Dentre as facetas do gênero narrativo, que são muitas e variadas, tenho uma predileção pelo conto. Texto centrado na linguagem e, só depois, no enredo, sob o risco de descambar para o simples causo. De preferência, com apenas um núcleo temático e poucos personagens vivenciando a trama. História que termina mal começa, cujo objetivo nunca é amarrar as coisas direitinho, de ponta a ponta, mas deixar em aberto a fim de proporcionar ao leitor a indescritível viagem pelas entrelinhas. Embora assuma tamanhos distintos, prefiro os curtinhos, dentro da filosofia do Velho Graça: “escrever é a arte de podar”. Abaixo seguem, para deleite do leitor, contos extraídos de Linguagem dos sentidos, meu livro de estreia lançado em 1991.

 

CERCA DE COBIÇA

Ele gostava muito de se gabar pelo fato de ser o maior proprietário de terras da região. Eram tantas afinal, que a vista perdia-se na amplidão dos hectares, sendo necessário o auxílio de avião para percorrer tudo aquilo. Bastava ouvir falar que havia camponês apertado, tratava de mandar alguém levar-lhe uma navalha. Outras vezes, apoderava-se das terras devolutas do Estado, sob o silêncio cúmplice das autoridades. Tão logo fechava o negócio, cercava tudo de arame farpado, cobiça e mesquinhez. Quando morreu, precisou apenas de alguns palmos de chão. Nada mais.

 

QUINZE ANOS SOBRE A MESA

Para ele, a presença de uma pessoa tão importante, como o senhor Manfredi, em sua casa, era motivo de orgulho e grande satisfação. Afinal, tratava-se de um empresário bem sucedido na cidade e, é claro, um ótimo partido para qualquer família. Querendo agradar o ilustre visitante, serviu-lhe uma dose de bom uísque escocês. Depois, mandou pôr o jantar, preparado especialmente para a ocasião. E, por último, ofereceu a filha de quinze anos como sobremesa.

 

CICATRIZES DA BELEZA

Tenho uma filha com cicatrizes horríveis no rosto. A navalha cortou fundo sua tez morena. Ela explicou que fez isso porque os homens só viam nela apenas a beleza física, ignorando sua beleza interior, mais importante segundo sua opinião. Mas agora, quando homem nenhum lhe dirige sequer um olhar, ela fica triste, num choro extremamente penoso. Eu, como pai, estou com as mãos completamente atadas, pois não sei como proceder para acalmar o sofrimento de minha filha. Afinal, o que se faz quando se tem uma filha com extraordinária beleza interior e nenhum homem é capaz de perceber isso?

 

TESÃO NA GELADEIRA

Ao chegar em casa, depois de um dia de cão, não encontrou, como de costume, a mesa posta, o banho morno, as sandálias no lugar e o “oi” correspondido. Apenas um bilhete seco, sobre a cama, vazado em tom de amargura e adeus. “Epitácio, parto como cheguei, com a roupa do corpo. Você não queria uma mulher, e sim uma xoxota, que te deixo embrulhada na geladeira”.

 

GESTO INÚTIL

O homem passou a vida inteira tentando convencer as pessoas da grandeza de seus gestos e da altivez de seu espírito. Como demorava a conseguir isso, foi tornando-se calado e de expressão triste. No final, frustradas todas as tentativas, recorreu ao suicídio, como último recado aos amigos e desafetos. O gesto tresloucado, porém, não foi capaz de sensibilizar ninguém, deixando apenas dúvidas e perplexidades em todos. Mas agora é tarde, o homem já não pode tentar nada mais convincente.

 

MÚTUO SILÊNCIO

Um relacionamento marcado pelo silêncio, mesmo quando saíam para passear ou quando recebiam visitas em casa. Não aquele silêncio enunciador de coisas e de sentimentos, mas que causa mal-estar e constrangimento, como se todas as palavras já tivessem sido ditas. Resolveram, em comum acordo, trocar a comodidade do lar pelos sobressaltos do inesperado.