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Uma hipótese pitoresca que conjuga evolução, comunidade e clitóris

                                                                                                                                            por Nayara Barros

 

Os cientistas, assim, no masculino, encontram-se em estado de descabelamento. Tudo por conta de uma parte aparentemente ínfima do corpo da fêmea humana, mais conhecida como: mulher. Eles simplesmente não conseguem encaixar o clitóris na teoria da evolução. Tsc. Tadinhos. Suspeito que estão olhando para o lado errado da teoria. 

Uma partezinha tão maravilhosamente prazerosa, quase instantaneamente prazerosa, com todas essas suas milhares de terminações nervosas que (ui) a gente sabe bem o poder que tem, não poderia ser lida num paradigma evolutivo de violência. Se querem considerar a relação macho-fêmea-reprodução, sugiro que admitam que os machos tiveram que apelar para esse botão mágico de forma não violenta. O que não parece nada absurdo, se você abandona a idéia mítica “filoscientífica” original de que nascemos sozinhos e temos que devastar e submeter a natureza selvagem. Não. Nascemos de alguém, que se encontrou com outro alguém, provavelmente com uma comunidade ao redor, o que exige mais relações cordiais do que violência para se sustentar. Isso porque o bebê humano é o mamífero que mais dá trabalho de criar em termos de anos e de falta de recursos biológicos para se defender.  

Então, caros cientistas, joguem fora essa ideia de que todos os encontros macho-fêmea primitivos foram violentos. Aí talvez surja uma luz, a partir da qual vocês entenderão como o clítoris foi o caminho mágico de preservação da espécie e da fêmea, a partir do prazer (isso!) dela. Os machos que descobriram o botão mágico tiveram mais chances de ter muito mais relações sexuais do que aquele idiota que a atacou violentamente (com o risco de matar uma mãe em potencial, ser precioso para a manutenção da espécie, vejam só). De quebra as fêmeas, que já sabiam do botão mágico em seus corpos e que só não comentavam muito a respeito, tiveram um parceiro para descobrir outros pontos mágicos de seu próprio corpo. Ou uma parceira. 

Fim da hipótese do clitóris. 

Ps. Provavelmente alguma mulher cientista já havia pensado nisso, mas como devem ter praticado gaslighting nela, a pobre não conseguiu ir em frente com sua ótima idéia. E toda a humanidade perdeu com isso

 

Encrenca-dança-pensamento

Por Rafael Franco

 

À primeira vista, o “The Trouble Maker Series” nos leva a tantos lugares que é difícil falar algo do que pensei quatro semanas depois. Mas teoricamente poderia pensar que tal arte contemporânea se enquadra na função de crescimento tratado por Botton e Armstrong em Arte como terapia (2014), onde a afetação primeira é de estranhamento – que pode ser visto negativamente ou visto simplesmente como algo novo, uma nova experiência que pode levar a novos lugares de pensamentos e sensações.

A primeira fase de reflexão é “o buraco”. E hoje, o pensamento imediato quando me vem o termo é o “cu”, e a motivação disso é uma piada imediata do inconsciente que talvez Freud explique: penso eu que o cu aqui aparece na função de protesto da arte (que é basicamente, a função de crescimento de Botton e Armstrong), função essa usada cada vez mais raramente, enquanto que o “cu” é um tema cada vez mais abrangente (cuelindo.com.br). Penso também que, no Brasil, por ser a parte mais estranha ao corpo, acaba virando um tabu – que é onde a arte deve ir. “Cu” também vem do nu que é marca da arte do Marcelo.

Mas não é desse buraco que trata Deleuze especificamente, é um buraco a nível mais amplo – sobre o que não se visualiza com facilidade; é o novo que está ainda invisível… São as teorias não teorizadas; é sobre os lugares onde não se chegou; sobre os movimentos nunca efetuados; é a energia escura, a antimatéria; são os buracos de possibilidades do queijo suíço; é sobre as possibilidades de vida ainda não preenchidas.

As cenas que me captaram tinham essa marca de afetação forte e também a originalidade: um brasileiro homossexual se expressando/dançando/interpretando ao som da cena da morte da mãe de Bambi, com dublagem no português de Portugal, que soa engraçado aos brasileiros; e justamente por causa da “graça” dos “viados” – piada tão bem comum a muitos brasileiros –, essa cena particularmente me marcou pela tensão social e abandono que vivem os homossexuais… Um humor negro que varia no Brasil entre homofobia, por vezes homicida, e chacotas das mais variadas, desde os pequenos grupos de cultura hétero-normativa à grande mídia televisiva – a homossexualidade como piada, o “cu” como algo “engraçado”.

Outra cena de força, um branco europeu interpretando o famoso discurso de Martin Luther King “I Have a Dream”… E de uma outra cena ligada a esta última: Marcelo dançando “eu sou terrível”, e daqui me surgiu o porquê do título do espetáculo – eis “o encrenqueiro”!

Saí do primeiro dia pensando em todas as possibilidades de vida que ainda não foram experimentadas, em todas as relações sociais não explicadas e, principalmente, nos lugares em que a filosofia não chega, mas a arte sim. Na contemporaneidade a arte surge como que abrindo o caminho para filosofia (diz ela: – venham por aqui).

No último dia de espetáculo, a filosofia tendo seu lugar definido, veio a pergunta sobre o lugar da dança… Primeiro pensamento é a necessidade de movimento embutida na alma humana – é essa necessidade que faz do Brasil um país tão aprazível, e da Anita um ídolo, levando a outra função da arte que Botton e Armstrong define por esperança: a busca de uma alegria de viver. O movimento me veio como um estado de mutação constante do corpo que leva a um estado de mutação também da alma… Entre as danças da Anita, o balé clássico e o “The Trouble Maker”, este último surge como a dança mais próxima da filosofia – “The Trouble Maker” é um espetáculo de dança-exercício de pensamento.

Pensamentos sobre “Trouble Maker Series Teresina”, no primeiro e último dias de quatro compartilhamentos públicos no Campo. Coreografia, filosofia e a invenção da maldade na mesma mesa, por Marcelo Evelin e Jonas Schnor.

 

Sobre dança e gravidez – para quem diz que anjos não dançam!

Por José Vanderlei Carneiro

Escrevo como “…malhas para captar o incognoscível”, como diz o poeta da terceira margem do rio. Ideias sem direção, objetos soltos, uma quase matéria, uma quase não escrita, algum resto espalhado no corpo antes do pensamento – antes de tudo, como tudo é depois do pensar. Uma filosofia que surge do imperceptível, da ágape falível, do sêmen fluido e móvel. Quando não existe mais nem o brilho do alto, nem a lei do coração; quando não existe nem fora nem dentro, somente espanto – surge daí a possibilidade da caça e do delírio, provocando alguma coisa de invenção como dança e gravidez. Assim, como diria o velho Zaratustra do filósofo: Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar”.

Já ouvimos falar da velha ou do jovem que arranca o filósofo do conforto da casa e ele passa a andar como se voasse ao céu, sempre de olhar fixo para o alto, até tomar um tombo e cair no buraco. Tales de Mileto despenca seu corpo ao desequilíbrio – corpo rígido se torna corpo caído, quebrado, contorcido, tremido, puro êxtase. Na filosofia, como no texto sagrado, corpo caído é solicitude que se curva a si mesmo e ao outro. É o trágico da queda que produz no corpo efeitos de ternura e de dor. Eles se dobram num movimento desordenado de gozo e espanto: eis uma filosofia sem fundo como fundamento! Dos buracos do pensamento, dos poros cheios e úmidos de imaginação, dos objetos no lugar que encontram, dos sons desconcertantes nos olhares embriagados, provocando o universo a dançar. Desconstrução e magia – salta dos confins do mundo: Salomão do texto bíblico; Terpsícora, a nona filha de Zeus; Hadra, com o som dos tambores e palmas; Shiva Natarava, uma mistura de criação e destruição; e o Encrenqueiro, o inventor de maldades… para quem diz que anjos não dançam!

Essa vivência rompe com as lógicas, as morais e os conceitos. Os anjos dançam e engravidam, pois essa é sua função primordial. Conforme diz o poeta, foi o Anjo que engravidou uma virgem pela palavra mediada pelo sonho. Os anjos engravidantes dançam com os sonhos das pessoas, produzem utopias de liberdade, desejam a traição de toda ordem, dão coragem aos corpos enfraquecidos a lançar-se no palco da vida! Tudo é exercício de criação de significantes, de invenção do desconhecido, de brincar, de pular, de gritar, de respirar e inspirar, de silenciar sobre seu corpo próprio. Não é necessário adereços, enfeites e badulaques; somente o movimento livre e dissimétrico engravidam as pessoas de sonhos. E é exatamente a experiência da gravidez, anterior ao parto do filósofo, que lança/dança o corpo para a mudança. Salta ao pensamento filosófico a rebeldia e a transformação dos objetos do mundo.

Não existe cortina de fumaça, mesmo que tenha fumaça e cortina, na compreensão de dança e gravidez que estamos experimentando. Dança aqui não é produto, encomenda ou arranjo; não tem ensaio, controle ou farda; não é instrumento de algum aparelho de manipulação, doutrina ou ensinamento; estamos escrevendo sobre vivências do espírito; expressão da imaginação, feitiço da percepção. Gravidez aqui não é ato de alienação, apatia ou preguiça mental; não é espera escatológica, direcionamento religioso ou estupidez; não é inconsequência de consciência, imaginação idílica. Gravidez é metáfora de transformação profunda, sonho de coisa nova, expressão de grandeza da alma.

É sobre isso que o processo de criação “The Trouble Maker Series” tem a ver. Um diálogo entre filosofia e sua outra expressão de criação – a dança ou uma conversa entre a dança e sua outra expressão de reflexão – a filosofia. Um pensar radical, no qual o fundamento da raiz não tem fundo, é puro rizoma, dançando sobre as águas, como fios descontínuos, intermitentes e desconexos. Uma provocação metafórica sobre imaginação e desejo; movimento e sonho; criação e sentido. Os anjos também dançam, senhores!

 

 

Filosofia Dança!?

Por José Elielton de Sousa

 

Onde acaba uma coisa e começa outra? Qual o ponto de interseção entre dois universos? São os buracos que nos permitem transitar por entre realidades distintas? Determinar os limites da experiência humana parece um grande problema, senão ao menos uma arbitrariedade de certo campo sobre outro. O que diz um corpo dançando? O que não conseguimos perceber? Qual o sentido de um movimento quebrado? É possível captar tudo no conceito, como queria o filósofo alemão Hegel? Ou a vida mesma sempre nos escapa por alguma rachadura? Não seria propriamente certos objetos, atitudes, relações, disposições, certa estética do efêmero, aquilo que é próprio de uma filosofia viva, de uma vivência artística, como nos lembra acertadamente o filósofo, sociólogo e psicanalista brasileiro Daniel Lins? Não parece que existe mesmo uma instância primordial onde todos os olhares se entrecruzam e os limites se dissipam? Filosofia, ciência, arte, dança….

Não seria o corpo, em certo sentido, essa instância a partir da qual algumas fendas se abrem? Não estaria aqui os limites de certas filosofias que se ocupam justamente da eternidade (da alma, do conceito, da verdade)? Não seria a fragilidade do corpo, sua finitude, suas desmedidas, seus desequilíbrios, seus buracos, suas percepções afetivas, matéria para filosofia? E o conceito, o unidimensional, o movimento acabado, a constância, o entendimento, os limites da dança? A “bela forma” da dança, sua harmonia e perfeição, mata seu caráter perscrutador – a dança só é uma pergunta quando não faz sentido! Uma coreografia pronta é uma filosofia menos potente!

Se é na efemeridade, na fragilidade, no descontínuo, nas fendas, nos buracos, que filosofia e dança se tocam, o trouble maker-inventor-da-maldade-daimon não parece ser justamente aquilo que traz à tona nossos abismos internos? Nossos buracos existenciais? Nossos fragmentos infantis? Os arquétipos que nos determinam? Amor fati: nada desejar além daquilo que é – eis a bela provocação nietzschiana que a vida nos convida a experimentar. Ao invés da falta de sentido da existência, do medo de olhar o abismo, do apego desesperado ao conceito abstrato e desprovido de conteúdo, da barbárie que invade a porta, que tal uma dança?

Essa parece ser a provocação que o processo de criação “The Trouble Maker Series”, do coreógrafo piauiense Marcelo Evelin/Demolition Incorporada em pesquisa com o filósofo dinamarquês Jonas Schnor, nos convida a experimentar. Filosofia Dança: palco aberto ao imperceptível, à efemeridade das relações e dos sentidos, momento de edificação de significados silenciosos e de verdades corpóreas. Coreógrafo como filósofo – dança como interrogação!

 

 

Será que não sou capaz de amar?

por Ananda Sampaio

Será que não sou capaz de amar? Essa é a pergunta que me faço quando olho para ela. A outra, presa do lado de lá do espelho. Chego do trabalho, corro para o banheiro, faço xixi, tiro a roupa e quando me distraio lá está ela, em pelos, também surpresa quando cruza o olhar com o meu. O momento é solene. Viro de frente, miro na curvatura dos seios, no ventre e acho bonito demais esse corpo que é só raiz fincada à terra. Os movimentos ficam lentos. Especulativos.

A biologia do meu corpo é uma sinfonia de hormônios, por isso pouco harmônica – um leva e traz de sentimentos, sargaços, sangue. Estou quase na idade de Cristo… E a vontade de ser mãe ainda não chegou. Que ser apequenado eu sou diante da fertilidade de meu útero. Vivo satisfeita e ocupada nessa relação comigo mesma, presa a meu ego. Do outro lado da porta ninguém me espera, não há choro de bebê a me apressar e nem fome a ser morta. Estou só. Concedo-me um banho demorado com direito a reflexões de botequim enquanto lavo o cabelo. Ainda não estou pronta para deixar de ser filha. Estou presa à criança que fui, irremediavelmente. Imaturamente. Não quero disfarçar meu desconhecimento sobre tudo. Tampouco oferecer falsa proteção.

Nas festas de família há sempre alguém a perguntar a minha idade e há também quem me lembre da diminuição dos óvulos e da dificuldade de engravidar após os trinta e cinco. Mais uma vez a biologia a me atormentar, depois dos trinta e cinco dizem, incessantemente, que serei menos mulher. E pergunto silenciosamente, o que me tornarei então? Não sei, só sei que quero ter tempo para estragar nas madrugadas, como se a finitude de tudo não me doesse. E a consciência da beleza do instante presente fosse real em mim.

Fato é que nunca a tive, nunca senti a dor do parto. Contudo, ela está lá, segue atrás de mim, a criança. Me olha e calada observa meus movimentos, quase sempre vagos, no apartamento. Sinto-a até me tocar. Às vezes é o choro dela que me acorda no meio da noite. Não sei se chora de fome, não sei se chora de pavor. Contudo, ela está lá.

Sento, acendo um cigarro. Fumo sem pressa e sem medo. O gato se esfrega em minhas canelas e o desejo de me desdobrar em outro ser não chega. A campainha segue silenciosa. Ninguém bate à porta. A criança está ao meu lado agora, se aproxima de mim. E também olha pela janela e enxerga junto comigo todas as incertezas que pairam entre o céu e a terra. E juntas pensamos, como é pobre, meu Deus, a nossa vã filosofia