“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção”. De cara, o primeiro verso de Coração Selvagem, canção do cantor e compositor cearense Antônio Carlos Belchior, dá o tom da coisa toda. Trata-se de um verdadeiro mestre da intertextualidade. Nascido em Sobral, Ceará, no ano de 1946, Belchior é dono de uma das mais belas obras da Música Popular Brasileira. Abandonou o curso de Medicina, residiu em um convento de freis capuchinhos, dedicou-se às artes plásticas e introduziu como poucos os elementos da literatura em suas composições, até sumir dos palcos e dos holofotes em seus últimos anos de vida, dedicando-se à tradução da Divina Comédia, de Dante Alighieri.

De Edgar Allan Poe a Caetano Veloso, a obra do autor de Como nossos pais tem poesia de fio a pavio. Há denúncia da complexidade da vida urbana em todas as partes, e lampejos de saudade da pacata vida rural. Belchior se utilizou dos meios oferecidos pela indústria fonográfica se safando, principalmente nos primeiros álbuns, das exigências mercadológicas. A lista de poetas citados por ele vai de Gonçalves Dias e sua Canção do exílio, mencionada na música Retórica sentimental, do álbum Era uma vez um homem e o seu tempo, passando pelo poeta espanhol Federico García Lorca, na canção Conheço o meu lugar, até chegar a Bob Dylan (o estilo trovador de Dylan), Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

A lista é longa. Belchior flertou com o cinema, com o teatro e com diversas manifestações culturais. No álbum Melodrama (1987) ele faz um verdadeiro desfile de grandes nomes como Jean-Jacques Rousseau, Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire. E o que dizer do poema Ouvir estrelas, do poeta parnasiano Olavo Bilac? (Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/Eu vos direi no entanto/Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/Eu canto). De maneira direta, Belchior toma de empréstimo o título da obra mais famosa do filósofo Erasmo de Roterdã (Elogio da Loucura, de 1988).

Como ele bem diz quando se comunica com o manifesto antropófago de Oswald de Andrade, “eu sou um antropófago urbano/Um canibal delicado na selva da cidade/Mais dia, menos dia… eu como você”. Na sua bela canção, A palo seco, é nítida a referência ao poeta João Cabral de Melo Neto.

Ficam aqui minhas lembranças das incontáveis vezes em que sai em meu carro pela BR-343, aparentemente solitário, mas apenas “aparentemente”, diga-se de passagem, já que o imaginário musical, poético e social de Belchior jamais me abandou, mesmo quando eu tive medo de “abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão”.

E tudo isso por causa de uma lição singular que o mestre me ensinou: “Eu quero corpo./Tenho pressa de viver”.

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Nathan Sousa é poeta, ficcionista e dramaturgo.