenda as taras do homem brasileiro. O título poético é um irrecusável convite à leitura. Quanto ao segundo, livro que o poeta itabirano só permitiu fosse lançado após a morte, receio de ser taxado de velho sátiro ou pornógrafo, encontramos belos poemas eróticos que, em linguagem desnuda, abordam o sexo como manifestação sublime do amor, expressa logo no texto que inicia a obra: “Amor – pois que é palavra essencial / comece esta canção e toda a envolva. / Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, / reúna alma e desejo, membro e vulva”.  O doce veneno do escorpião

O Retorno (uma história de outros tempos)

 

“Por favor, não desligue”, suplica a voz do outro lado da linha. Uma voz de mulher, remotamente conhecida. Ao apelo, segue-se a identificação, Vânia de Albuquerque, e frases entrecortadas pelo choro, pedidos de perdão em formas diversas. Há 30 anos que Telma não ouvia aquela voz. Chora também. Sim, perdoa. Doeu, mas faz tanto tempo! Esqueceu. Não, não tem mágoa e poderão encontrar-se daí a pouco. Desliga. Tremem-lhe as mãos. Como num filme, vêm-lhe imagens nítidas de um passado longínquo:

Um pequeno talho no indicador e os dedos se juntam. Pronto, está feito o pacto de sangue. Serão amigas para sempre.

Eram da mesma idade, embora Telma parecesse mais velha, pois, aos 10 anos, já tinha uma desenvoltura que lhe fazia passar por uma adolescente.

Aos 15 anos, cursavam juntas o Normal. A saída do colégio era sempre uma festa. Os garotos passeavam de bicicleta na calçada, esperando as meninas. Vânia e Telma também tinham bicicletas, mas seus namorados nunca estavam na calçada, à vista das freiras que espionavam do 2º andar. Luis e Fernando as esperavam a algumas quadras do colégio. Vânia namorava Fernando, que tinha namorado Telma. Gostavam de trocar entre si os namorados. Ciúmes, só tinham uma da outra.

Vânia tentou convencer Telma a fazer Pedagogia, mas Telma estava decidida a ser atriz. Choraram abraçadas e depois riram muito. Não havia motivo para tanto drama. Iam separar apenas as escolas e as salas de aula.

Mal entrou para a Curso de Teatro, Telma já estava nos palcos. Tinha talento e sorte. Um diretor de cinema do Rio, que filmava na região, convidou-a para um pequeno papel. Os jornais estamparam sua foto beijando um astro nacional. Glória, que logo se torna escândalo na sociedade local, ainda provinciana. Os pais de Vânia, de tradicional família de fazendeiros, pressionam a filha para que se afaste de Telma. Vânia reage: jamais deixará a amiga, com quem fez um pacto de sangue. Mas logo entrará em cena o tenente Virgílio Andrade para mudar o rumo da história.

Telma volta correndo de um Festival de Teatro no Sul para assistir ao casamento de Vânia e Virgílio. Mas recebe um telefonema lacônico da amiga, pedindo-lhe que não vá ao casamento e que nunca mais a procure…

Segue-se a vida. Telma casa-se com um músico do Rio e começa a fazer carreira nos palcos cariocas. Vânia cria filhos, enquanto Virgílio se diverte nos bordéis da cidade. Nas longas noites de insonia, Vânia procura em jornais e revistas da metrópole notícias da amiga. Recorta todas, mesmo as mais tolas.

A vida de Vânia é agora um inferno. Virgílio tornou-se violento, espanca-a frequentemente. Ela quer a separação, mas o marido ameaça matá-la. Numa das surras, porém, ele quase a mata. Ela deduz que será melhor morrer em liberdade e foge de casa com os filhos. Seus pais contratam um segurança para defendê-la do marido enfurecido. Neste exato momento, Telma de Aquino

chega à terra natal, liderando o elenco de um espetáculo em tournée pelas capitais do Nordeste.

E aqui retomamos o início desta estória, quando a atriz recebe o telefonema da amiga. Suas lembranças são interrompidas pela chegada de um grupo de jornalistas e câmeras de TV.

Enquanto isso, Virgílio sequestra Vânia. Ela se joga do carro em movimento e morre. Virgílio foge.

Quando está de saída para ir ao encontro da amiga, Telma recebe a notícia de que Vânia está morta.

Saudade pra presente

Quando eu era criança, o mês mais esperado do ano era dezembro – e não era por causa dos presentes de natal ou da comilança. Era porque meu avô me levava numa livraria pra comprar o material escolar do ano seguinte e, como bicho solto, eu escolhia tudo de mais lindo e da moda, do jeitinho que eu queria. Canetas com bolha de sabão. Caderno com cheiro de chocolate. Corretivo multicolorido. E um monte de coisa que, na prática, não surtiam nenhum efeito nos estudos. Mas faziam eu me sentir no colégio.

Cresci uma adulta obsessiva por papelarias. Algumas pessoas ficariam felizes em bares, shoppings, churrascarias, galerias, teatro ou supermercado. Mas eu fico muito bem, obrigada, cercada por bloquinhos, envelopes, grampeadores, clipes coloridos, canetas e tubos de corretivo. O certo é que em duas décadas e meia de existência, finalmente, eu descobri como canalizar isso para o bem.

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Ano passado, através das cartinhas de Natal dos Correios, conheci Pâmela e Dayron. Ambos estudam e moram na periferia de Teresina, e, ao invés de bola ou boneca, pediram ao Papai Noel seus kits escolares para o próximo ano. A Pâmela foi meio modinha: queria tudo da Monster High, essas bonecas espantosas que invadiram a tv, as mochilas e os cadernos. Já o Dayron, mais tradicional, queria tudo da Hot Wheels. A lápis, o menino de 11 anos escreveu: “minha mãe e meu pai não tem condição de compra poriso eu estou tipidino”.

Montar os kits de Pâmela e Dayron foi um dos meus maiores prazeres daquele ano. Escolhi tudo como para mim mesmo: as melhores canetas, o caderno mais bonito, o estojo temático, e atentei até para os detalhes de borrachas e lapiseira. Em outros tempos eu levaria tudo pra casa, na minha compulsão por esses trecos, entocaria em uma gaveta e provavelmente nunca usaria. Dessa vez eu embrulhei tudo e deixei nos Correios.

Esse é o primeiro Natal sem o meu avô. Não pensem vocês que não dói – a lembrança dele está em cada momento, em todo detalhe, naqueles frames que povoam meu pensamento antes de dormir. Mas nesse tempo de ausência eu entendi que uma forma de preservar a memória de uma pessoa, é perpetuar as coisas boas que ela fazia.

Seja onde você estiver, vô, estará no sorriso de Pâmela e Dayron na manhã do 25.

Sinto sua falta. Feliz Natal.