Ítalo Lima
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Quando o coração machuca o dedo na quina da porta

Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Vou repetir. Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Poxa vida! Machuquei o dedo do pé na quina da porta e Carlos Aberto continuou com a bunda no sofá da sala. Não se compadeceu do meu grito, ainda que tímido. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e Carlos Aberto continuou com a bunda no sofá da sala.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar, nem sequer entortaram a vista para medir o meu lamento. Machuquei o dedo do pé na quina da porta, Carlos Alberto continuou com a bunda no sofá da sala. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e eles continuaram, um com a bunda no sofá da sala e o outro a cursar em um tic-tac cotidiano.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Carlos Alberto continuou com a bunda no sofá da sala. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e eles continuaram, um com a bunda no sofá da sala e o outro a cursar em um tic-tac cotidiano. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e a cortina da varanda continuou a balançar como se nada tivesse acontecido. Bailava a todo vento mole.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta, Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda não me socorreram. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e era como se nada existisse ao meu redor. Como se Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda fossem um só objeto. Inanimados. Que não se lamenta quando a esposa machuca o dedo do pé na quina da porta!

Olha, machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e Carlos Alberto a socorreu como se fosse uma filha. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e os ponteiros enlouqueceram em giros catatônicos. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e a cortina da varanda deu giros inconstantes. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda ligaram para a ambulância.

Pedi desculpas à porta. Toda a casa dormiu aliviada.

italolimapoesias@gmail.com

A gênese da deusa

Do que se sabe da formação do cânone ocidental na literatura, especialmente da poesia, a mãe das sociedades deste lado do mundo (a Grécia Antiga) formou suas bases na poesia épica. Ainda poderei ser mais fatalista: se tivéssemos que pronunciar um e somente um nome para representar tal momento, o nome seria “Homero”. Ninguém foi tão soberano no campo da literatura clássica quanto ele. Não se sabe e nunca se saberá quantos seguidores o autor de Ilíada teve (e tem), mas podemos afirmar que todos fracassaram quando tentaram rivalizar com aquele que confundiu seu nome com o nome “poesia”. Homero era a encarnação da poesia. Estudar a obra de Homero na Grécia de seu tempo não era apenas uma ordem; era um dever existencial de um povo. Pronunciar a palavra “Homero” era dizer, quase com as mesmas letras, “doutrina”.

No entanto, para os dias de hoje, onde há uma complexidade diferente daquele tempo, seu nome representa uma simbologia de uma obra consolidada, fundamental, mas ela não foge ao ambiente da discução como acontecia em seu tempo. Homero é um gigante, uma pilastra das letras, mas não exerce a mesma soberania de outrora. Cogita uma soeidade finalizada, não o reflexo confinante de uma realidade. O poeta grego trata de tudo o que é humano e desumano em cada um de nós. A Ilíada mostra campo aberto de batalhas individuais; a Odisseia¸ a aproximação com as normas, caprichos e falhas da vida mundana.

Não seria exagero nem mesmo redundante dizer que Homero era “homérico”.  Mas a força de sua narrativa é tão grande que ele, o poeta, parece não estar ali, no poema, quando o lemos, embora saibamos que ele, Homero, impõe sua força em cada letra. A exemplo de Aquiles, no final da Ilíada, a cada instante, o poeta procura a última vitória, e esta não é outra senão a de ter que vencer a si mesmo. Ainda que só possamos analisar a poesia lírica da Grécia Antiga de maneira fragmentada. Era uma poesia dionisíaca. Aqui, tem destaque a poesia de Píndaro com sua “Epinikioi”, ou seja, suas canções de exaltação à vitória de seu povo em qualquer meio. Píndaro exerceu forte influência na poesia de seu tempo e nos séculos seguintes. O poesia sabia criar uma amálgama de espiritualidade e altivez de maneira originalíssima. Ainda assim, Píndaro não escrevia com clareza imediata. Suas composições eram marcadas pelo rebuscamento de uma linguagem densa, cheia de metáforas. Trata-se de uma poesia rica, com poemas muito bem construídos, onde a música era seu ativo mais caro; sua pilastra central. Mas quem inaugura o cosmopolitismo da literatura não é Dante nem Píndaro: é Ésquilo com o seu Prometeu Agrilhoado.

Há uma força transitiva neste momento, onde outra figura, a de Eurípides, marca profundamente. Agora, a temática da vez é a nova concepção de Cidade, onde o indíviduo os meandros de sua vida são do interesse do poeta. É a alma solitária do ser humano, a matéria-prima de sua poesia. Com o experimento de uma queda na qualidade poética de seus primeiros anos, a Grécia encontrou em Sófocles um suposto mediador de situações extremadas e, mesmo quando o poeta não conseguiu encontrar este caminho, apresentou ao mundo uma poesia suavemente dolorosa, encantadora, que o colocou em um patamar de preferência dos chamados classicistas. Um mestre da construção estética da palavra; um senhor soberano do lirismo, ainda que ele concebesse que somente pelo sofrimento é que podemos apontar com segurança nosso verdadeiro lugar no universo. Mas foi em Platão, o Platão poeta, que a poesia desembocou de vez nas profundas da razão até chegar no mito. Neste ciclo inicial da poesia, é salutar destacarmos a poesia “alexandrina”, de caráter erudito, marcada pela liberdade do espírito poético, que tem em Calímaco seu nome mais destacado, com seu belíssimo poema O Caracol de Berenice. E as linhas enviesadas da poiesis começam a se expandir. Com o declínio da civilização grega, as características poéticas de então se assemelhavam ao que viria a ser chamado de moderno (a melancolia erótica de Teócrito que, nas palavras de Ezra Pound, foi um dos maiores de todos, é representante clássico deste novo instante). Portanto, começa ali, na Grécia Antiga, o périplo desta deusa do esquecido: a poesia.

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é ficcionista, ensaísta, poeta, letrista e dramaturgo. Tem vários livros publicados, dentre eles Um esboço de nudez (2014) e Semântica das Aves (2017). Venceu por 04 vezes os prêmios da União Brasileira de Escritores, foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do I Prémio Internacional de Poesia Antonio Salvado.

email: nsrlezama@hotmail.com

Das tormentas e calmaria

 

And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve,
And like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dream are made on; and our little life
Is rounded with a sleep. (…)

(Prospero em The Tempest, Act Four Scene I, W. Shakespeare) *

Era véspera de ano novo e uma saia branca ia me arrastando pela areia úmida, antes que os fogos anunciassem a virada. Só queria o cantar das ondas para esquecer as tormentas. Minha mente pedia e merecia uma pausa para revitalização. E tudo que ouvi das pessoas naquela noite e nos dias que se seguiram foi planos e metas. Tudo medido, negociado, dividido em parcelas a vencer. Então, de repente, me baixou aquele santo provocador e me fez lembrar que as melhores coisas da minha vida aconteceram completamente por acaso. Ou será que não?

O engraçado é que tenho gosto por planejamento, devo confessar. Aliás, não sei se realmente gosto ou se meu gosto foi moldado para isso ao longo dos anos. Apesar dos jeans desbotados e dos cabelos em desalinho não quebrei regras importantes na adolescência. Curto até hoje uma saudade do que poderia ter sido. Aos dezoito anos o projeto de vida estava desenhado. Apagou-se em um sopro do acaso. Por um curto tempo vivi um sonho coletivo. Entre tormentas, o que chamam realidade me abriu espaço para calmarias.

Todavia tenho também um gosto especial por sonhos. Mesmo aqueles que se embalam em tormentas. Muito antes de ser desgastada e rodeada de clichês, essa palavra já dormia a meu lado e me acordava no meio da noite para alimentar o tal gosto por planos. É ela que, às vezes, me leva a crer que somos o que pensamos. Às vezes quero acreditar que meus pensamentos são mais que reações cerebrais, e que talvez até se envolvam na causa dessas para me presentearem com percepções exclusivamente minhas.

Bom, voltando às tormentas. Foi no meio de uma delas que a vida me ofereceu a chance de realizar um sonho antigo. Como náufraga, que precisava abandonar um velho navio, cheguei a Stratford-Upon-Avon em um julho distante, em meio ao World Shakespeare Festival, o que me permitiu ver algumas montagens da Royal Shakespeare Company. The Tempest foi uma das escolhas acertadas. Aparência versus realidade no centro de um palco com cenário marcado apenas pela iluminação. Um duelo de imaginação impulsionado pela eloquência dos atores bem treinados e a sonoridade de uma língua que não era minha, deixando meus neurônios em polvorosa. E quem sabe, provocando novos sonhos em um processo inverso. Das reações neurais ao pensamento. Do pensamento ao sonho. Do sonho à ação: um novo plano. Consegui repetir no ano seguinte, mas isto é assunto para outra história.

Por enquanto a memória vem para me dizer que as tormentas não se resolvem por magia. Há que serem contornadas a braçadas, transformando o processo da travessia em aprendizado como humanos que somos. Foi o que ouvi do bardo quando a festa acabou e as personagens se derreteram no ar. Há que se colocar essa energia em movimento por pensamentos, sonhos e novos planos E o acaso? A vida segue o movimento. Ou será que não?

 

* (…). E tal como
O grosseiro substrato desta vista,
As torres que se elevam para as nuvens,
Os palácios altivos, as igrejas
Majestosas, o próprio globo imenso,
Com tudo o que contém, hão de sumir-se,
Como se deu com essa visão tênue,
Sem deixarem vestígio. Somos feitos
Da matéria dos sonhos; nossa vida
Pequenina é cercada pelo sono.  

(tradução de Carlos Alberto Nunes)

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)

 

Esboço de uma escritura de si

Por Herasmo Braga de Oliveira Brito

 

A poetisa Adélia Prado costuma ser indagada se o discurso religioso é literário, e ela não só confirma como enfatiza: “Como não pode ser literário? Se não fosse, não existiria mais!” Com essa singela resposta, Adélia não apenas enaltece a linguagem literária mas, sobretudo, a linguagem simbólica. Em momento distinto, outro poeta, Octavio Paz, na sua obra O arco e a lira, nos diz que primeiro existiu a poesia e depois a linguagem. Apoiando-nos somente nestes dois poetas, com essas pequenas e significativas afirmações, podemos chegar à considerável ideia de que o uso potencial da linguagem se faz presente não no que ela diz, mas naquilo que sugere.

No meio literário, é comum afirmar que toda obra que diz ou reflete a realidade não nos serve. Esse pensamento remonta à época platônica, quando na sua A República (381 a.C.) Platão nos diz, especialmente no livro X, que todo poeta deve ser banido da república, pois, para ele, todo construtor de discurso mimético estaria deturpando a verdade e, portanto, criando mentiras. É em Aristóteles que a força da mimese ganha sentido porque, de maneira reflexiva, na Poética, o discípulo de Platão afirma que o discurso ficcional, simbólico, mimético não tem compromisso com a verdade no âmbito real, ele produz a verdade dentro de um universo próprio e verossímil. Assim, a linguagem simbólica realiza, através do diálogo entre o mundo verossímil e a realidade concreta, uma significativa ampliação e conhecimento dos mundos através da refração. Destarte, diante dos mundos conectados e no uso da linguagem mimética, poética, ficcional, simbólica, é que passaríamos a conhecer os mundos subjetivo, objetivo e imaginário, nossos e dos outros, através das constantes diferenças, contradições, paradoxos.

Não é à toa que Platão, ao realizar as suas produções por escrito, dará vez aos diálogos e à linguagem simbólica. Ele não quis receitar, ou direcionar, mas nos elevar, pelo pensamento, às constantes significações e ressignificações que os textos filosóficos nos levam a refletir. Nesta junção do diálogo, que nos oferece dinâmica e perspectivas dos outros, através da linguagem que não nos diz, é que nos formamos e não apenas nos informamos, já que toda e qualquer informação tem prazo de validade, enquanto aquilo que nos foram constituindo, formando-nos, vivendo e sentindo, não.

Dessa maneira, um dos elos que unem a filosofia à literatura é linguagem carregada de sentidos e reflexões. Walter Benjamim no famoso texto O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov nos apresenta a ideia de que a precarização das narrativas de hoje se dá devido à ausência das grandes vivências. Sendo assim, como narrar o que não se viveu? Como alimentar a imaginação com tanto pragmatismo? E o mais grave é destacado por ele quando nos alerta que as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Isolamo-nos e construímos um mundo paralelo, e se não bastasse ser apenas efêmero, traz o prejuízo de nos fazer acreditar copiosamente nele. Diante destas questões, podemos afirmar sem nenhum exagero que precisamos muito mais da filosofia, da literatura, da linguagem simbólica que nos encaminha e desenvolve as nossas percepções, do que em qualquer outro momento da nossa história.

Sem tons apocalípticos ou niilistas, mas sob a égide da compreensão do mundo contemporâneo, vivemos em um mundo doente, com pessoas cada vez mais doentes. O pior é que sabemos disso, como também sabemos a cura, todavia, a covardia de se viver a vida no enfrentamento para de fato vivê-la, nos domina e vai nos aniquilando. Podemos exemplificar essa nossa condição ao nos deparar com duas obras distintas de um mesmo autor com Dostoiévski. Como nos arrepia e nos oferece um soco no estômago Memórias do subsolo. Nesse livro, percebemos o quanto somos sujeitos ruins, doentes e mentirosos. Construímos ilusões em malefício nosso e dos outros. Quando algo nos é trazido sem um véu destas fantasias estéreis, rejeitamos imediatamente, por exemplo, no enredo, quando uma prostituta busca consolo com o narrador no lamento da morte de uma amiga também prostituta, que será enterrada como indigente. Nesse caso, nosso narrador-personagem, sem nenhum receio, indaga por que ela estranha isso, e ressalta que o destino dela será o mesmo, sem qualquer dúvida.

Assim, encarar a realidade não é fácil na sua sagacidade, então, apelamos defensivamente para o otimismo e para a bondade humana, e eis que novamente Dostoiévski nos humilha com outra narrativa que nos assombra, em O Idiota. O personagem principal, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, ou só príncipe Míchkin, nos irrita não por suas atrocidades comuns aos nossos dias, mas por toda a sua bondade. Mesmo quando as pretensões de outros personagens como Gánia, e em alguns momentos, Nastácia Filíppovna, são de irritá-lo, ofendê-lo, diminuí-lo, não ocorre por parte dele nenhum incômodo. Mantém-se da mesma maneira, sereno e tranquilo, e não só de modo aparente, como também em seu ser, isto é, ele não cria uma máscara de feições, ele não se irrita porque de fato não se sente ofendido, diminuído. Todo esse excesso de bondade dele desenvolve em nós aflições, pois nem de longe conseguimos ser pessoas desprovidas de egocentrismo e de maldade. Somos sujeitos que, na maldade alheia, nos vemos e nos irritamos e, na bondade de outros, temos a mesma postura. Isso só demonstra que, quando nos voltamos para nós (para si), é que nos vemos, diante destas obras ficcionais e dos diálogos filosóficos, o quanto somos cada vez menores, em todos os sentidos.

Quando o poeta Francis Ponge afirma que os homens na sua maior parte parecem privados das palavras e estão tão mudos quanto às carpas e pedregulhos, ele não deixa de ter razão. Estamos mudos e surdos diante do mundo. Fugimos da palavra-símbolo, utilizamos apenas a palavra no sentido referencial para nos comunicar e não nos inquietar tanto, menos ainda nos provocar angústias. Viver neste automatismo verbal nos alenta e, portanto, não se alimentar desta palavra-símbolo, sugestiva, oferecida pela literatura e filosofia, faz acreditar que nos faz bem, e desta maneira seguimos o conselho irônico e realista dos nossos dias feito por Albert Camus em A Queda, prometemos ser verdadeiros e mentirmos da melhor maneira que pudermos.

 

Filmes que desnudam a escuridão

 

Se hoje respiramos a deliciosa fragrância da liberdade, com os partidos legalizados e eleições livres em todos os níveis, devemos esse feito a luta tenaz da maioria do povo brasileiro. Mas a democracia, infelizmente, não tem sido a tônica da história do nosso país. Ao contrário, tem vigorado mais como exceção do que regra geral. Daí o cuidado redobrado que devemos ter com a criança que ajudamos parir, sobretudo, quando setores da direita pregam o retorno dos militares ao poder. Para tanto, é recomendável assistir a filmes, justamente nestes tempos sombrios, que retratem essa época marcada pelo arbítrio e a tortura. Até porque o cinema nacional faz, a rigor, aquilo que os governos FHC, Lula e Dilma – os três, vítimas da ditadura – não foram capazes de fazer: abrir os arquivos da repressão política, cicatriz difícil de sarar.

O primeiro recomendado é PRA FRENTE, BRASIL, do cineasta carioca Roberto Farias, lançado em 1982, que mostra o drama de um pacato trabalhador de classe média confundido com um perigoso subversivo, sendo vítima de torturas físicas e psicológicas imagináveis. O filme, ambientado na década de 1970, reflete o dualismo entre a euforia patriótica da copa do mundo e os maus tratos dispensados aos presos políticos. Com um grande elenco, tendo à frente Reginaldo Faria e Cláudio Marzo, o filme ganhou várias premiações: o Kiko de Melhor Filme no Festival de Gramado e o Prêmio Ofício Católico internacional no Festival de Berlim.

Outra indicação é O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, filme de Bruno Barreto baseado em livro homônimo de Fernando Gabeira, que narra o sequestro do embaixador norte-americano (Charles Burke Elbrick) por grupos armados de oposição ao governo militar, soltando-o somente depois da libertação de vários presos políticos e da leitura e publicação de uma carta aos brasileiros. Lançado no final da década de 1990, tendo no elenco atores do porte de Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele e Othon Bastos, recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1997.

LAMARCA é um registro imperdível daqueles tempos de chumbo, filme de Sérgio Resende que retrata a trajetória combativa de um dos mais destacados líderes da resistência armada no Brasil, capitão que deserta do exército para organizar a luta revolucionária. Encurralado no interior da Bahia, morre ao lado de José Campos Barreto, o Zequinha, amigo e companheiro das utopias socialistas. Dias antes, sem que tivesse tomado conhecimento, havia tombado, em Salvador, a paixão de sua vida: Iara, para quem escreveu belíssimas cartas de amor. O filme foi baseado na biografia Lamarca: o capitão da guerrilha, escrita em 1980 por Emiliano José e Oldack Miranda.

Em 2005, o assunto é retomado em CABRA CEGA, de Toni Venturi, thriller político que aborda a relação limite de Tiago e Rosa, dois jovens militantes da esquerda armada que, alojados em apartamento de um simpatizante da causa, acabam se envolvendo amorosamente, de maneira intensa e urgente, na iminência do cerco policial. Ele, comandante de um “grupo de ação”, ferido à bala em uma emboscada das forças de repressão; ela, filha de um operário comunista, a enfermeira encarregada de seu pronto restabelecimento físico. Filme contundente e de final inesperado.

Em ZUZU ANGEL, presenciamos a destemida luta da  grande estilista de moda, interpretada no filme por Patrícia Pillar, em busca  do filho Stuart Angel Jones, líder estudantil brutalmente assassinado em quartel da aeronáutica, no Rio de Janeiro.  Através dos desfiles que promovia, tanto no Brasil quanto no exterior, Zuzu fez questão de manifestar sua indignação diante da triste situação em que vivia o país, apresentando as roupas com motivos militares. Insatisfeitos com as denúncias, os militares trataram, segundo falam, de eliminá-la. Filme produzido para emocionar e guardar como reflexão.

Outros títulos que merecem ser vistos, fechando essa despretensiosa relação cinema/ditadura, são O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS, filme poético de Cao Hamburger, que relata o sufoco da época pelo olhar puro de um adolescente forçado a viver com o avô materno devido a fuga dos pais para não serem presos. BATISMO DE SANGUE , inspirado em livro homônimo de Frei Betto adaptado para a telona por Helvécio Ratton, cuja história resgata a participação dos dominicanos  na luta armada ajudando o grupo guerrilheiro de Carlos Marighella. Dos mais recentes, destacaria ainda BARRA 68, de Vladimir Carvalho; JANGO, de Sílvio Tendler; O DIA QUE DUROU 21 ANOS, de Camilo Tavares; ARAGUAYA – A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO, de Ronaldo Duque; EM BUSCA DE IARA, de Flávio Frederico, sobre o cerco e morte da companheira de Lamarca; e, por fim, MARIGUELLA, filme dirigido por Wagner Moura e adaptado do livro de Mário Magalhães, a estrear nacionalmente no dia 20 de novembro deste ano, data comemorativa do Dia da Consciência Negra.