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A toalha de Tereza

Por José Vanderlei Carneiro

“O prazer do texto é esse momento em que meu corpo

vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem

as mesmas ideias que eu.” – Roland Barthes.

O que me faz sentir? Uma narração, uma descrição, … uma poética? Uma percepção antropológica do feminino? Uma didática biocêntrica de ensino? Ou simplesmente um texto, uma toalha, uma tela, um tecido para a mesa do jantar, uma renda sobre o altar, uma peça de pano para acariciar os corpos, … um toque pequeno de sensibilidade no ritual único dos humanos que é o Encontro; um instante em que posso soltar meu grito em silêncio: eu estou aqui!

Para sentir é preciso mobilizar os sonhos, os desejos, as feridas, os traumas, as histórias de vida. Sem encantamento e sem angústia profunda não teremos acesso ao transcendente. Eu posso! Eu sinto!

Eu que não sou afeito a nenhuma filiação ideológica, escola filosófica, movimento literário, corrente de pensamento erudito… mergulho por deleite nas entranhas do texto, do toile. Deixo-me embriagar pela sua boniteza móvel, lisa, leve, delicada, receptiva, acolhedora; fios mágicos, tímidos, férteis, dançantes; provocando os corpos a feitiçarias, pois educa o olhar, afaga a alma, desperta o físico ao que pensar; tudo simbólico, real, existencial… Eu existo!

Parafraseando o filósofo, a toalha nos dá o que falar. A fala surge da provocação do sentir, do caminho, do diálogo, da vida, das narrativas sobre a vida ou a vida que é exatamente o que narramos. Isso é precisamente uma dialética do amor. “Necessitamos de um ato mágico, de um exorcismo”, de uma experiência de amor, de um movimento de tornar-se e de aprender-se a ser o que somos. Somos capazes de nos abrir ao inesperado, de gostar de aprender, de gostar de ter prazer em ensinar, de gostar de amar o conhecimento… toda razão só deve ser levada a sério se estiver molhada de prazer. Para sentir é preciso mobilizar os sonhos, os desejos, as feridas, os traumas, as histórias de vida. Sem encantamento e sem angústia profunda não teremos acesso ao transcendente. Eu posso! Eu sinto!

Estou necessitado de arte. Arte de ver e de perceber a beleza na simplicidade das coisas, nas surpresas do cotidiano, nos incômodos da realidade, nas relações e nas miopias dos sistemas de controle dos sentidos.

Estou necessitado de arte. Arte de ver e de perceber a beleza na simplicidade das coisas, nas surpresas do cotidiano, nos incômodos da realidade, nas relações e nas miopias dos sistemas de controle dos sentidos. Preciso ver os sentidos nas curvas dos voos da vida e dos livros: “Olhar para além da superfície com olhar de fazer amor com o mundo”. Mas também arte de ouvir: “saber ouvir é a arte de saber fazer silêncio”, de “acordar os ouvidos…”, “de escutar os sons do mundo, os sons da alma”. Preciso de uma escuta sensível que rompe com toda e qualquer metodologia anti-humanista, pois abre-se a roda para compartilhar os saberes diversos, falas de lugares diferentes, de pessoas com marcas simbólicas salientes e com propósitos múltiplos.

Ver e ouvir textos, tecidos, são formas poéticas de evoluir o conhecimento como música e dança, como leitura e aprendizagem que se traduzem como ato político e consciência humanizada. Sou pertencente originariamente do “líquido amniótico” e depois das formações cósmicas (natureza, espécies, seres outros) e ainda pertencente ao outro e outro.

Também arte de ouvir: “saber ouvir é a arte de saber fazer silêncio”, de “acordar os ouvidos…”, “de escutar os sons do mundo, os sons da alma”. Preciso de uma escuta sensível que rompe com toda e qualquer metodologia anti-humanista.

Com efeito, a toalha de Tereza me conduz para uma elaboração dos nossos afetos, dos nossos vínculos originários: o cuidado, o respeito e a presença amorosa – vínculos universais. Preciso acordar deste sono e despertar os sonhos que fortalecem os nossos laços inspiradores da convivência: a justiça e a paz. Pois, como escreve Leonardo Boff, existe “Brasas sob cinzas”. O exercício que me resta é soprar o tempo, suavemente, para desvendar a beleza da vida. Do ventre eu sou, assim, minha tarefa é deixar que a pulsão da vida me provoque a imaginação. “… Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas. Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, um mundo livre aos poemas”.

Em suma, estou pronto para começar este texto: no primeiro dia ela chega com um sorriso espontâneo, com uma tolha litúrgica e um jarro de flores, prepara a sala, coloca um livro sobre a mesa, que não abre, não neste dia, e nos convida ao Encontro…

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José Vanderlei Carneiro é doutor em Linguística pela Universidade Federal do Ceará – UFC e tem pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do Vale dos Sinos – UNISINOS. É professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Piauí (PPGFIL/UFPI).  

 

 

A poesia e um gole de cerveja

“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção”. De cara, o primeiro verso de Coração Selvagem, canção do cantor e compositor cearense Antônio Carlos Belchior, dá o tom da coisa toda. Trata-se de um verdadeiro mestre da intertextualidade. Nascido em Sobral, Ceará, no ano de 1946, Belchior é dono de uma das mais belas obras da Música Popular Brasileira. Abandonou o curso de Medicina, residiu em um convento de freis capuchinhos, dedicou-se às artes plásticas e introduziu como poucos os elementos da literatura em suas composições, até sumir dos palcos e dos holofotes em seus últimos anos de vida, dedicando-se à tradução da Divina Comédia, de Dante Alighieri.

De Edgar Allan Poe a Caetano Veloso, a obra do autor de Como nossos pais tem poesia de fio a pavio. Há denúncia da complexidade da vida urbana em todas as partes, e lampejos de saudade da pacata vida rural. Belchior se utilizou dos meios oferecidos pela indústria fonográfica se safando, principalmente nos primeiros álbuns, das exigências mercadológicas. A lista de poetas citados por ele vai de Gonçalves Dias e sua Canção do exílio, mencionada na música Retórica sentimental, do álbum Era uma vez um homem e o seu tempo, passando pelo poeta espanhol Federico García Lorca, na canção Conheço o meu lugar, até chegar a Bob Dylan (o estilo trovador de Dylan), Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa.

A lista é longa. Belchior flertou com o cinema, com o teatro e com diversas manifestações culturais. No álbum Melodrama (1987) ele faz um verdadeiro desfile de grandes nomes como Jean-Jacques Rousseau, Pablo Picasso, Marcel Duchamp, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire. E o que dizer do poema Ouvir estrelas, do poeta parnasiano Olavo Bilac? (Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/Eu vos direi no entanto/Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/Eu canto). De maneira direta, Belchior toma de empréstimo o título da obra mais famosa do filósofo Erasmo de Roterdã (Elogio da Loucura, de 1988).

Como ele bem diz quando se comunica com o manifesto antropófago de Oswald de Andrade, “eu sou um antropófago urbano/Um canibal delicado na selva da cidade/Mais dia, menos dia… eu como você”. Na sua bela canção, A palo seco, é nítida a referência ao poeta João Cabral de Melo Neto.

Ficam aqui minhas lembranças das incontáveis vezes em que sai em meu carro pela BR-343, aparentemente solitário, mas apenas “aparentemente”, diga-se de passagem, já que o imaginário musical, poético e social de Belchior jamais me abandou, mesmo quando eu tive medo de “abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão”.

E tudo isso por causa de uma lição singular que o mestre me ensinou: “Eu quero corpo./Tenho pressa de viver”.

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Nathan Sousa é poeta, ficcionista e dramaturgo.

Paulo Leminski, leitor do sertão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“Não há mais tempo. O tempo acabou.”

Paulo Leminski

Manoel Ricardo de Lima, que assina a coluna trabalhos no subsolo, propõe numa série de 5 textos, uma releitura do trabalho e do pensamento selvagem do poeta Paulo Leminski [1944-1989] no ano em que se completam 35 anos de sua morte. A série parte da ideia de um Paulo Leminski, leitor. O texto que abre a série é Paulo Leminski, leitor do sertão.

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Agora, em 2024, completam-se 35 anos da morte de Paulo Leminski, morto em 07 de junho de 1989. Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras que só piora a cada ano, um malogro imaginado por Machado de Assis que, irônico e propositalmente e para rir de nós no inferno, nos legou esse deboche definitivo, a última de suas negativas –, é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, de todos os modos, nomear poeta. Como Ismael, o contador das histórias do leviatã, poeta não é quem diz “chamo-me”, mas quem imagina um espectro que vem do chão, sem metafísica, dizendo “chamam-me”. E que, mesmo assim, ouvindo o chamado, diz não, o tempo inteiro.

3 anos antes de morrer, em 1986, num seminário organizado por Adauto Novaes, através da Funarte, no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Curitiba, “Os sentidos da paixão”, ele participa com uma conversa deliberada, Poesia: a paixão da linguagem, retomando, essencialmente, o que apresentara como proposição em dois textos daquele mesmo ano: “sertões anti-euclidianos” e “grande ser, tão veredas”. O mais interessante é que faz uso de pequenos comentários ao que, natural e ordinariamente, se conhece como “prosa” para falar do que, também ordinária e naturalmente, imagina-se como “poesia”. Mas o ponto de insurgência aí nem é essa relação precária já levada a cabo tantas vezes, prosa/poesia, mas sim uma imaginação laceradora do pensamento que se lança através das figurações do sertão, como experiência, o que Leminski não parece ter tido – senão através do biografema que faz do corpo preto, esquálido e morto de Cruz e Sousa num vagão de trem entre cavalos –, e, depois, como imagem rarefeita, o mais perto possível de uma imaginação revolucionária ao ler esses livros impensados.

Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras – é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, nomear poeta.

Ao mesmo tempo, Leminski, este muito bom leitor do sertão sabia que é impossível tocar esses dois personagens-escritores tão díspares e esses livros também tão díspares, Os sertões, de Euclides da Cunha, 1900; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, 1956; sem tocar num ponto do que afirma em direção a um si mesmo que advém daquilo que lia e, muito mais, de como lia aquilo que lia: “o pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser um pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão [pela linguagem].” Daí que nos lembre, muitas vezes, o quanto Glauber Rocha é um exemplo que persegue como exímio leitor do sertão, não só porque devorou os livros de José de Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e, numa outra ponta, de Guimarães Rosa, mas porque, principalmente, para ler este último, escreveu ele mesmo um romance, o genial Riverão Sussuarana, publicado em 1978, numa convocação do  Bloom, de James Joyce, e de um Riobaldo amalgamado em êxtase com Diadorim. A figura de Glauber, do pensamento de Glauber, é uma constatação efusiva de uma materialidade imanente da paixão, porque Leminski insiste na ideia de que o que está na moda é a palavra paixão, não a paixão.

A recuperação das ideias de que “nenhum livro / teve sobre a cultura brasileira letrada / o impacto de “os sertões” e de que se está diante de um “cordel de guerra / de um homero anônimo / onde a crueza das ideias e expressões / se expressa em bárbara ortografia” se expandem até o vórtice destrutivo, porque se aproxima do materialismo histórico sugerido pela anacronia heliotrópica de Walter Benjamin, de uma ancestralidade imprevista; para Leminski “dele descendem / “macunaíma” / “vidas secas” / “o tempo e o vento” / toda nossa prosa regionalista / até o sertão máximo / “grande sertão: veredas” / onde o gênio de guimarães rosa / dá ao sertão uma dimensão cósmica / num texto rico como os de Joyce / encerrando com chave de ouro / o ciclo mais fecundo da literatura brasileira.” Leminski o lê como se fosse um delicado haicai, A TERRA / O HOMEM / A LUTA, ou tal como o “abc de incredulidade”, texto popular recolhido por Euclides num de seus cadernos, e remonta o gesto de sua própria e incondicional formação zen-marxista-trótskista, ao nos lembrar que a literatura, se imaginada para um impossível, poderia penetrar as massas ou quiçá uma classe popular como força social, o que é muito próximo do que Benjamin também sugeriu como “utopia irrecusável”.

O gesto de leitura de Paulo Leminski é tão inespecífico e movediço que contraria a si mesmo ao dizer que entende que “os textos mais subversivos” de Rosa estão reunidos em Primeiras estórias, “com toda a sorte de violações em relação aos sinais de trânsito da linguagem, não só da linguagem literária mas até da linguagem enquanto veículo de comunicação entre os falantes da língua portuguesa.” Daí que afirme também que se o grande romance de um ocidente suposto tiver sido escrito em basco, ele não há; e que escrever em português e ficar calado, “mundialmente falando”, dá no mesmo: “é mais que basco, mas é muito menos que o espanhol”. E que se há “um caráter jagunçal” na literatura de Rosa é, exatamente, porque ele vibra numa aposta entre a forma e o conteúdo para a construção de um terceiro, “uma força da língua”, quando o escritor não é algoz nem vítima da língua, mas aquele que se lança à escritura com todos os movimentos do corpo em direção à paixão pela língua, pelas línguas. E projeta categórico que Rosa “jagunceia [a língua] por precisão”, tanto que os seus textos vertidos para o alemão, inglês, francês ou italiano perdem, exatamente, diz ele, “o caráter jagunçal da linguagem”. O que acontece com Joseph Conrad, o polaco Józef Korzeniówski, que vai da Polônia para a Inglaterra e, segundo ele, “se britaniza” para tentar gritar na língua do capitalismo colonizador mais violento do século 20. Conrad que, por sua vez, muito bem lido por Belchior, genial cantor das coisas do porão e de um sertão condenatório e outro exímio leitor de Euclides, Rosa e Glauber, aparece com força na canção Coração selvagem e num truque final de uma sobreposição de línguas que todo sertanejo inventa: “Meu bem, meu bem, meu bem / Que outros cantores chamam baby”.

Leminski se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. No meio disso não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, o que produz a inexistência de tantos outros, muitas vezes mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes.

Jacques Derrida, no seu mínimo e denso Paixões, texto de 1993, diz que amar alguma coisa na literatura é amar um lugar do segredo, algo como “não há paixão sem segredo, este segredo, mas não há segredo sem paixão. Em lugar do segredo: aí, entretanto, onde tudo está dito e o resto nada mais é senão o resto, nem mesmo literatura.” A ideia de que a literatura previa, como sentido e paixão da linguagem, DIZER TUDO, DIZER A TUDO, quando ela é uma paixão sem martírio, para Leminski, já era. Termina na farda, numa conformação, no uniforme, este mesmo que alguns dizedores do sertão, como João Cabral, de família escravocrata, senhora de engenhos, e Guimarães Rosa, mesmo que tenha optado pela vida entre vaqueiros, não tenham conseguido recusar, porque diante da mercadoria nada se recusa, ela é mais rápida, indômita, violenta, legalizadora e legisladora, anula e encerra toda e qualquer paixão. E aí, nem adianta, segundo Leminski, entrar no universo dos José Lins do Rêgo ou das Rachel de Queiroz, esta última uma legítima apoiadora do golpe militar de 1964; nos sobrariam apenas os livros fortes e as tomadas de posição de Graciliano Ramos até o cárcere e depois, liberto, abandonado pela polícia aos trapos e farrafos na esquina do Largo dos Leões com rua Alfredo Chaves, no Humaitá, Rio de Janeiro, porque era o único nome de rua que lembrava e conseguia dizer sem parar. Ironicamente, o endereço da casa de Dona Naná e José Lins.

Um direito da literatura à morte, sem fuga e sem tempo, é que faria do escritor, o poeta, alguém tomado de coragem e fascinado pelo perigo. Mas “os tempos estão difíceis”, diz Leminski, e o poeta já era, acabou. No seu caso, se não tinha a experiência convicta do sertão, a que só é se com o corpo lançado ao espaço como deriva e vulto, justamente como a empenha o poeta, estudioso das coisas da terra e leitor diferido de Rosa, Carlos Augusto Lima, ao menos não foi um signatário efêmero como Mário de Andrade que, na sua travessia pelo Nordeste e pelo Norte, registra risonho um lapso que diz tudo: “Esqueci do Piauí!” E isso está tão posto e imposto que, por exemplo, até os dias de hoje, “não há” nenhuma literatura brasileira produzida nos anos 1970 que não tenha sido escrita apenas entre a praia de Ipanema e a instituição “esses poetas”. A denúncia ao “mal contado” é de que “boa parte da nossa ficção é contabilidade”, de que “o mal é de família” e de que “comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latino-americana parece uma literatura que enlouqueceu”. Por isso, Leminski declara que “a última grande fábula brasileira é a de Grande sertão: veredas, […] de lá pra cá nossos ficcionistas se debatem entre naturalismo e a máquina fotográfica.” E é este pequeno “de lá pra cá” que demonstra a ideia imposta de “acarinhar o leitor” e da “forma de sucesso garantida” também numa poesia que é mera “prosa empilhada em versinhos, como está cheio o Brasil”.

Numa mesma modulação, sempre se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. E isto numa disposição para remover o imutável: “analfabetismo, alto custo do livro, falta de bibliotecas públicas, falta de preparo, de educação do gosto, de interesse e de procura” e “é a transformação em mercadoria que dá à obra de arte a ilusão de ser ‘livre’.” No meio disso, dessa anestesia, não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, especificamente, o que provoca e produz a inexistência de tantos e tantos outros, muitas vezes muito mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes, sem compromissos com uma agenda da hora ou com um vocabulário usual e mímico e nenhuma invenção imaginativa. Não há mais nada que não seja do plano do capital e da violência do que o capital determina em sua dimensão indômita, até – repare-se a ironia – no que deve ou não ser censurado, porque sempre é para tudo apenas o que está à vista imposto por essa mesma violência.

O projeto de leitura do sertão proposto por Paulo Leminski é, por vezes, maravilhosamente anárquico, anarquivista e selvagem; sem uniforme, completamente informe, porque ou se implica hermeticamente o corpo ferido e alegre num contágio com a terra ou é só novela das 7. E isso tem a ver com aquilo que Herberto Helder, que imaginava um Rimbaud impossível porque só seria o que é se for um discípulo ancestral de Godard, chamava de “gramática profunda”, e essa gramática é o princípio e o precipício do que se lê como política e gesto para a composição heliotrópica de uma comunidade: “a transformação mais insignificante de todas”. No entanto, Leminski, corajoso e subversivo como sempre, provocava naqueles idos de 1986: “qual a linguagem que não se escreve? qual é a linguagem em que a poesia nunca chega?” e “não há mais lugar para a paixão, porque a paixão é o desejo projetado para a frente. Não há mais nada lá na frente, apenas o apocalipse. Não há mais frente.” Acertou na mosca.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

A rebeldia ainda pulsa

Minha foto com Fonseca Neto e Osmar Júnior, publicada no Facebook e Instagram, repercutiu nas redes sociais. Pelo menos, em nível local e entre a velha guarda, se assim podemos chamar, do movimento estudantil na Universidade Federal do Piauí. A ponto do Oscar de Barros, jornalista tarimbado, sugerir que eu desenvolvesse um pouco mais, a título de contextualização, esse encontro histórico.

Três ex-presidentes do DCE da UFPI: ao centro, Fonseca Neto (Travessia – 1979/1980); à direita na foto, Osmar Júnior (Nossa Voz -1981/1982); e à esquerda, Wellington Soares (Espinho -1982/1983).

Primeiro, lembro que ele ocorreu por acaso, no último dia 4, na comemoração antecipada do aniversário do Wellington Dias, nosso estimado “índio”, hoje ministro do Desenvolvimento Social e ex-governador do estado. Mais precisamente, na quadra do Centro da Juventude Santa Cabrini, bairro Vila Irmã Dulce, zona sul de Teresina, espaço socioeducativo que atende crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade.

Depois, devo dizer que é sempre um prazer reencontrar amigos queridos que, até aqui, mantêm a chama da rebeldia e o espírito de luta por um Brasil democrático. Nossos encontros, aliás, remontam a mais de quatro décadas. Datam do comecinho dos anos 1980, quando lutávamos pelo fim da ditadura militar, tendo como palco o campus da UFPI, onde fomos dirigentes do Diretório Central dos Estudantes. Sem falar ainda, óbvio, da luta por uma universidade pública, de qualidade e gratuita.

Nossos encontros remontam a mais de quatro décadas. Datam do comecinho dos anos 1980, quando lutávamos pelo fim da ditadura militar, tendo como palco o campus da UFPI, onde fomos dirigentes do DCE.

Para tanto, precisávamos de um DCE livre e combativo, uma vez que o existente era atrelado à reitoria. Logo, a serviço dos milicos e sem interesse nessas pautas. O Congresso de Reconstrução da UNE em 1979, na Bahia, do qual participamos, foi decisivo para a retomada das lutas estudantis pelo país. Inspirados na figura heroica de Honestino Guimarães, presidente da entidade assassinado pelos “homi”, os pelegos foram enxotados para felicidade geral de nossos universitários.

Quem iniciou a peleja libertária na UFPI foi o destemido Fonseca Neto com o movimento Travessia (1979/1980), reunindo um grupo de companheiros e companheiras movido pelo desejo de transformação. Dando continuidade à luta, veio a gestão Nossa Voz (1981/1982), liderada pelo intrépido Osmar Júnior, estudante de engenharia. A chapa Espinho (1982/1983), encabeçada por mim, surgiu em seguida, não parando mais nossa utopia por uma educação emancipadora.

Sensação reconfortante é ver os “baderneiros” de ontem, como nos tachavam os reacionários da época, dando nossa contribuição profissional, cada um à sua maneira, ao engrandecimento da sociedade brasileira. No aspecto político, Osmar Júnior foi, entre nós, quem alçou voo mais alto – elegendo-se vereador, deputado e vice-governador do Estado. Por outro lado, Fonseca Neto destaca-se como historiador, professor, membro da APL e um dos intelectuais mais respeitados dentro e fora do Piauí. Quanto a este aprendiz de quase tudo, coube embriagar-se de cultura, organizando feiras e saraus literários; de amor pelo magistério de literatura e língua portuguesa, levando a “galera” ao ensino superior; e, não bastasse, publicando livros à mão-cheia.

Que encontros como esse possam ocorrer, de preferência numa mesa de bar, com mais assiduidade. A fim de celebrar a amizade, acalentar as utopias, festejar a eleição do Lula e pensar estratégias para combater o fascismo bolsonarista, inclusive dentro da UFPI. Porque, de uma coisa estejam certos: em nosso coração ainda pulsa rebeldia, indignação, vida, amor e vontade de mudar o mundo.

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Wellington Soares é professor e escritor.

 

 

 

Rhaina Ellery: o rancor e um enorme buquê de questões

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Viver… viver é assim, aturdir-se?

Aqui se batalha e aqui não se para.” 

João Antônio

Numa entrevista para Michal Ben-Naftali, 2004, Jacques Derrida, o africano, em torno de ideias e conceitos como amor, lei, direito, justiça etc., e impressionado com o tamanho da primeira pergunta, começa dizendo à sua amiga: “Trata-se de um enorme buquê de questões.” É no impasse da individuação que, a partir da psicanálise, delibera um pensamento ao que imagina como desconstrução nas figuras de um eu, o sujeito, a pessoa, e comenta que somos vários, divisíveis. Argumenta que o que se aprende aí é que somos sempre já divisíveis, várias pessoas, imagens, imago. E, com força, nos lembra que não podemos ser o que se chama um indivíduo, exatamente porque este é o indivisível. Atesta que “Não somos indivisíveis” e que esse enunciado tem numerosas consequências: divididos, contraditórios, ainda mais se estamos no lugar de tantos e diferentes, se estamos dispostos ao lugar de UM OUTRO.

A modulação se constitui de um instante ao instante seguinte, desse modo impõe-se o juramento:  se preciso jurar que amanhã ainda amarei alguém é porque é possível que isso mude; se não, nem precisaria jurar. Ora, o amor é ambivalente, só seria puro o amor de Deus, e isto não há, está à salvo somente no NOME, ou seja, naquilo que inventamos como proteção. Nos protegemos contra a divisibilidade para não virarmos pó. Apelamos para deus, deuses, elementos místicos, ao nome do pai, da mãe, ao nome próprio e, ainda, a uma suposta formação com história. Fernando Pessoa levou tudo isso a cabo, apagar-se / diluir-se / desmanchar-se, com mais de 100 heterônimos para desmontar qualquer sentido precário de um EU que não treme. Apresenta, em desassossego, a responsabilidade política de um pensamento que treme, porque o corpo e o solo tremem diante de uma tomada de posição a UM OUTRO, como UM OUTRO, entre silêncio e segredo, e isto porque é sempre o outro, o inacessível, quem dita a Lei.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo na lengalenga. Mas não guardo rancor desfaz a brisa morna que, saída de regiões mais pobres, como o Nordeste, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta.

Assim, nessa cosmogonia excessiva e tensa entre o que se engendra como um EU e um OUTRO, quando tudo aparece como descompasso e descontrole, contradição e, principalmente, divisibilidade, é que se pode tentar cumprir os jogos das mulheres que são personagens do primeiro e impressionante livro de Rhaina Ellery [Fortaleza, 1980], um romance: Mas não guardo rancor [Patuá, 2023]. Uma narradora que se dissolve nela mesma e, ao mesmo tempo, na mãe e em tantos nomes e corpos de outras mulheres: Carmem, Martina, Tonia, Dona Áurea, Olympia, Otto. Em princípio, o que se reinventa no texto de Rhaina é a retomada de algo que está na composição de uma comunidade de mulheres desabitadas, mas em luta, como aparece no genial A rainha do ignoto, 1889, escrito pela também cearense Emília Freitas. Livro esquecido, deixado de lado, porque é sempre mais fácil manter as coisas tal como estão, eis o sentido da catástrofe. Tiago Coutinho, professor na UFCA, em Juazeiro do Norte,  nos lembra em sua tese de doutoramento [PPGMS, UNIRIO, 2019] que é Iracema, a vítima do estupro do colonizador português, quem de fato pode reescrever uma outra história de uma fundação cultural brasileira e, assim, de “nossa” literatura.

Rhaina Ellery | Foto: Camila Chaves

Porém, na outra ponta, a monocultura da mercadoria sugere um só padrão de  literatura, a da impostura, que se desenha numa cartografia plana e sistêmica, ou seja, ordenação do mapa: um meta-modelo que tem apenas uma face e que se resume a mesura, controle e poder porque não admite alternativas. E, dessa maneira, se limita a tecer arengas sem nenhum jogo de laceração da linguagem, mera linha de montagem, praticamente reza vazia. É a ladainha do que agrada ou desagrada a um circuito sem vórtice, ou seja, sem margem para escapar de si mesma, sem utopia, sem forças renovadas. Salomé e seu capricho ao pedir a cabeça de Batista, aquele que dá nome às coisas, ou seja, o poeta, num prato. O corte da garganta é o corte da linguagem para sacrificar o corpo vivo e indicar que a Terra é apenas uma cabeça [sem corpo, logo sem desejo] lançada à tabula rasa da história.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo nessa lengalenga; é uma interrupção, um abismo, um esgotamento. Mas não guardo rancor é intenso, denso, reflexivo, inespecífico, carne e sangue, e desfaz essa brisa morna e desenxabida que, numa linha de fuga saída de regiões mais pobres, como o Nordeste brasileiro, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo todos os ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta, quente, apresenta a vida no que ela tem de mais forte, porque inconclusa, quando qualquer poder que a persegue se dilui, quando a vida ainda é uma existência. E é assim que a narradora começa com um cinema acefálico ou, no mínimo, de cabeça pra baixo, quando quem nos sonha é o tempo inteiro UM OUTRO: “Tenho poderes. Ressuscitei minha mãe quando preenchi seu útero vazio. Nosso cordão era elástico: esticava até o limite do rompimento e voltava à forma natural machucando quem segurava suas pontas. Enquanto as cinzas dos anos me queimavam, íamos nos desfazendo, silenciosamente ansiosas: por quem arderia primeiro. Como aconteceu? Ateei fogo. Mamãe me encarava em chamas.”

O relato da narradora se passa em Curitiba, e enquanto ela se debate com a garatuja de uma cidade inoperante, própria ao afastamento e programada como exemplar para um falseado ajuste social, há também a habilidade de leitora que Rhaina é e que comparece o tempo todo em seu texto para mover as personagens por linhas sinuosas, oscilantes, esfolando o sentido da interlocução: “Já que vou contar tudo pra você, não me interrompa.”; e indicando que toda e qualquer individuação não é ainda e nem será depois: “Curitiba é uma boa cidade para morar: a mais verde da América Latina, potência econômica, uma capital organizada, planejada, racional. Sem contar que não precisamos conviver com ninguém: Curitiba é a cidade dos solitários. Minha infância? Uma merda.”

Mas não guardo rancor é um livro intenso e adversativo, atente-se aí à conjunção do título, problema do mundo e, mais ainda, quando todo o relato se passa durante a frase que abre o primeiro o capítulo – “Não conheci o filho da puta que fodeu minha mãe, mas não guardo rancor, é só modo de dizer.” Este recurso singular remete diretamente ao Agora é que são elas, de Paulo Leminski, 1986, quando todo o romance dura o tempo de uma pergunta mínima, cigarro na boca: “Tem fogo?”. É o rancor que se desfigura, que mata e morre, numa série instantânea de fotogramas que, em movimento, provocam a ilusão de que o tempo se move, princípio da física, desvinculação matemática, experiência-limite sem insinuação de esperança. As imagens lançadas ao léu no que é dito pela narradora são uma espécie de revisão, imagens recuperadas, para que sejam vistas de novo e de novo, por ela, numa projeção para frente através de um regresso no tempo e, também, das lembranças delirantes que provocam essas imagens a um futuro anterior.

Entre as personagens não há piedade nem penitência, não há perdão nem vítimas, todas são algozes de si mesmas e de todas as outras. E isto é uma expansão que só pode ser provocada por quem carrega consigo uma biblioteca impertinente, caso de Rhaina Ellery, que indica a contingência do quanto escrever não tem importância alguma. Por isso, na lata, é impossível não lembrar de João Antônio e seu conto informe Abraçado ao meu rancor [1986]: “Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao meu rancor” e “Não tripudie, pois, que este viver nesta cidade é tão ruim, que as pessoas trabalham continuamente até para esquecer que vivem nela.” E um trecho dos mais contundentes e bonitos do livro de Rhaina: “Na minha rua, tinha uma cabeleireira que atendia a todos fiado. O corte era péssimo, assim como tudo que é de graça. Diziam que era generosa nos cortes porque cobrava caríssimo pelos programas que fazia no Passeio Público. Graças a eles, pôde redesenhar seu sexo. Antes da operação era triste, ficou menos triste depois da xereca modelada, mas teve que se contentar em ser somente cabeleireira. Depois da cirurgia, perdeu todos os clientes do pau. Sua freguesia assídua era composta de maridos dispostos a gastar o olho da cara para serem penetrados por uma mulher. Ela retirou aquilo que mais os atraia: seu disfarce. […] Ela estava livre para ser quem quisesse, mas perdeu pau, dinheiro, amantes e a esperança de ser plenamente feliz.”

Por fim, é Beatriz Pôssa, exímia leitora e pesquisadora de João Antônio, entre os cinemas de Julio Bressane e de Ozualdo Candeias, quem afirma que “a construção das figuras de João Antônio se dão num terreno lamacento de recuperação com uma sensibilidade ímpar, não a ‘solidão menos doença nervosa’ como sintoma burguês da neurose, mas muito mais reflexo de uma angústia incomunicável sentida por todo o corpo.” Rhaina Ellery carrega isso por todo o seu livro em cada personagem, angústia incomunicável em todo o corpo, e a prerrogativa desejante de que “olhar é com todo o corpo”. Está-se diante de uma escritora em letras minúsculas, porque leva a ideia de escrever às últimas lascas de impressão da literatura que imagina cumprir como responsabilidade política: primeiro, um enorme buquê de questões; depois, quando essa responsabilidade é um pensamento que treme, quando corpo e solo tremem ao tomar-se posição para UM OUTRO, como UM OUTRO, silêncio e segredo.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.