And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve,
And like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dream are made on; and our little life
Is rounded with a sleep. (…)

(Prospero em The Tempest, Act Four Scene I, W. Shakespeare) *

Era véspera de ano novo e uma saia branca ia me arrastando pela areia úmida, antes que os fogos anunciassem a virada. Só queria o cantar das ondas para esquecer as tormentas. Minha mente pedia e merecia uma pausa para revitalização. E tudo que ouvi das pessoas naquela noite e nos dias que se seguiram foi planos e metas. Tudo medido, negociado, dividido em parcelas a vencer. Então, de repente, me baixou aquele santo provocador e me fez lembrar que as melhores coisas da minha vida aconteceram completamente por acaso. Ou será que não?

O engraçado é que tenho gosto por planejamento, devo confessar. Aliás, não sei se realmente gosto ou se meu gosto foi moldado para isso ao longo dos anos. Apesar dos jeans desbotados e dos cabelos em desalinho não quebrei regras importantes na adolescência. Curto até hoje uma saudade do que poderia ter sido. Aos dezoito anos o projeto de vida estava desenhado. Apagou-se em um sopro do acaso. Por um curto tempo vivi um sonho coletivo. Entre tormentas, o que chamam realidade me abriu espaço para calmarias.

Todavia tenho também um gosto especial por sonhos. Mesmo aqueles que se embalam em tormentas. Muito antes de ser desgastada e rodeada de clichês, essa palavra já dormia a meu lado e me acordava no meio da noite para alimentar o tal gosto por planos. É ela que, às vezes, me leva a crer que somos o que pensamos. Às vezes quero acreditar que meus pensamentos são mais que reações cerebrais, e que talvez até se envolvam na causa dessas para me presentearem com percepções exclusivamente minhas.

Bom, voltando às tormentas. Foi no meio de uma delas que a vida me ofereceu a chance de realizar um sonho antigo. Como náufraga, que precisava abandonar um velho navio, cheguei a Stratford-Upon-Avon em um julho distante, em meio ao World Shakespeare Festival, o que me permitiu ver algumas montagens da Royal Shakespeare Company. The Tempest foi uma das escolhas acertadas. Aparência versus realidade no centro de um palco com cenário marcado apenas pela iluminação. Um duelo de imaginação impulsionado pela eloquência dos atores bem treinados e a sonoridade de uma língua que não era minha, deixando meus neurônios em polvorosa. E quem sabe, provocando novos sonhos em um processo inverso. Das reações neurais ao pensamento. Do pensamento ao sonho. Do sonho à ação: um novo plano. Consegui repetir no ano seguinte, mas isto é assunto para outra história.

Por enquanto a memória vem para me dizer que as tormentas não se resolvem por magia. Há que serem contornadas a braçadas, transformando o processo da travessia em aprendizado como humanos que somos. Foi o que ouvi do bardo quando a festa acabou e as personagens se derreteram no ar. Há que se colocar essa energia em movimento por pensamentos, sonhos e novos planos E o acaso? A vida segue o movimento. Ou será que não?

 

* (…). E tal como
O grosseiro substrato desta vista,
As torres que se elevam para as nuvens,
Os palácios altivos, as igrejas
Majestosas, o próprio globo imenso,
Com tudo o que contém, hão de sumir-se,
Como se deu com essa visão tênue,
Sem deixarem vestígio. Somos feitos
Da matéria dos sonhos; nossa vida
Pequenina é cercada pelo sono.  

(tradução de Carlos Alberto Nunes)

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)