Wellington Soares
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Inspiração

Toda vez que vou a Sampa os versos de Inspiração, do poeta Mário de Andrade, saltam da memória e gritam felizes: “São Paulo! Comoção de minha vida…”. Talvez por despertar em mim emoções incontroláveis, de puro prazer. Quem sabe fascínio pela agitação frenética da cidade, metrópole acolhedora de todos os povos do mundo.  Ou ainda, provavelmente, suas vastas opções de atividades culturais, a saciar nossa gulodice estética. Foi o que experimentei lá, tudo isso e algo mais, ao participar da 13ª Balada Literária, entre os dias 20 e 25 de novembro último. Homenageados do evento? Nada menos, assunte bem, que dois artistas excepcionais: Itamar Assunção e Alice Ruiz, melodia e letra em contornos geniais mudando a cara da MPB – “Os meus amores são flores feitas de original…”, como diria o autor de Macunaíma e Pauliceia Desvairada.

Comoção foi encontrar também figuras que, literariamente, inspiram nossa vida de eterno aprendiz de escritor. Fernando Bonassi e Marçal Aquino são duas boas referências dessa instigante viagem com e através das palavras. O primeiro, pela leitura de Passaporte, relatos de viagem com pitadas de humor e olhar devastador; sem falar dos roteiros pro cinema, tais como Os matadores e Carandiru. O segundo, pela envolvente história de amor entre Cauby e Lavínia, em Eu receberias as piores notícias dos seus lindos lábios, romance bem urdido e com toque poético. Quanto ao jornalista Xico Sá, que mediou conversa na Balada, recebi dele presentes maravilhosos: Sertão Japão, livrinho de haikais, ligando o Nordeste brasileiro ao país oriental; e a garantia de sua vinda a Teresina, convite aceito e juramentado, pro Salipi do próximo ano. No Instituto Brincante, bairro Vila Madalena, nada melhor que conhecer e ouvir texto de Sérgio Vaz, poeta dos que mais admiro atualmente: “Enquanto eles capitalizam a realidade, eu socializo sonhos.”

Blubell: Confissões de Camarim.

Quase dando um troço, de tão comovido, levitei com a linda exposição Millôr: Obra Gráfica, no Instituto Moreira Sales, reunião de peças originais que mapeiam, ao longo de 70 anos, os temas mais abordados pelo genial artista carioca – Millôr Viola Fernandes (desenhista, dramaturgo, humorista, escritor, poeta, tradutor e jornalista). No Centro Cultural B_arco, em Pinheiros, fui tomado de paixão pelo talento musical de Blubell, nome artístico de Isabel Fontana Garcia, cantora paulistana que seduz pela empatia no palco e autoria de letras criativas. Na noite da diversidade, dentro da Balada Literária, ela simplesmente arrasou ao homenagear Ângela Maria, cantando alguns de seus inesquecíveis sucessos. Com direito a autógrafo de Blubell, adquiri Confissões de Camarim, de pegada jazzística, que escuto extasiado sem parar.

Emerson Boy e Banda Van Grog: fazendo bonito na antiga terra da garoa.

Como ir a São Paulo, comoção de minha vida, e não assistir ao O Fantasma da Ópera? Em cartaz no Teatro Renault, o musical que completou 30 anos em 2018, inspirado no romance homônimo de Gaston Leroux, sucesso estrondoso da Broadway até hoje, emociona em sua versão brasileira. História centrada num triângulo amoroso – envolvendo uma misteriosa figura mascarada (Erik), a jovem soprano Christine e o aristocrata Raoul –, com enredo e desfecho surpreendentes. Na Paulista, avenida livre aos domingos, curti o blue maneiro de Peter Hassle & Screw’d, banda da melhor qualidade. Mas comoção mesmo, bofetada lírica no Bambu Brasil, barzinho na Vila Madalena, foram os shows protagonizados por Soraya Castelo Branco, acompanhada de Josué Costa, e Emerson Boy e a Banda Van Grog, músicos piauienses fazendo bonito na antiga terra da garoa – “Galicismo a berrar nos desertos da América!”.

O que aprendi com Duda Beat

Não é bitch de piranha, nem é beach de praia.

Duda Beat é meu crush pesadíssimo já tem um tempo e eu precisava escrever sobre ela <3

A primeira música que ouvi, como a maioria dos fãs, foi “Bixinho” – e foi só a porta de entrada para drogas mais pesadas como “Back to bad“, “Bédi beat” e “Todo carinho“. Eu fiquei completamente arrebata pelo som dessa pernambucana de sotaque sexy e que dizia tanta coisa que eu precisava ouvir.

Sinto muito” é o primeiro álbum dela, que já surge nessa onda do do it yourself e do streaming – mesmo assim, a era do consumo segmentado e totalmente sob demanda não tirou a maravilhosidade do que é fazer um disco – “Sinto muito” é uma narrativa, com começo, meio e fim, que faz sentido escutado em fragmentos mas fica muito mais bonito se seguindo a sua lógica.

 

Naturalmente a gente é levado a pensar nas inspirações – que doído ter vivido tudo isso e transformado em música. Apesar disso eu não curto a mania da imprensa de pôr rótulos: “novo indie da sofrência”. Ok que tem mais de uma entrevista da Duda confessando ter feito “Sinto muito” para três ex-boys que passaram pela sua vida – mas colocar tudo o que ela é nesse neologismo me soa reducionista, principalmente no sentido que temos dado a esse termo, o de sofrer por algo ou alguém. “Sinto muito” é um pedido de desculpa de Duda para alguém super importante que passou por sua vida: ela mesma.

Começa com a tomada de consciência dançante, pra cima: “eu vivia a flor da pele e nem percebia”; passa pelo desapego (o hit “bixinho”) e na insistência por se reconectar com o passado (“foi lá que a gente se conheceu”), até a lição ressentida (“eu aprendi a ser egoísta com você”, na faixa que contém o verso que dá nome ao disco) que muitas vezes é nada mais do que a compreensão daquilo que, bem lá no fundo, a gente já sabia mas nunca percebeu. A penúltima música, “Bolo de rolo” – isso mesmo, o rocambole de goiaba do Pernambuco é a cereja do bolo, tão gostosa e acolhedora como receita de mãe: “Eu não vou buscar a felicidade em mais ninguém”. Aqui em casa esse mantra foi pra minha placa de padoca, pro caderno, pros post it na parede e se for preciso vamos tatuar na testa também.

A reflexão mais bonita de todas, para mim, vem na canção que fecha o álbum: “Todo carinho”. “Eu sou de um outro tempo, amor que é pra sempre”. Bicha, eu te entendo demais. Essa música é a cara da ressaca pós-festa, aquela que você acorda tendo flashes da noite increveland e louca e é acometido por toda a solidão do mundo. Perdido na imensidão de um quarto escuro você se pergunta de que serviu tanta euforia, tanto amor infinito com hora certa para acabar e desencana de encontrar alguém que um dia corresponda a seus sentimentos, porque, afinal, “todo carinho do mundo para mim é pouco” – a linha entre a autovalorização e a extrema exigência é muito tênue e a bad bate louca, segura forte a tua mão.

Depois de me abraçar com cada uma das canções de Duda lentamente, eu passei a seguir seus passos no Instagram, em busca das datas de shows – do próximo ano não passa ver essa mulher no palco, já botei como meta pra 2019. Ai eis que a bonita, além de bonita, é cientista política e postou váaaarios #elenão na época das eleições (fez até paródia e tudo). “Meu assessor falou que não era muito inteligente eu me posicionar, mas eu pensei: será se eu quero mesmo esse público que curte uma extrema direita?”. Eu amo uma mulher sem amarras.

 

A Duda é linda, me ensinou um novo jeito de cantar e de sentir, e mais que isso, tem me ensinado muito sobre autoconfiança, amor próprio e superação. “Eu já esperava esse sucesso sim, porque eu trabalhei muito em cada detalhe”, diz na maior franqueza do mundo e eu do outro lado da tela tenho vontade de abraça-la porque se tem uma coisa que abominamos juntas é a falsa modéstia. Vejo bastante verdade em seu posicionamento político, artístico e feminino, como sujeito que sabe que é inútil achar possível se desligar desses papeis.

Duda passou sete anos tentando cursar medicina, queria ser anestesista para curar as pessoas sem que elas sentissem dor. É curioso porque ela conseguiu atingir o objetivo, só mudou os instrumentos – trocou as seringas pelos beats e acertou a batida que vai certeira no meu coração.

Para de vacilar e vai ouvir essa mulher, pra ontem!

No spotify
No youtube
No deezer

P.s: eu esqueci de comentar que esse “Sinto muito” tá entre os 25 melhores discos brasileiros do segundo semestre de 2018, segundo a APCA, que Duda vai tá no Lolla do próximo ano e que o produtor do disco é namorado dela (essa história é fofa e é totalmente a parte, rysos).

 

 

O desafio de escrever sobre qualquer coisa

Jeany da Conceição de Maria Rodrigues

Ao ser desafiada a escrever algo para a revista indaguei sobre o que escrever e tive como resposta que estaria livre para escrever sobre “qualquer coisa”, temas que fossem para mim relevantes.
Refletindo um pouco mais sobre o que seria qualquer coisa, percebi que qualquer coisa é muita coisa. Será que posso mesmo falar sobre qualquer coisa? Em caso afirmativo, ate quando terei esse direito respeitado?
Quando um dia pensei em me graduar em História, nunca imaginei que chegaria o momento que faria parte efetiva do processo histórico, tal qual li nos livros e assisti nos filmes. O que vinha na mente é que aqueles assuntos já estariam todos bem resolvidos. A História se encarregou de passar tudo a limpo.
No entanto, o que sinto no presente é um profundo receio de não poder mais falar sobre qualquer coisa. Ter a voz silenciada que nem muitos tiveram ao longo dos séculos. Ao mesmo tempo sei que tantos outros nunca tiveram a oportunidade de mostrar sua verdade.
Como historiadora é muito desesperador ser convidada a silenciar. O ofício do historiador se baseia em dar voz aqueles que nunca tiveram vez. Resgatar aquilo que ficou escondido, que foi impedido de se manifestar.
A quem interessa não podermos falar sobre qualquer coisa? E por que falar sobre qualquer coisa é assim tão grave? Do que devemos nos esconder? Quem determina o que é qualquer coisa?
Em qual esquina da História nos perdemos a ponto de não podermos ser quem somos? Quem se apropriou do discurso e impediu que a minoria que é maioria, dele não fizesse parte? São muitos questionamentos. Para alguns há respostas, para outros há apenas mais dúvidas.
O fato é que no dia de hoje muitas coisas parecem fazer total sentido. Para que a História possa seguir seu curso é necessário que aprendamos com ela que determinados fatos precisam ser escancarados, enfrentados, desnudados, dissecados a ponto de não restar mais nada incompreendido.
Não precisaríamos passar por esse momento se conhecêssemos e aceitássemos nosso passado de forma a reparar alguns erros, mas uma vez que ele se descortina à nossa frente é importante entender que muitos dos direitos conquistados, não estão de fato garantidos, é preciso estar vigilantes a ponto de não permitir que a História nos torne a cobrar por um passado mal resolvido.
Só quando um direito, que normalmente, não foi por nós conquistado se encontra ameaçado, é que nos damos conta que qualquer coisa é sim, muita coisa.

 

Paixão pelo mar

 

Estivemos na bela cidade de Parnaíba num desses finais de semana. O passeio não poderia ter sido melhor. Ainda mais acompanhado de duas pessoas queridíssimas: Ceiça, irmã mais velha, e dona Raimunda, nossa mãe, que fez 94 anos neste mês de setembro. De certa maneira, foi nosso presente de aniversário à matriarca, cumprindo uma antiga promessa de levá-la outra vez ao litoral. Nada comparável a um banho de mar. Parece que todo aquele mundão de água salgada e azul, sem falar da brisa que acaricia o corpo, lava de vez as impurezas da gente. Ali, nas praias de Luís Correia, não vi ninguém triste nem deprimido. Ao contrário, imperava nas pessoas, sobretudo em dona Raimunda, apenas o sentimento de alegria. De todas, sem dúvida, as crianças eram as mais felizes, dado a estreita relação que mantêm com o mar, abraço afetuoso trocado entre velhos amigos.

Durante três inesquecíveis dias, pudemos matar saudade dos encantos do nosso litoral, a começar pelo Coqueiro, praia belíssima e onde comemos peixes deliciosos no Restaurante Dona Maria, tendo como sobremesa cocadas daquelas de nos tirar o fôlego, de tão gostosas. Em Macapá, o prazer foi deitar numa rede e descansar a vista diante de tanta beleza, reafirmando em nós a convicção de que Deus não só é piauiense como tem moradia naquelas praias. À tardinha, de volta ao Hotel Cívico, demos um pulo na sorveteria Araújo a fim de provar de uma variedade incrível de sabores: cajá, bacuri, castanha, morango, açaí, tapioca e coco, cada um mais apetitoso que o outro. Sendo o de abacate, de longe, o meu preferido. Programa sem o qual, costumo dizer, a viagem fica incompleta.

Misto de prazer e conhecimento foi nossa viagem ao Delta do Parnaíba, desde o nome do barco (MANDU LADINO) até o didatismo do guia turístico, explicando tudo nos mínimos detalhes. Passando pelas Ilhas Canárias, onde na volta almoçamos, ele falou dos “homens-peixes” ou “pé-de-pato”, como ficaram conhecidos os índios Tremembés. Nos manguezais, além de informados da retirada diária de 2.500 cordas de caranguejos, exportadas para Fortaleza, fomos apresentados a um deles pelo barqueiro,  que recebeu merecidos aplausos. Aquele cenário paradisíaco despertou em mim, mesmo não sendo cineasta, uma vontade enorme de produzir um filme de aventura nos moldes de 007, com muitas perseguições arriscadas e mulheres bonitas.

Em Atalaia, praia onde começavam e terminavam nossos dias, o barato era entrar no mar e banhar até se fartar, de tão mansas e convidativas suas águas. Depois, uma boa caminhada pela areia, exercitando o corpo e respirando o ar puríssimo da brisa. Dona Raimunda parecia uma criança de tão feliz, banhando sem parar e esquecida do horário de almoço, que fizemos na Barraca Carlitus, saboreando uma deliciosa peixada amarela. Relembrando os bons momentos de 2016, mamãe foi logo nos avisando antecipadamente que diante do calor de Teresina, cada dia mais insuportável, quer passar o Réveillon deste ano em Luís Correia. Fora esse argumento, o que pesa mesmo, não tenho dúvida, é a sua grande paixão pelo mar: “Quero ser feliz/ Nas ondas do mar/ Quero esquecer tudo/ Quero descansar”, como diria o inesquecível Manuel Bandeira. Cumpramos sua vontade, então.

Conto é faísca

 

Dentre as facetas do gênero narrativo, que são muitas e variadas, tenho uma predileção pelo conto. Texto centrado na linguagem e, só depois, no enredo, sob o risco de descambar para o simples causo. De preferência, com apenas um núcleo temático e poucos personagens vivenciando a trama. História que termina mal começa, cujo objetivo nunca é amarrar as coisas direitinho, de ponta a ponta, mas deixar em aberto a fim de proporcionar ao leitor a indescritível viagem pelas entrelinhas. Embora assuma tamanhos distintos, prefiro os curtinhos, dentro da filosofia do Velho Graça: “escrever é a arte de podar”. Abaixo seguem, para deleite do leitor, contos extraídos de Linguagem dos sentidos, meu livro de estreia lançado em 1991.

 

CERCA DE COBIÇA

Ele gostava muito de se gabar pelo fato de ser o maior proprietário de terras da região. Eram tantas afinal, que a vista perdia-se na amplidão dos hectares, sendo necessário o auxílio de avião para percorrer tudo aquilo. Bastava ouvir falar que havia camponês apertado, tratava de mandar alguém levar-lhe uma navalha. Outras vezes, apoderava-se das terras devolutas do Estado, sob o silêncio cúmplice das autoridades. Tão logo fechava o negócio, cercava tudo de arame farpado, cobiça e mesquinhez. Quando morreu, precisou apenas de alguns palmos de chão. Nada mais.

 

QUINZE ANOS SOBRE A MESA

Para ele, a presença de uma pessoa tão importante, como o senhor Manfredi, em sua casa, era motivo de orgulho e grande satisfação. Afinal, tratava-se de um empresário bem sucedido na cidade e, é claro, um ótimo partido para qualquer família. Querendo agradar o ilustre visitante, serviu-lhe uma dose de bom uísque escocês. Depois, mandou pôr o jantar, preparado especialmente para a ocasião. E, por último, ofereceu a filha de quinze anos como sobremesa.

 

CICATRIZES DA BELEZA

Tenho uma filha com cicatrizes horríveis no rosto. A navalha cortou fundo sua tez morena. Ela explicou que fez isso porque os homens só viam nela apenas a beleza física, ignorando sua beleza interior, mais importante segundo sua opinião. Mas agora, quando homem nenhum lhe dirige sequer um olhar, ela fica triste, num choro extremamente penoso. Eu, como pai, estou com as mãos completamente atadas, pois não sei como proceder para acalmar o sofrimento de minha filha. Afinal, o que se faz quando se tem uma filha com extraordinária beleza interior e nenhum homem é capaz de perceber isso?

 

TESÃO NA GELADEIRA

Ao chegar em casa, depois de um dia de cão, não encontrou, como de costume, a mesa posta, o banho morno, as sandálias no lugar e o “oi” correspondido. Apenas um bilhete seco, sobre a cama, vazado em tom de amargura e adeus. “Epitácio, parto como cheguei, com a roupa do corpo. Você não queria uma mulher, e sim uma xoxota, que te deixo embrulhada na geladeira”.

 

GESTO INÚTIL

O homem passou a vida inteira tentando convencer as pessoas da grandeza de seus gestos e da altivez de seu espírito. Como demorava a conseguir isso, foi tornando-se calado e de expressão triste. No final, frustradas todas as tentativas, recorreu ao suicídio, como último recado aos amigos e desafetos. O gesto tresloucado, porém, não foi capaz de sensibilizar ninguém, deixando apenas dúvidas e perplexidades em todos. Mas agora é tarde, o homem já não pode tentar nada mais convincente.

 

MÚTUO SILÊNCIO

Um relacionamento marcado pelo silêncio, mesmo quando saíam para passear ou quando recebiam visitas em casa. Não aquele silêncio enunciador de coisas e de sentimentos, mas que causa mal-estar e constrangimento, como se todas as palavras já tivessem sido ditas. Resolveram, em comum acordo, trocar a comodidade do lar pelos sobressaltos do inesperado.