Trabalhos no Subsolo
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Marcia Tiburi: as metamorfoses de Helena num ser-apetrecho-mulher-político-que-vem

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Aprendi a viver no exato

momento em que eles morriam.”

Dacia Maraini

Há uma perspectiva rara, raríssima, entre os livros de ficção e de poemas que brotam sem parar no Brasil, quase todos muito frágeis, muito ruins, sem risco, abobalhados: a de uma esferologia mais densa entre o que é escrever e quando escrever é um pensamento com a política para tocar, com força, a causa do outro. Algo que, como o vazio e o nada que é, a literatura e suas impotências, possa expandir-se para além do egoísmo e da cegueira que rege o mundo com sua aparelhagem burocrática fascista para o ordenamento jurídico dos Estados-nação: a fronteira, o território, o direito, o cidadão, o povo, a soberania, o sagrado como um voto à morte, a vida que pertence a Deus [zoé], a vida política [bios], o asilo, o exílio, a crise da indistinção entre citizen e denizen, o refúgio do indivíduo singular que cada ser propriamente é etc.

Marcia Tiburi | Foto: divulgação

Mas quando essa perspectiva se abre, como saliência, salto e começo, junto se esgueira a alegria da leitura. Jorge Luís Borges anotava: ler é uma questão de escala. Não há passe de mágica, sobra a miniatura do mundo e suas pequenas coisas. E se escrever é, muito mais, “botar a boca no mundo”, como sugeria Torquato Neto, é também fazer do corpo um alvo fácil porque não se abre mão de dizer tudo, de aborrecer, de enfadar, de enfastiar, de fazer de cada palavra um perigo, quando a literatura ainda sonha, ainda é capaz de sonhar, ainda é capaz de mover-se à beira de abismos. Nessa brecha para o impossível, o novo livro de Marcia Tiburi – filósofa, feminista, ativista de causas impertinentes ao mundo masculino branco estruturado e violento, escritora, artista visual, Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve [Editora Nós, 2023] é uma espécie de elemento abiótico nesse descompassado “mapa” [este regime de controle e poder] da atual literatura brasileira tão estereotipada em seus modelos circulares de rodopio das mesmices

Há algo encantado no livro de Marcia que é o entendimento visceral do quanto recuperar e recompor uma história das mulheres é, no mínimo, devolvê-las ao abrigo de pertencer à terra. E aí, não apenas como herança, mas principalmente como legado. Helena, a personagem que dá nome ao livro, mas que está longe de ser uma protagonista, porque se amalgama a todas as outras, como Chloé ou Catarina, Gertrude ou Alice, Valéria ou Olívia, Bárbara ou a outra Helena, todas impostas ao mundo em meio ao jogo do quanto “a vida é uma alucinação”, “um inventário da violência comum que sofrem meninas e mulheres por todos os lados porque o mundo é dos homens”, “o medo faz parte da vida de todas as mulheres”, “porcos são melhores que homens”, “há um universo paralelo no qual as pessoas acreditam em Deus acima de tudo” e, no talo do impensado e com força na figura quase jagunçal de Helena, nem Riobaldo nem Reinaldo Diadorim, nem amazona nem destemida, nem neutra nem quixotesca, nem calcanhar de Aquiles nem Hamlet, nem Manon Lescault nem Emma Bovary, nem Oblómov nem Erica nem Adolfo nem Ahab, nem o anjo Malaquias de Mário Quintana nem o anjo galináceo de Paul Klee tão caro a Walter Benjamin, “é o corpo do ódio que ela aprenderá a reconhecer ao longo da vida”. A Helena de Marcia Tiburi, longe de ser também a grega feliz, é um contágio de todas essas personagens e, ao mesmo tempo, um apagamento de todas elas, porque habita a dimensão microscópica da dor em sua existência sub-divina e supra-humana. Nem deus nem o diabo, nem mistério nem milagre, nem infinito nem nome etc.

Se escrever é “botar a boca no mundo”, como sugeria Torquato Neto, é também fazer do corpo um alvo fácil porque não se abre mão de dizer tudo, de aborrecer, de enfadar, de enfastiar, de fazer de cada palavra um perigo.

O livro se desenha num vai e vem das temporalidades com o espaço, este é o ponto de insurgência desse texto tão vertiginoso e inventivo. Marcia é uma escritora de habilidade incomum com o espaço, não apenas o da literatura, mas também com a anulação do mapa a partir do ritmo e do empenho das frases, do enredo mirabolante, uma espécie de cinema impuro que, no percurso da narrativa, desfaz as linhas da viagem contornando os corpos dessas mulheres em busca de uma vida comum e a rama de homens mortos deixados pelo caminho: Helena mata. Entre o interior do sul do Brasil e o deslocamento pela estrada até Recife, em Pernambuco, atravessando o Rio de Janeiro, a serra das Araras, o Espírito Santo, a Bahia e o embarque de navio até Paris o corpo de Helena é uma modulação do inferno que faz desabar, por completo, o céu prestigioso e privilegiado dos homens. Uma mulher de corpo curvado, magra, quase invisível e aparentemente ciente de que sua solidão só não é penosa porque não está mais presa a uma identidade, mas é uma metamorfose infiltrada nos corpos de várias outras mulheres como se uma estranha transformação que só se torna movente, logo política, por causa de uma dimensão amorosa entre todas elas. Helena está vestida com as armas e as roupas de Joana, a criminosa e camponesa francesa morta pela inquisição, na fogueira, aos 19 anos, em 1431. E calça sapatos ordinários, aniquilados, sapatos que acolhem aquela que se equilibra entre o ser e alguma verdade.

E reparem que bonito, como Marcia é uma escritora impressionante, porque este seu livro nos remete à 3 conferências de Heidegger pronunciadas em 1936 e que,  publicadas anos depois, em 1950, são reorganizadas num texto só: A origem da obra de arte. O filósofo alemão está preocupado com uma ideia do conceito de “origem”, quando uma coisa é o que é e como é, a essência da coisa. E isto, reaberto, nos lança também a ideia de salto, saliência, começo, começar. E todo começar, sabemos, é político. No inabitual, entre o estranho e o espanto, o que Marcia persegue em seu livro de força, as coisas reaparecem e se reconfiguram como um campo livre de movimento, ação e gesto, o informe e a potência, o ente e sua existência como apetrecho. Heidegger vai até uma pintura de Vincent Van Gogh, que pintara sem parar, obsessivamente, uma série de sapatos de camponesas e camponeses. Diz-nos que estes sapatos são, naquelas pinturas, um descolamento e uma suspensão, “que não há nada em que se integrem, a que possam pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. Porém…”

E é neste “porém” que COMEÇA a trajetória e a luta das personagens de Marcia com a vida e contra o mundo masculino e perverso e cretino dos homens, porque, aqui vem o lance de dados que jamais abolirá um lance de dados, Heidegger nos lembra que há algo na escura abertura do interior gasto dos sapatos que nos olha, e aí está e mora [e se demora] o cansaço dos passos dos e das que trabalham. Ali está e aparece o lento caminhar por cada sulco de terra, pelo campo, o vento agreste; é no apetrecho, o par de sapatos, que “está o apelo calado da terra”, “o calado temor pela segurança do pão”, “a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor diante da ameaça da morte”. É o apetrecho que pertence à terra e o ser-apetrecho do apetrecho reside, diz ele, sem dúvida, na sua serventia. E afirma que “a camponesa, por meio desse apetrecho, confia no apelo calado da terra; e graças à solidez do apetrecho, está certa do seu mundo. Mundo e terra estão, para ela e para os que estão com ela, aí: no apetrecho.” A terra, assim, é o que guarda, o que dá guarida ao que salta, ao que se salienta, o que alberga tudo o que se ergue como efeito de outras origens, um recomeçar que é, principalmente, um novo começar.

Há algo encantado no livro de Marcia Tiburi que é o entendimento visceral do quanto recuperar uma história das mulheres é, no mínimo, devolvê-las ao abrigo de pertencer à terra. E não apenas como herança, mas principalmente como legado.

Se Heidegerr se implica ao dizer que, na pintura de Van Gogh, os sapatos camponeses se reconfiguram entre máteria e forma, numa origem mais funda, que esta origem é “um testemunho da essência original do ser-apetrecho”, não seria sem fundamento imaginar que a Helena desenhada por Marcia Tiburi nesse seu livro, em suas metamorfoses e metaformoses, anjo infernal e heteronímia expandida e incorporada de mulheres, é o ser-apetrecho, um ser-apetrecho-mulher-político-que-vem tanto como ferramenta ou instrumento, mas também como munição, utensílio de guerra. Apetrecho é também, numa abertura do étimo, uma disposição, logo um caráter para tocar o que é a verdade e como ela pode acontecer.

A narradora de Marcia, a certa altura, tece a trama e inscreve a impressão severa daquela que dispõe seu corpo como um golpe decisivo: “Talvez ela devesse contar a essas mulheres, cujos olhos não provocam medo, que seu pai matou sua mãe, que ela foi deixada para trás pela polícia, que os policiais a levariam a um orfanato, mas decidiram atacá-la no meio da estrada e espancá-la, dizendo e fazendo coisas incompreensíveis e dolorosas, enchendo o seu corpo de medo e a sua alma de pavor. Ela poderia contar como aprendeu um dia a matar pássaros, preás e porcos, e como acabou por matar os dois policiais que a levaram para longe porque não via como escapar deles. Ela desenha as letras com a mão esquerda como se estivesse reaprendendo a escrever e medita sobre a necessidade de explicar tudo isso quando, no fundo, não há explicação possível.” Nesse livro raro, raríssimo, Marcia Tiburi reverte com invenção e contraste o silêncio das línguas maternas em grito de coragem pela sobrevivência política das mulheres.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

Nina Zur e Casé Lontra Marques: o corte, o medo, a imaginação e o demônio do real

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“Remoto respiro esala in cielo”

Pier Paolo Pasolini

 

            Um dos ensaios mais bonitos e propositivos de Giorgio Agamben é o que encerra o seu volume Profanações: Os seis minutos mais belos da história do cinema. Nele, Agamben retoma a pequena narrativa de Franz Kafka, Sancho Pança, sem indicá-la ou citá-la, quando Pança nos avisa que o Quixote é apenas um demônio de sua imaginação. O ensaio começa com a chegada de Pança a um cinema de uma pequena cidade do interior à procura de Dom Quixote que está sentado num canto, isolado, olhar grudado na tela. Sancho tem má vontade, senta ao lado de uma menina, pode ser Dulcineia, ela lhe oferece um picolé. No filme, cavaleiros armados, uma mulher em perigo, Dom Quixote se ergue, espada em punho, rasga a tela inteira. O corte engole as imagens, o público abandona a sala, as crianças encorajam fanaticamente Dom Quixote, a menina o fixa com reprovação. A pergunta final é: “o que podemos fazer com a imaginação?” Uma pequena conclusão é ou seria: sem imaginação “nada pode nos amar”.

Agamben defende a ideia de Walter Benjamin de que há uma ética da imaginação que nos olha e se dá na escuta, com a escuta, e que essa ética é uma doutrina da felicidade, logo, demoníaca.

Agamben defende a ideia de Walter Benjamin, também leitor de Kafka, de que há uma ética da imaginação que nos olha e se dá na escuta, com a escuta, e que essa ética é uma doutrina da felicidade, logo, demoníaca. Há um princípio da redenção que está em xeque aí, que vem, por sua vez, da poesia de Charles Baudelaire, da circunstância com a experiência do corpo lançado a rua e à guerra que vem dos dias. Logo, levar Baudelaire ao céu carregado por anjos com garras e asas afiadas é, no mínimo, uma ironia luciferina do pensador alemão – a de que o demônio, assim como qualquer deus ou quaisquer deuses são apenas meras invenções de nossa imaginação medrosa. A figuração do Amor nos dramas trágicos, por exemplo, anota Benjamin, é “como um demônio de lascívia com asas de morcego e garras”. É a dádiva, como um ethos, que nos apresentaria a possibilidade da felicidade e, como tal, há um jogo proposto por Benjamin que nessa leitura do anjo demoníaco, compõe um híbrido entre o monstro e a vertigem que, de todos os modos, é o contágio visceral das cosmologias antigas entre o masculino e o feminino: Agesilaus Santander, dádiva e dívida, juízo e benção, o eterno presente e a felicidade etc.

Nina Zur

Ora, perseguindo esses “6 minutos” da história do cinema não como filme, mas sim como κίνημα, que inclui a sala de cinema, como nos lembra Herberto Helder, ou seja, experiência e circunstância do corpo no mundo e com a vida em risco, torna-se quase primário perceber que o real só é quando construído, incessante e contingente porque todos os dias imaginado, ou seja, a história entre os que a fazem e os que a sofrem. Agora, repare-se: A chance do corte [2018, Cozinha Experimental] e O corpo informa [2021, 7Letras] são os dois livros de poemas de Nina Zur. O som das coisas se descolando [2017, Aves de água] e Desde o medo já é tarde [2018, 7Letras] são os dois últimos livros de poemas de Casé Lontra Marques.

Nina estuda e pesquisa teoria e filosofia do direito, na UERJ, um giro em torno da violência letal do estado do Rio de Janeiro, onde nasceu, contra meninos de comunidades que são executados sumariamente e o que isso provoca como movimento político entre mães e familiares em direção a um falseado sistema de justiça. Casé é servidor público do estado do Espírito Santo, tem formação em Letras, esticou formalmente os estudos até o mestrado, na UFES, nasceu em Volta Redonda, perto do aço, hoje vive em Vitória. Publicou alguns livros, como o raríssimo e forte A densidade do céu contra a demolição [Confraria do Vento, 2009] e está, há um tempo, defendendo uma ideia de que o poema ainda pode ser uma “cólera, roendo / as ferragens / encontradas no leito de uma nova luta”.

Casé Lontra Marques – Foto: Mayte Bellesa

O mais bonito, como ética – de um modo mais perto da coragem e da fome extrema que são, ao mesmo tempo próprias e inespecíficas do feminino, no trabalho de Nina Zur, e de alguma maneira mais vinculada ao usos do que na linguagem é, ao mesmo tempo, a música da espiral e o que nos ameaça com terror no trabalho esmerado e doce de Casé Lontra –, é a expansão propositiva de que entre o poema e a figura da pessoa que o escreve há ou haveria uma exigência e uma intervenção na vida, com a vida, no mundo, com o mundo, para o mundo. Tanto os poemas de Nina quanto os de Casé têm a ver com a dilação do não-aparentado e com a percepção daquilo que Carlo Ginzburg articula aos dias de agora como o único real possível: o fato de que “vivemos num mundo em que os Estados ameaçam com o terror, exercitam-no e às vezes o sofrem. É o mundo dos que se apoderam das armas, veneráveis e potentes, da religião, e de quem empunha a religião como arma. […] É o mundo semelhante ao pensado e investigado por Hobbes.” O que se tem aí é um Leviatã, tal como a deriva imaginada [repare-se, sempre imaginada], por Herman Melville ou Assis Brasil. O lance é: estamos diante de um pacto que transforma uma multidão amorfa, plena de indivíduos egocentrados e dominados pelo dinheiro, num frágil e disfarçado corpo político; e de que o Estado surge de um pacto nascido do medo.

Nina escreve com força contra o demônio do real, porque parece saber que se há um ponto de insurgência para o impossível ainda é a imaginação que, se por um lado, o inventa, por outro lado, também, pode ou poderia reinventá-lo.

Nina escreve com força contra esse demônio do real, porque parece saber que se há um ponto de insurgência para o impossível ainda é a imaginação que, se por um lado, o inventa, por outro lado, também, pode ou poderia reinventá-lo. Benjamin chamou a isso de “caráter destrutivo”: “como destruir a destruição”. Se a linguagem é uma armadilha laceradora que, por causa do medo que somos, constrói deus, diabo, deuses, demônios, entidades, ladainhas de salvação, redenção e futuro, vidas depois da morte, Nina inscreve um sulco às avessas sobre a terra: “botar o coração fora do corpo / (não há reconciliação possível / entre nós)”, “[ah, puta solidão nossa / agarrada como o bafo do álcool / como o cheiro da merda]”, “uma mulher que rasteja engole / a cabeça entre os pés / uma cobra que não sabe o que é / não sabe / […] / uma cobra uma acrobata”, “talvez seja melhor trepar sem falar / de amor / sem contar os meses / e a apelação interposta / será / uma página em branco” e, principalmente, “o feminino eu não / o feminino no meu corpo não / o feminino e / agora talvez então / passem vigias a fome mas / nada caiba tudo passe” ou “uma mulher sobre o bueiro” e “frear o trem com o meu próprio corpo / ser o trem / o vão entre o trem e a plataforma / ser a plataforma / levantar ilesa”. Isso tudo é corte e corpo, “faca só lâmina” e milagre, a poesia de Nina toca o espaço primitivo, uma espécie de mundo pré-linguagem, uma festa que é dança, entranha, acidente, deserto: “o milagre é o corpo / é estar vivo ainda / é sentir tesão nesse / deserto.”

O jogo de Casé tem a ver com os conceitos-limite: medo e som. O som das coisas, o medo de tudo. Um característica de princípio sem nenhuma lei de identidade porque apresenta o gesto do quanto um poema é inepto, não se vale a nada.

O que advém da poesia de Nina Zur até a de Casé Lontra, como uma renga, se demora na imagens que, agora, ele inscreve: a da “ferida viva” e de que a “palavra é parte / do que um corpo será”. O jogo de Casé tem a ver com os conceitos-limite: medo e som. O som das coisas, o medo de tudo. Um característica de princípio sem nenhuma lei de identidade porque apresenta o gesto do quanto um poema é inepto, não se vale a nada e, a cada segundo de uma vida circular, serve-se apenas como eficácia e método de exposição. O contraponto é a vida, a última unidade do medo; tanto que nos poemas que escreve a imaginação interroga exatamente os processos laudatórios que ainda se lista como criação lírica, visão de mundo do autor, esferologia particular. Sobra, ao contrário, a cada linha, a tarefa política de que a condição do poema não é nem forma, nem matéria, mas uma singularidade vazia. A cada página um pequeno fragmento, bolinha de chumbo, ao mesmo tempo fechado e com peso, gravidade e graça, coisas como “o medo segura suas fissuras”, “Enquanto ainda respiram / – isto é – enquanto / incessantemente ressuscitam, / as ondas debaixo / da pele dissolvem não poucos / nem parcos / limites”, “a fome / – não só aqui – / é farta / (e apenas / aumenta).”, “pequenos cortes / por toda a boca”, “luta premente, porém lenta: / sobreviver / fora da subserviência”, “chega a enchente / vestindo a voz / com êxodos / mais exigentes” e “palavras passam com o corpo”.

“O corpo informa”, Nina Zuh

“Desde o medo já é tarde”, Casé Lontra Marques

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É Escoto Erígena, século 9, quem desenha a questão: “Com efeito, onde está a vida quando o corpo se dissolve senão naquele próprio corpo dissolvido?” Depois, tenta voltar ao ponto da questão ao dizer que qualquer espécie que adere a um corpo é viva, que toda criatura é por si mesma vida ou participa da vida e é, de algum modo, viva”. Daí que, esticando o apontamento, pode fácil nos levar de volta à poesia de Nina Zur, de uma maneira, ou de Casé Lontra Marques, de outra, quando afirma que “a própria dissolução, que chamamos morte do corpo, é assim para nossos sentidos e para a matéria, mas não para a própria natureza, que permanece inseparável em si e é sempre inteira no mesmo instante, e não se divide segundo os tempos e os espaços.”

Muito da poesia brasileira apenas partilha sensibilidades familiares psicoanalíticas e passa ao largo da dimensão do interdito. Se expõe sem resto, é redonda e total, autofágica e imediata, civilizada e civilizatória, mercadoria sem graça.

Muito da poesia brasileira apenas partilha sensibilidades familiares psicoanalíticas e passa ao largo da dimensão do interdito, esta emergência, que uma partilha da terra e do incomum exige, isto é que é a política, o político. Se expõe sem resto, é redonda e total, autofágica e imediata, civilizada e civilizatória, mercadoria sem graça. Não sabe a boca, não sabe a areia selvagem, não sabe a água ausente da boca, gosta de berço esplêndido e mesa farta, por isso mora praticamente apenas diante do possível. Daí que Torquato Neto, o dissoluto, que achava Godard o melhor dos poetas, dissesse que se um homem e um boi num matadouro, o que gritar é o homem, mesmo que seja o boi. Torquato imaginava o impossível. Mas há sempre uma agenda marcada, escreva-se sobre isso ou aquilo e a exposição do possível está pronta; nada mais conservador e reacionário. Por isso, contra a circularidade do medo, a linha espiralada da imaginação revolta para o impossível: algo do álcool que berra da poesia de Nina que, por exemplo, respira a leitura dos cortes do Sermão de nossa senhora do Ó, Padre Vieira; ou do nervo retesado da poesia de Casé que, noutro sentido, sufoca o corpo em “alta carga virótica”. É o levante revoltoso de desejar o desejo que revira o poema contra o delírio do real, este demônio que não cessa de acontecer: “abrir garrafas de vinho com os dentes”, “uma vontade bestial de desistir”, “danço uma dança coletiva”, “Ceder, não cedo”, “Nada que respira perdura em paz”, “Um gozo tem muitos gumes”.

Torquato Neto imaginava o impossível. Mas há sempre uma agenda marcada, escreva-se sobre isso ou aquilo; nada mais conservador e reacionário. Por isso, contra a circularidade do medo, a linha espiralada da imaginação: algo do álcool que berra da poesia de Nina; ou do nervo retesado da poesia de Casé.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

Crônica para uma rua de Gaza

 

 

(Parafraseando o poeta Manoel Ciríaco)

Todo mundo tem uma rua, disse o poeta. Não me reconheço na rua onde moro. Trago comigo outra por onde revivo a infância, como na composição de Torquato. E fiquei a pensar sobre ruas e versos provocativos. De tão belos, bem mereciam um exercício de imitação. Sim, cabe a nós, que não somos tantos, repetir pra aprender, já dizia outro poeta.

Foi então que me chegaram imagens do fotógrafo Palestino Motaz Azaiza. Ao vivo da minha rua, ele dizia. Pronto. Confirmava o dito do poeta e era tudo que eu precisava para o meu exercício. A literatura me permite ser outro. Por um momento sou Manoel e Motaz caminhando por suas ruas. É por elas que nossas vidas também passam.

Antes de sete de outubro, eu costumava ir à feira escolhendo o percurso mais longo. Só para registrar fatos pitorescos e o rosto da minha gente. Triste, apreensivo, confiante, cheio de fé, me fazendo voltar pra casa contente com o azeite, o arroz, vegetais e o corte de cordeiro que minha mãe esperava para preparar Maqloube. E ali mesmo naquela rua, horas depois, uma porta se abria aos amigos ansiosos por sentir os aromas do vapor e o resultado
perfeito na virada da forma.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar.

Hoje um estrondo me acordou mais cedo e me fez caminhar em meio a escombros e gritos, fotografando a nuvem de fumaça que invadiu o azul e expulsou os pássaros da minha rua. E a angústia dos vizinhos apressados pra salvar o que restou. Imagino que os homens de terno, farda e estrelas, que se reúnem agora em HaKirya, não percebam a
impureza do ar soprado pelo Mediterrâneo. Os números do avanço da ocupação saltitando em suas mentes.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar. Penso nos homens protegidos do frio na 405 FDR Drive, tomando decisões sem se dar conta de que o direito de defesa alegado pelo agressor significa a morte: das pessoas, da rua, da cidade, da memória de um povo.

Ando sobre os destroços da minha rua não mais para mantê-la dentro de mim embalada pelo som das ondas logo ali, ou lembrar do Jordão libertando almas além dos muros que nos aprisionam.  Nem mesmo para registrar os semblantes devastados que fazem a limpeza em busca de redenção.

Meu andar atordoado é apenas pra dizer que aqui existiu uma rua onde pais e filhos andavam de bicicleta sob a sombra das oliveiras sobreviventes de guerras anteriores. Mais adiante, uma praça em que meninos e meninas descobriam o amor. E depois um templo, que não apenas consagrava os encontros, mas também contava a história do controverso São Porfírio, que não gostava de pagãos. No entanto, pouco antes da explosão que o
destruiu, suas cúpulas foram abrigo para cristãos e muçulmanos e ateus. Em meio à guerra, os deuses não reconhecem religião ainda que os homens usem seus nomes como disfarce de sua ambição e arrogância.

***

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).

O que nos levou até ali?

Por Samária Andrade | Fotos: André Gonçalves e arquivo

Quando avistamos a placa na calçada da Avenida de Mayo – “Bar e Restaurante Teatral La Clac recomenda: Jorgelina Piana” – imediatamente dissemos sim e entramos. Não é que conhecêssemos a artista e nem o local. É que eu e André saíamos de três dias de Congresso Internacional da Ulepicc – União Latina da Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura – em Buenos Aires, com estudiosos hablando pesquisas o tempo todo. Tudo o que a gente queria era um lugarzinho pra ouvir música e relaxar. Não demorou muito e isso se transformou numa aventura daquelas que só o jornalismo é capaz de lhe levar.

Foto | André Gonçalves

O local era pequeno, curioso e à salvo de turistas. Excessivamente decorado, com objetos de variadas décadas, formava um ambiente retrô – como quase tudo em Buenos Aires. No palco, a cantante de tango raiz Jorgelina Piana era acompanhada por três bons músicos. Quando ela soltou a voz, emocionou a pequena plateia. Alguns cantaram junto, acompanhando o repertório conhecido. A cantora chegou a chorar em algumas interpretações. Por meio do garçom ficamos sabendo mais: ela é neta do compositor Sebastián Piana, pianista argentino falecido em meados dos anos 1990, autor de cerca de 500 tangos clássicos como “Milonga Sentimental” (com letra de Homero Manzi) e “Tinta Roja” (com letra de Cátulo Castillo).

O que pessoas viajando a trabalho em um congresso fariam? Relaxariam, poderiam cantar, brindar com vinho… O que jornalistas fazem? Podem fazer isso tudo, mas fazem algo mais: acreditam que acabaram de descobrir uma boa história que estava só esperando para ser contada por eles.

Pode parecer um tanto arrogante falando assim. Na verdade, é mais romantismo.

Esperamos o show terminar e nos apresentamos aos artistas. Ouvindo que éramos jornalistas brasileiros querendo fazer uma matéria, um empresário logo tomou a frente. Em poucos minutos está marcada uma entrevista para o dia seguinte. Recebemos o endereço de onde deveríamos ir em um guardanapo.

Sebastián Piana: cerca de 500 tangos, alguns clássicos da música argentina | Foto: arquivo

Jorgelina estava voltando a Buenos Aires depois de 12 anos morando na Espanha com a família. Pretendia defender o legado do avô. Por isso tanta emoção. Mas essa história está na matéria já publicada em Revestrés (link abaixo). O que vamos contar agora é a história da entrevista.

Na manhã seguinte ao show, pegamos um táxi e partimos em direção ao local indicado. E como era longe! Consumiu uns bons pesos de nossa viagem. Pelo mapa, que fomos olhando, não foi golpe do motorista, foi distância mesmo.

O local era um escritório que parecia servir a outros artistas e empreendimentos. Não nos esperava apenas Jorgelina, mas também o empresário e um grupo de argentinos falantes. Na decoração do escritório, cartazes de celebridades do país e uma em destaque – Evita Peron – em fotografias na parede e no porta-retratos sobre a mesa.

Jorgelina Piana | Foto: André Gonçalves

Não tínhamos gravador nessa viagem e os celulares não eram ainda tão modernos. O plano não era fazer matéria – mas já devíamos saber: esse plano vive falhando miseravelmente. O empresário disse: “tranquilo, tranquilo”. Ele gravaria e nos enviaria. Provavelmente não podia perder aquele interesse da imprensa brasileira em sua empresariada. Desconfiada, como deve ser todo jornalista, tratei de anotar tudo o que diziam – ou o que conseguia acompanhar de tanto que falavam ao mesmo tempo. Me sentia já quase Truman Capote, que se orgulhava de não anotar quase nada e memorizar quase tudo. André tentava pôr ordem no portunhol – a língua predominante ali: “Intenta hablar uno a la vez, por favor”. A tentativa era inútil.

No final, voltamos ao Brasil e a gravação do empresário nunca chegou. Ou ele não conseguiu gravar ou descobriu que não éramos a Globo e não se preocupou em enviar material.

Fizemos a matéria, mantivemos contato com Jorgelina por um tempo e ficamos sabendo que ela gostou de como se viu em Revestrés. Fomos salvos pelas anotações no bloquinho de papel. Eles não falham nunca. E ainda ajudam a manter a atenção no que o entrevistado está falando. Isso, ali, era essencial.

O que nos levou do show ao escritório de bairro, com um argentino peronista e outros tantos hablando sem parar? O jornalismo. Isso que nos faz olhar show, gente, paisagem, e enxergar pauta, pauta, pauta.

Numa terra cheia de nostalgia e dramaticidade, que fala “espremido” ao invés de suco, “tormenta” ao invés de chuva, o título que demos a matéria foi “Como sofre a cantora de tango!”

Minto. Isso foi há quase dez anos e não discutíamos o gênero na linguagem como o fazemos hoje. Na época, a revista foi impressa com o título “Como sofre O CANTOR DE TANGO”. E vejam só: a história e as fotos eram de UMA CANTORA. Publicada só agora no site, fizemos essa reparação histórica.

Hasta pronto, Jorgelina!

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Para ler a matéria “Como sofre a cantora de tango”, acesse:

Como sofre a cantora de tango

 

 

Joana Corona, Mariana Medina e Fábio Freitas / Sidnei Cruz: vento, ventania e o cão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“É chegado o fim de tudo
E o mundo pode acabar”

Belchior

Há um extermínio do viveiro de pobres que vive em Gaza gerado pelo regime de apartheid do estado de Israel. Há, nesse momento, em todo o mundo, quase 30 conflitos armados entre nações defendendo suas linhas de controle, as fronteiras; a maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta: a maioria, também um viveiro de pobres, vai sufocar de calor, sede, desidratação, falta de ar. Weltschmerz, ou seja, desolação e desamparo, morte rápida, esse é o resultado da guerra civil mundial e da normalização do terrorismo privado, pode-se ler tanto em Didier Vincent ou Peter Sloterdijk quanto em Paul Virilio. O filósofo bávaro, por exemplo, lembra que nos sobra um bafio, uma ausência de renovação do ar, são os que podem pagar que mantêm uma “climatologia especial” e, assim, num revés, “manipulam o ar respirável e deixam aos pobres apenas a sua dimensão mais destrutiva.” E Virilio, noutro exemplo, diz que o capitalismo impõe “tomar tudo de assalto”, o dinheiro é uma dromomania, o movimento deixa de ser uma revolução: o movimento agora é a velocidade como política de estado, controlar tudo com o imperativo da falcatrua da lei.

A maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta.

Na outra ponta da vida, 60 pessoas controlam todo o dinheiro do mundo; 4 ou 5 corporações toda a comida; 5 países têm poder de veto na ONU, que é, cada vez mais um espaço conformado e conformador, esses mesmos 5 enriquecem muito imediatamente e sem parar; há uma família ou duas que enricam de modo absurdo no Brasil à custa da extração de nióbio da floresta amazônica, em 10 anos foram 30 bilhões de reais; no dia 19/11 Javier Milei, figura da extrema direita alucinatória que avança por todos os lados, tornou-se presidente da Argentina; há uma feira literária sobre pedraria escrava no litoral fluminense, o sistema de escravidão e subserviência é circular, a patrocinadora oficial da feira é a VALE, que pratica uma mineração violenta e irresponsável, mesmo depois de Fundão e Brumadinho, do outro lado, como sempre, um banco, e o viveiro de pobres continua morrendo sob o rejeito, pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Um famoso escritor brasileiro diz que só há paz na lei e na justiça, esqueceu de Franz Kafka ou não viu ou não leu, quando este diz, lendo Anaximandro, que diante da lei não há justiça nem muito menos paz. Para  que algo exista – dizia o filósofo de Mileto, simpático a um partido de trabalhadores –, algo tem que deixar de existir, daí que o ser já é, como tal, uma injustiça; e Kafka, lentamente, inverteu o lance de dados que jamais abolirá um lance de dados: Alonso, o quixote, não passa de um demônio de Sancho, o pança. Há um pacto imposto de mudez e compadrio, Pasolini disse – porque sabia que sua participação como intelectual era pública, nunca íntima ou familiar, aprendera com Gramsci – que este pacto de pafúncios é, no mínimo, cretino.

Pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Há um pacto imposto de mudez e compadrio.

Joana Corona

Numa anterioridade ao pacto, há Crostácea, livro de Joana Corona [1982-2014], publicado em 2011, editora Medusa. A vida brevíssima não impediu Joana, que expandia seu pensamento entre o poema, as artes visuais [os objetos do livro e da leitura] e seus estudos de antropologia cultural, uma etnografia urbana da língua  impossível das putas e dos que habitam as ruas, de traçar uma oscilação diferida ao seu trabalho. Diga-se aí, assim, vagarosamente, do convívio com Ricardo Corona, poeta de guerrilha, e Eliana Borges, artista impensada, tios, ou com Davi Pessoa, professor e tradutor, um pensador da política e seus desvãos às coisas do porão. Se pouco se vê e se lê, o que para Giordano Bruno eram um mesmo gesto, da poesia de João Cabral de Melo Neto hoje ao nosso redor mesmo se como mero resíduo, praticamente anulada, porque escrita, como ele apontava, não por “uma necessidade de expressão, mas por escassez de ser” –, os textos de Joana refazem a pedra do poeta de Recife como musgo e coral num mar de plástico. Ao lado, há o pouco que vem, lição da pedra, e que está na poesia de Carlito Azevedo, que reelabora a pedra em conversa direta com o que João Cabral lia, reparava, tocava, Midas ao contrário, todo ouro vira pó e força de sentido; na poesia de Júlia Studart, como um arremesso da pedra até a cabeça de quem passa, uma Krazy Kat de depois de amanhã, acrobacia, cicatriz e jogo; na poesia de Eduardo Sterzi, pedra torta, pedra de fogo, lava em chiaro-oscuro, desmembrada, mal amada, imposição do apagamento da paisagem e anotação de risco e perigo, pedra de raspar o pé; e repare-se, escrevem pouco, publicam menos ainda.

Os começos de enfrentamento do trabalho de Joana Corona não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Em poemas como contracarne, Joana imprime que “somos o que retemos e o nosso desperdício mútuo”, ou em viento, uma pequena vida entre línguas, quando escreve que há “un sonido perdido en el hueco del desierto. quase devorado pelo silêncio. choca-se em: cordillera de la sal, mineral, esqueleto de anfíbio, concha, areia e outros resquícios marítimos. penetra a vasta sequidão, ensolarada e quente. estrelada e gelada. em seus bailes frequentes – deserto solitário. agigantado e solene. hace que el sonido explote sutil y agudo, imperceptible.”, está sugerido o movimento que ainda é próximo da entranha e da dança, que ainda é revolução, ou seja, antes da linguagem meramente burocrática e de fragilidade pessoal, familiar, vidinha íntima. O que se tem é uma espécie de reparação ou compensação da música vagarosa contra a velocidade da ilusão do tempo, o trabalho de Joana é um vento que sangra, do poema ao livro, do livro ao objeto exposto que a leitura é. Crostácea segue sem fluxo algum, bastariam trechos de poemas como calcário, “da epiderme pálido-dourada ressequida impregnada”; disfagia, “cabeça dentro de cabeça”; ou migalhas, “como cavoucasse pedra, batia cabeça [dura] por palavra bruta”, para que se perceba que os começos de enfrentamento do trabalho de Joana não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Vestidas de vento | Foto: Rogério Von Krueger

Entre vento e ventania, importante demais, também, tocar o trabalho de Mariana Medina, uma artista de circo, professora de acrobacias de circo com pano e lira, trapézio e corda, movimentos de chão e os descompassos do corpo como brincadeira, brincar, presença das delicadezas de criança que, por sua vez, atravessam a história, tanto a que se faz, quanto, principalmente, a que se sofre. Mariana dirige o Grupo Devoar, e seu último espetáculo entre coreografia e direção realizado e apresentado em temporadas curtinhas no Rio de Janeiro agora em 2023, Vestidas de vento, nos teatros Nelson Rodrigues, da Caixa Cultural e, depois, no Dulcina – espaço cultural da Fundação Nacional de Artes – Funarte, através do Programa de Fomento Carioca, FOCA, é simplesmente encantador. Cinco artistas de circo, bailarinas, acrobatas [akrobatoi] – Amanda Pontes, Ana Cecília Menescal, Julia Sève, Lua Couto e Maju Houri – se revezam entre os emaranhados de suspensão e sustentação dos corpos uma de cada outra e, entre risco e queda, equilíbrio e muita força, numa tentativa sutil de raspar as ideias do mundo em crise, do feminino e de uma reinvenção da Terra. Importante, e isso está entre os princípios de formação de Mariana, do teatro ao circo, da geografia à psicologia, o quanto o cenário de pouca luz, vestidos leves e quase brancos [eis uma figuração do vento] e muitas folhas secas e soltas pelo chão desenham a raspa da Terra atravessada pelo rocio dos braços, das mãos, das pernas, dos pés, dos cabelos e dos olhos das personagens que cada bailarina é; mas, repare-se, só se em conjunto, unidas, juntas, composição e comunidade contingente.

O trabalho de Mariana Medina é da dimensão do político, são mulheres que se lançam ao vazio do vazio para esvaziar a desmedida do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.

Mariana Medina | Foto: Rogério Von Krueger

E isso é o encanto imaginativo desse trabalho de Mariana Medina, tanto que é muito possível lembrar do poema-fragmento de Alejandra Pizarnik, de 1962, “un vento débil / lleno de rostros doblados / que recorto en formas de objetos que amar”, porque é nesse empenho que se apresenta no contradito do choque dos apertos de mão e da dobra dos rostos, quase sempre impassíveis mas marcados por esforço, que comparece o desejo daquilo que ainda é leveza diante do corpo, este peso, movido a sangue, carne, pele, ferida, cicatriz, veste e nudez, um móbile informe entre a gravidade e a graça numa imaginação de esvaziamento: vestir-se de vento, vestir-se com o vento, vestir-se vento. O que Simone Weil já implicara, como uma dimensão do político, ao dizer que “o trabalho contínuo da imaginação é provocar fissuras por onde a graça possa passar”, “a imaginação não preenche vazios”, “toda arte só é se coletiva” etc. E é muito isso porque o trabalho de Mariana é da dimensão do político, é telúrico, são mulheres quem vêm trançadas em espiral, a linha infinita, sem começo nem fim, que também veem e se lançam ao vazio do vazio para esvaziar, com a radicalidade de seus corpos, a desmedida assoladora do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.  Re-habitar a Terra, recompor a Terra é, no mínimo, como um sentido de memória, reinventar o mundo, este único que criamos para alguma possibilidade de existência.

Fábio Freitas em cena da peça Cão chupando manga | Foto: Ivam Cruz

E é tal como um apagamento de toda e qualquer ideia de círculo, circularidade, o que leva a estados de violência e poder, que o aperto de mãos entre Fábio Freitas, ator e dramaturgo, e Sidnei Cruz, dramaturgo, poeta e diretor de teatro, projeta a peça Cão chupando manga, uma deseducação. E aí, procedimento expandido, a luz de Guiga Ensa, a trilha sonora de Ivam Cruz e a direção de movimentos do ator de Maria Angélica Gomes. Um texto errante permeado por objetos de cena criados por Fábio com tampinhas de garrafa de cerveja, saias e sandálias altas, máscaras e pulseiras de pulso e tornozelo, artefatos de ferrugem e chão vermelho. Em princípio é o teatro do mundo, esta falência, a vida que gorou. Ator e público descentrados em uma mesma altura, nenhuma hierarquia. Há um homem, vive num apartamento vizinho de um quintal com mangueira, no quintal há um cão que late sem parar, o homem não consegue dormir, não dorme, torna-se uma besta, deseja matar o cão, precisa dormir. Dança em giro, se move anódino, se diz sem dizer, baba, para frente a alguém, fala baixo, grita, estabelece convites, quer chupar o dedo do pé de alguém, chupa, esboça cagar na frente de todos, despe-se, posiciona-se, concentra-se, quase caga, chupa uma manga completa e visceralmente e avisa que está-se num lugar real.

Na peça “Cão chupando manga”, a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita.

 

Sidnei Cruz | Foto: Ivam Cruz

A revirada da peça é a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, até porque muito distantes de toda animalidade, nosso res a missa, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita, da vida lançada ao domínio e ao controle mímico do capital. O ponto insurgente é o como e quando, pergunta e temporalidade, Fábio Freitas se modula ao cenário vermelho, por exemplo, quando bebe água em pequenas garrafas térmicas também vermelhas dispostas ao alcance da mão e, sem parar, numa língua selvagem, abissal, desordenada, caótica, vocifera a morte do cão, da vizinha, do vizinho, da árvore, em busca de ar e com sede. O que alonga o ponto é, ainda, o que pode advir num próximo pensamento, se o mistério ou se o inacessível, estamos definitivamente, diante daquele homem incomum, pasmos e no preenchimento da vida com deuses, mitos, deus, simbologias divinas e sagradas, mas nada nos há como salvação. Assim, é também muito do que faz e imagina fazer Sidnei Cruz: a liberdade sem medo contra a normatividade do normal. Três trabalhos e tão pouca gente para nos lembrar que o que nos sugere a delicadeza da fúria e de nossa capacidade, cada vez menor, para dizer não, é a dilação figurante, exposta, vagabunda e flutuante, daquilo que somos: um animal que ri.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.