Wellington Soares
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Uma mulher admirável

 

Como flashes, as cenas vêm à memória num supetão, de repente, não mais que de repente, como diria o poeta Vinicius de Moraes. Data: 2009. Evento: Salão do Livro do Piauí. Edição: 7ª. Local: Complexo Cultural Praça Pedro II. Ano: Alvina Gameiro, escritora oeirense nascida em 1917. Objetivo: resgatá-la do esquecimento literário e afetivo. Convidados: Argemiro e Gutemberg Gameiro, filhos da homenageada que abriram a vasta programação do Salipi. Numa das poltronas do Theatro 4 de Setembro, lotado de professores e alunos, ouvi com atenção suas falas, não perdendo nenhum detalhe. Saudade e amor foram a tônica das exposições, bom destacar, a ponto de emocionar os presentes, inclusive o autor dessas mal traçadas linhas. Que ela foi uma artista multifacetada, tendo enveredado, quebrando tabus, pelos caminhos da escrita (poesia e ficção) e das artes plásticas (pintura), atividades que a tornaram uma mulher à frente de seu tempo; Que abraçou também o magistério, trabalhando como professora em instituições do Piauí, Ceará e Maranhão; Que era filha de Vitória Fernandes e Antônio Pedro, o pai funileiro português de muito prestígio na época, morador de Teresina por 30 anos e amigo de intelectuais (Higino Cunha, Martins Napoleão, Esmaragdo de Freitas e Celso Pinheiro); Que casou com o engenheiro Argemiro Gameiro, nascendo da relação três filhos, eles dois e mais a Elizabeth; Que publicou alguns livros, entre os quais Chico Vaqueiro no Meu Piauí (1971), Curral de Serras (1980) e O Vale das Açucenas (1963); Que embora tenha morado fora – Fortaleza, São Luís, Los Angeles e Brasília –, a mãe nunca esqueceu sua terra natal, sendo o Piauí não apenas referência estética, mas, segundo a própria Alvina, “o doce lenitivo para remir saudades e conservar-me viva e conformada na distância”; Que ela pesquisou muito pra construir sua obra literária, sobretudo, o repertório linguístico das pessoas comuns do sertão piauiense a fim de dar verossimilhança às personagens criadas; Que Alvina Gameiro teve a obra reconhecida em vida, daí ter sido eleita membro da Academia Piauiense de Letras (APL), Cadeira 14, a partir dali se incorporando à Casa de Lucídio Freitas; Que ela foi uma mulher sensível, feminista, inteligente, mãe dedicada, esposa amorosa, amiga compreensível e artista talentosa; Que a mãe, enfim, a dona Alvina Fernandes Gameiro, encantou-se aos 82 anos, em Brasília, no ano de 1999; Que antes de encerrarem, nada mais oportuno que ler um trecho de Curral de Serras, tomando o livro um deles e mandando ver: “Num átimo, reentei o cabra e em antes dele brandir o punhal, eu prendia o pulso do braço, adonde os dedos apertavam a arma; atravancava minha outra mão por debaixo da queixada dele, focando quanto podia um sojigado p’ra trás; passei rasteira depressa e estalei o homem no chão. Que já tinha deferido chave de braço e jogado o punhal na distância. Obrei no bruto de zás-trás, em tanto gasto de força, que parti o braço do homem. Ele, de papo p’r’o ar, me passou tranca de rins pela frente, querendo, desesperado, segurar meu ombro com a mão esquerda, com tenção d’alcançar minha garganta, mas finquei cotovelada no músculo da coxa do valentão e soquei o homem de costas umas três vezes na terra”, levando o outro também, pra reafirmar o conhecimento da obra da mãe, a recitar alguns versos de Chico Vaqueiro do Meu Piauí, obra na qual celebra o homem simples e as belezas naturais de sua terra natal: “O esplendor do luar, que mais e mais fulgura,/ de prata banha inteira a máscula figura,/ tão imóvel que até nos lembra uma escultura/ de guerreiro lendário ou místico profeta…/ É que o Vaqueiro escuta em meio à noite quieta,/ sua alma que se dá a cantares de poeta…”, e mais não precisaram dizer, Argemiro e Gutemberg, pois estávamos mais que satisfeitos dos escritos e feitos de Alvina Gameiro ao longo da vida bem vivida e a serviço do magistério e da arte, merecendo de todos nós aplausos e eterna admiração, ou, parafraseando Torquato Neto, nosso “Anjo torto”, louvando quem bem merece – lembremos sempre dessa sábia lição –, deixamos o ruim de lado. Não é mesmo?

Cinema nacional II

Com o governo federal ao lado, dando todo apoio, o cinema nacional já enfrenta muitas dificuldades, imagina tendo um governo que ameaça cortar verbas e censurar os filmes a serem produzidos. Sem falar de acabar também com a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, órgão responsável em fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica nacional. Em outros países, ao contrário do nosso, os presidentes não só apoiam como veem o cinema na difusão de seus valores culturais e econômicos. Os Estados Unidos são, desde longas datas, bons exemplos dessa estratégia política. Infelizmente, nossas autoridades no Brasil, além de não terem essa visão, ignoram o cinema nacional, preferindo, tomados ainda pelo complexo de vira-lata, os filmes de fora, sobretudo, os hollywoodianos.

Acredite ou não, gosto bastante dos filmes brasileiros, curtindo-os sempre que possível, notadamente nos finais de semana e feriados. Da chamada “retomada” até os dias presentes, o salto de qualidade impressiona nos aspectos de roteiro, fotografia, imagem, elenco e som. Daí não compreender a implicância das pessoas em relação ao nosso cinema, quase sempre taxado de pobre e rotulado de ruim. Opinião emitida, quase sempre, sem conhecimento de causa, sem terem visto sequer produções celebradas dentro e fora do país, tais como O palhaçoFaroeste cabocloEstômagoO signo da cidadeBatismo de sangueLavoura arcaicaNão por acasoBesouro, O filme da minha vida e O animal cordial.

Fora esses sugiro também mais três, todos de tirar o fôlego, daqueles que impactam a gente do começo ao fim da película. Comecemos por Entre nós, um suspense dirigido por Paulo Morelli (e seu filho, Pedro Morelli) centrado na história de alguns jovens que voltam a se encontrar, na mesma casa de campo, a fim de lerem as cartas enterradas há dez anos. Além da crueldade do tempo, eles agora têm que conviver com a morte de um dos membros da trupe e, mais doloroso ainda, encararem segredos e verdades ditos numa época marcada pela ingenuidade de sentimentos. A trama gira em torno de temas importantes dessa faixa etária: amor, sexo, traição, amizade e fracasso. Tudo vivenciado de forma intensa e franca, sem medo de ferir suscetibilidades. Quem sabe assim, mesmo tendo que suportar o mundo nos ombros, a galera aprenda que sonhos podem virar tragédias pessoais. Lançado em 2014, o filme ganhou vários prêmios. Merecem destaque a fotografia, a trilha sonora e o elenco do filme, especialmente Caio Blat (Felipe) e Martha Nowill (Drica).

O segundo é O lobo atrás da porta, uma fábula de horror centrada nos absurdos de um triângulo amoroso, que tem início com o desaparecimento de uma criança. Quando os pais vão à delegacia dar queixa, a verdade não custa a aparecer: crime passional. A desbocada Rita (Leandra Leal) havia sequestrado a criança para chantagear o impulsivo Bernardo (Milhem Cortaz), casado com Sylvia, mulher serena e de gestos tranquilos. Tomados em separado, os depoimentos do trio registram uma teia de mentiras, amor, vingança e ciúmes. A partir das versões e álibis apresentados, flashbacks ilustram pontos de vista distintos, mostrando versões contraditórias e a fragilidade de cada um deles. Bom é ver a metamorfose dos três ao longo da história, de personagens inofensivas a figuras diabólicas, irreconhecíveis ao revelarem do que são capazes para alcançar seus objetivos. O filme recebeu prêmios importantíssimos nos festivais de Toronto (Seleção Oficial), San Sebastian (Melhor Filme), Havana (Melhor Opera Prima) e Rio (Melhor Filme e Melhor Atriz).

Fecho a lista com Feliz Natal, filme dirigido por Selton Mello abordando o drama  da solidão e dos desencontros pessoais. As feridas estouram quando Caio (Leonardo Medeiros) resolve passar o Natal com a família, depois de anos ausente e sem dar notícias. A recepção não é das melhores. Além do mal-estar causado, ele é recebido friamente por todos, exceto por Mércia (Darlene Glória), a mãe que sempre o amou e metida com bebidas e psicotrópicos. Do pai (Lúcio Mauro), que vive atualmente com mulher de caráter duvidoso, não recebe um cumprimento sequer. Como não bastasse, seu irmão Theo (Paulo Guarnieri) sofre com o casamento em crise, apesar de ter uma amante. No fundo, a presença de Caio altera não somente a vida dos outros, mas a sua própria na eterna busca de identidade. Filme denso e perturbador, daqueles que nos levam a refletir sobre um monte de coisas, sobretudo, a respeito dos paradoxos da vida.

Corre, corre

Quando cheguei a São Paulo, não conseguia respirar. Atribuí a fumaça dos carros, ao tempo sempre seco, a poeira que levanta quando ando, desatenta, dentro de uma construção. Não era nada disso – ou, quem sabe, era, também. Eu, você, e aquelas pessoas que lotam as sessões de ioga, desaprendemos, todos, a respirar.

É deprimente pensar que a pressa do mundo e, dentro dela, nossa particular ganância, fizeram a gente fazer errado a única coisa fundamental para se viver. Respirar, sob o aspecto fisiológico, é apenas um entra e sai de vento por alguns dos sete buracos da nossa cabeça. Tão simples quanto subestimado – talvez porque presumimos saber desde que nascemos. E, no entanto, se tivéssemos a consciência, quando bebês esquisitos expulsos do ventre da mãe, de que a dor de estrear os pulmões zerinhos é muito inferior a não conseguir preenche-los de ar, abriríamos menos o berreiro.

O fato é que com ou sem choro chegamos aqui – e aqui já parece um lugar longe demais para se lembrar um dia de como tudo foi antes. Sinto o tempo passar no cabelo que cresce, na coluna que começa a doer, na figura de meu pai mais magro na fotografia, no infinito da espera dentro de um elevador. Não sou eu que estou envelhecendo, são meus sonhos que correram mais rápido do que sou capaz de alcançar.

Não quero ser alguém que anda veloz e cruza a rua ignorando o sinal fechado, tão absoluto e certo de uma compaixão oposta a rapidez da pressa. Leva tempo para ser humano. Aliás, o meu tempo não é o dos homens. Só o troco por coisas muito preciosas como conversa fiada, dedicatória de livro, disco com faixa arranhada.

“A vida pra você é uma coisa sem sentido?”, perguntaram-me há tantos dias e eu respondo somente agora: muito pelo contrário. Há um profundo sentido para estarmos aqui, às três da tarde, do outro lado do lugar de onde viemos, compartilhando a existência e o café. Você pode me achar maluca e tem até certo interesse pelas coisas que eu digo – boa parte pela estranheza delas – mas seus olhos denunciam certa falta de esforço pra compreendê-las.

Me recuso a naturalizar o corpo embrulhado no chão que, pela sequência de dias, já faz parte da paisagem ordinária e feia. Por trás da manta velha e desbotada – pelo tempo – há alguém tentando se ajustar a nossa lógica cruel e perversa de aceleração – alguém cujo tempo é só uma questão de faz sol ou vamos morrer, na rua, de frio. Tropeço e sinto e julgo aqueles que passam dormentes – sabendo que é só uma questão de tempo para que eu esteja lamentavelmente igual.

Resistir será sempre o mais difícil e a própria história mostra que a teimosia não foi arma capaz de deter a imposição do tempo. Não parece muito inteligente hoje ser alguém que escreve cartas, que espera para ir à banca, na manhã seguinte, ler aquilo que aconteceu ontem – e ontem já é muito longe – na capa dos jornais. Por outro lado, se o que tem a me oferecer como opção esperta é uma corrida maluca, sem fulga para os delírios, sem folga pro desequilíbrio, sem tempo para o café: passo. Sou forte, sou por acaso. E o meu tempo para.

 

Ser Professor carismático: dom transcendental ou construção humana?

Por Georgina Quaresma Lustosa

 

A imagem inicial de um professor carismático, mestre na transmissão de conhecimento e valores, ligada ao caráter sacerdotal da profissão, surgida na Idade Média, percebia a profissão docente como missão que pressupunha uma vocação que se traduzia num dom transcendental. Neste espaço, é importante abrir parênteses para entender melhor a concepção do professor carismático que ficou na história. Carisma vem do grego chàrisma que deriva da chàris, que significa “Gracia”. Na mitologia grega, chàris eram as deusas da felicidade e da beleza. Conforme o entendimento de Serres, em A lenda dos anjos (1986), e Bulfinch, em O livro de ouro da mitologia: historias dos deuses e heróis (2002), associava-se a essas deusas tudo o que promovia encantamento, brilho e satisfação.

Dizemos, por conseguinte, que dar graças é deixar o mundo protegido, abençoado. Uma pessoa que tem graça é alguém que deixa o mundo melhor, é alguém que enche o mundo de graças.  Contudo, é com Max Weber, em Economia e Sociedade (1991), que a palavra carisma se difundiu pelo mundo e, desde então, passou a ser identificada por qualidades como prestígio, magnetismo, influência, capacidade de persuasão, motivação e saber criar consenso entre as pessoas. Na base da palavra carisma, implícita de ética e reciprocidade, o que importa é inspirar a si mesmo e aos outros a construir um nós, esquecendo o eu individual tão presente na atual cultura pós-moderna.

Diante do sentido etimológico da palavra carisma, sobressai a compreensão de que o professor deveria conservar o poder das deusas gregas da felicidade e da beleza, promovendo encantamento, brilho e satisfação em suas atividades docentes, enchendo o mundo de graças e inspirando a construção do encontro do eu com o nós, na busca do ser e do tornar-se professor. E nesta dança do devir e da magia do encantamento, da necessidade de um se completar com o outro, transita o ser humano desafiado pelo cotidiano de viver e tentar se fazer feliz, a si e aos outros.

Assim, seria interessante que o professor mantivesse o carisma acompanhado da magia, do encantamento, do brilho e da satisfação no encontro de suas aulas. Encontro que na compreensão do Deleuze de Logica del sentido (1994) “é uma experiência intensiva com afetamentos, que pode suscitar uma manifestação derivada, um afeto, a produção de um sentido para essa experiência: uma ficção com realidade”. Pensar na vivência da aula, no exercício que extrapola a ideia de transmissão de conhecimentos, embarcando nos campos da educação e da subjetividade, é produzir a noção de aula como encontro de afetamentos e criação. Aí, sim, conservaríamos o encantamento, a magia, a sabedoria e o prazer estético do encontro.

A imagem inicial do professor carismático, que traz consigo uma imagem transcendental do ofício de ensinar, foi substituída pela imagem do professor tecnicamente competente ou especialista na gestão dos conhecimentos. Não obstante, assistimos, hoje, como afirma Boavida, em Filosofia – do ser e do ensinar (1991), “a indiferença generalizada em relação a quase tudo o que diga respeito a valores de vida e formas transcendentes que impliquem um homem essencial”. Realmente, os tempos mudaram e deixaram de ser propícios a formas de transcendência.

Lembramos que as funções desempenhadas pelos professores ao longo da história, as concepções de educação e os modos de ser professor sempre estiveram ligados a um intrincado jogo de relações sociais. Mas as sociedades foram definindo seus contornos, traçando limites, construindo, em cada época, um sistema de formação por meio de relações diversas e complexas, num processo que abriga contradições, rupturas e continuidades. É importante ressaltar que, enquanto o ideário da profissão docente esteve fundado na concepção de que ser professor era um dom natural, como menciona Cardoso, em Formação de professores: mapeando alguns modos de ser professor ensinado por meio do discurso científico-pedagógico (2003), as disciplinas pedagógicas dos cursos de formação de professores não priorizaram o ensinar a ser e a tornar-se professor.

Por muito tempo o discurso científico-educacional esteve fundado na ideia de que se nascia professor, ou seja, o dom prescindia do caráter formativo. Registramos que, com o surgimento das críticas a essa forma de pensar a docência e com a valorização do preparo técnico-político da formação, o discurso começa a explicitar a ideia de identidade profissional docente como construção.

Hoje, temos consciência e conhecimento de que a identidade humana e profissional não é algo natural, imutável, pronta e concluída. A identidade é construção que se dá passo a passo, é uma construção diária, de trabalho e de vida que nunca pode ser dissociada de um projeto maior e coletivo. A identidade é um processo de construção do sujeito historicamente situado. Assim, vai sendo construída com as experiências e a história pessoal, no coletivo e na sociedade. Como expressa Moita, em Percursos de formação e de trans-formação (2007), “a identidade pessoal é um sistema de múltiplas identidades e encontra a sua riqueza na organização e dinâmica dessa diversidade”.

A identidade profissional é uma construção que se opera a partir da significação social da profissão; uma construção que se efetiva a partir do olhar constante dos significados sociais, associadas a práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Nesta vertente, acompanhamos a compreensão de Pimenta, expressa em Formação de professores: identidade e saberes da docência (2000), de que a identidade profissional é construída pelo significado que cada professor, enquanto ator/autor confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida do seu ser professor.

Compreendemos, assim, que criar e fortalecer a identidade é ser cada um de nós e dos muitos outros que nos compõem, tendo em vista ser a identidade “(…) um sistema de múltiplas identidades”, todas ao mesmo tempo convivendo, colaborando, competindo, somando, crescendo e se multiplicando, originando-se de outras categorias da interdisciplinaridade como a parceria, a espera, a coerência, o gesto, o respeito, o olhar, a ação. Este sistema de múltiplas identidades é uma construção permanente permeada por todas as demais dimensões que nos fazem ser gente e ser professor.

O sol da meia-noite

 

Dei para vagar em busca de luz. É o que me ocorre quando escurece aqui dentro. Lembrei que em uma dessas andanças, há algum tempo, reencontrei uma entrevista concedida por Oscar Niemeyer, em que ele comentava o projeto da Catedral de Brasília, lançado em 1958 e executado na década seguinte.

Dizia o arquiteto que a ideia inicial partiu do desejo de criar um símbolo de alegria e celebração da vida, tirando proveito da luz natural e da leveza da estrutura em forma circular. Um contraponto às colunas pesadas e pouca luminosidade das catedrais medievais, templos de penitência – o sofrimento para redenção de pecados.  Uma ideia provocante que me retornou, de repente, em uma tarde fria no norte da Inglaterra, em uma sala de cinema em que se exibia Philomena (Stephen Frears, 2013).

Baseado em fatos, o filme é uma tradução do livro The Lost Child of Philomena Lee, do jornalista britânico Martin Sixsmith (2009), que narra a saga de uma mãe irlandesa em busca do filho perdido. A tragicidade das histórias reais é sempre um caminho para bons resultados na construção de narrativas fílmicas, quando estas conseguem se desviar de pontos escorregadios como a morosidade do ritmo. Frears segue a fórmula da alternância de tempos, humor na medida certa e um final surpreendente para diluir a densidade do tema e o meio século que transcorre entre início e fim da trama (1951-2005), despertando no espectador o desejo de ver a última cena.

Foi exatamente essa cena que me trouxe o pensamento de Niemeyer. Embora o filme não tenha optado por esse caminho como estrutura narrativa, a jornada da mãe e a jornada do filho se desenrolam paralelamente em busca de um mesmo fim que não se realiza. No meio delas há uma instituição religiosa que se coloca como detentora de valores morais e do poder sagrado de punir a não observância deles. Imprime-se aos dois personagens uma intensa carga de sofrimento. Pecado e punição. Para ela, o pecado da sexualidade sem o sacramento religioso e como punição a perda do filho, gerado pelo pecado, entregue para adoção. Para ele, o pecado da homossexualidade e como punição a morte por AIDS, sem direito à realização de seu último desejo.

A estreiteza de algumas mentes viu no filme um ataque à Igreja Católica. Bobagem, uma vez que o princípio do sofrimento como mecanismo de redenção não é privilégio exclusivo desse grupo religioso. Tampouco a disseminação do conceito de erro ou pecado, ao qual a protagonista se submete sem conflitos interiores, a ponto de devolver à Instituição o que dela não recebeu: o perdão. Talvez se possa, com boa vontade, vislumbrar na obra como um todo um fio que nos conduza ao questionamento sobre a quem cabe a autoridade para preconizar valores, a que propósitos se empenham tais valores, e por que nos submetemos a eles cegamente.

O que me resta, então, nesse emaranhado de pensamentos que se cruzam em tardes escuras, é a compreensão de que se há ainda tempo para a esperança ela nos toca pelo belo, pelo prazer, pela alegria. A luz pode nos chegar pelos traços curvos da arte. Só ela nos faculta a possibilidade de desvio no olhar viciado na inflexibilidade das retas.