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O conceito de humanidade em tempos de pandemia

O conceito de humanidade em tempos de pandemia[1]

Por Nayara Barros de Sousa

Esses dias a noção de humanidade foi renovada. Não é todo dia que isso acontece. No dia a dia somos pouco coesos, tanto pela pluralidade como pela divergência. Uma historiadora que costumamos utilizar na especialização em direitos humanos Esperança Garcia (PI), chamada Lynn Hunt, defende a ideia de que a auto evidência (a obviedade, digamos) desses direitos foi algo construído com o tempo, às custas de um trabalho intenso do exercício de empatia e solidariedade, estimulado na esfera pública: mercados, cafés, ou qualquer local que as pessoas se reunissem para contar histórias e se condoer com as personagens delas, sendo reais ou não, sendo da sua classe social ou de outra, de seu gênero ou de outro, de sua raça e etnia ou outra- aí eu incluo até a fofoca de boa fé. O Rorty, que é um cara que eu estudei na filosofia, vai dizer que a humanidade não existe. A leitura que eu faço é que, nesse sentido, a humanidade não existe a não ser que você diga que grupo de humanos é esse- brasileiros ou chineses? Sempre achei um pouco pobre essa saída do Rorty. Não sendo a humanidade uma abstração permanente e distante, ela é, contudo, uma REALIDADE manifesta em nossa contiguidade como espécie. E eu invoco a pandemia do coronavírus como fundamento para essa afirmação. Se havia alguma dúvida de que havia uma humanidade entre todas e todos nós, o vírus veio tirá-la da frente. A característica da sua aleatoriedade, ainda que tomemos muitas precauções, exige que seja repensado a absurda continuidade da aplicação do neoliberalismo nas economias dos países: eu preciso salvaguardar a todos, já que não sei quem poderá ser atingido (um desconhecido, ou meu pai?). Basicamente um véu da ignorância de John Rawls, liberal que faz muita falta aos liberais do Brasil. Pensar cada ser humano como parte dessa humanidade nos ajuda a levar adiante iniciativas que mitigam os efeitos danosos dessa aleatoriedade da doença (que, contudo, afeta mais gravemente pessoas já debilitadas), como a renda básica universal, que está em vias de aprovação no congresso nacional, uma da poucas medidas de amplo alcance que estão sendo aplicadas. Infelizmente, o líder da nação e as pessoas que o seguem, não se reconhecem nessa noção de humanidade compartilhada. Acreditam pertencer a uma casta superior aos meros mortais, por isso não se protegem e ainda atrapalham quem tenta se proteger da pandemia. Acreditam-se inatingíveis. Eu suspeito que o COVID-19 não foi avisado a respeito dessa pretensa blindagem e vai continuar lendo “humanidade” escrito na testa deles. Muitos serão forçados a lembrar da nossa contiguidade como espécie. E não vai ser bonito.

Harmonia Rosales – Mulher vitruviana [uma outra humanidade é possível]

[1] Originalmente publicado no blog Diário criativo de um passarim azul

Só um desabafo

Por André Henrique M. V. de Oliveira

 

“Nossos castigos vêm de nossas virtudes” (Nietzsche, Aforismo 132, Para além do bem e do mal)

“Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar um monstro…” (Nietzsche, Aforismo 146, Para além do bem e do mal)

 

Durante muito tempo, enquanto a ciência perdurou como um discurso cuja autoridade teórica (não o autoritarismo, que é algo bem diferente) era respeitada, os pesquisadores que se dedicavam seriamente a determinada área gozavam de certo prestígio. Isso não os tornava imunes a erros (são humanos!), porém o rigor com o qual eles faziam suas pesquisas distinguia os resultados delas de meras “opiniões pessoais”, cabendo apenas ajustes a serem feitos para tornar suas teorias e concepções mais robustas.

Algumas pesquisas em psicologia indicam a existência de um comportamento chamado de “raciocínio motivado”. Dito de modo geral, tal comportamento diz respeito a como formulamos nossas crenças e raciocínios. Essas pesquisas indicam que nós somos propensos a chegar a conclusões que nós queremos chegar, mas tal propensão é limitada à nossa habilidade em construir justificativas aparentemente razoáveis para aquelas conclusões.

Ainda segundo essas pesquisas, há pelo menos dois tipos de raciocínios: os raciocínios orientados por metas de precisão e os raciocínios orientados por objetivos direcionais. No primeiro caso, tenta-se chegar à conclusão mais acurada, mais precisa possível, qualquer que seja ela, e para isso lançamos mão das crenças e estratégias mais apropriadas possíveis. Já no segundo caso, usamos as crenças e estratégias que mais provavelmente nos levarão às conclusões a que queremos chegar. No primeiro caso há um esforço cognitivo maior, na medida em que a busca por precisão exige maior atenção às variáveis relevantes (que podem ser muitas informações) e um maior aprofundamento na escolha da estratégia de abordagem dessas variáveis. Já no segundo caso, o esforço é buscar as evidências necessárias para construir uma conclusão que corresponda à conclusão previamente desejada, e para isso se cria uma ilusão de objetividade, baseada na seleção tendenciosa de informações que devem contribuir para a conclusão desejada. Nesse caso o sujeito não se dá conta que, se tivesse um alvo oposto a atingir, poderia coletar do mesmo modo informações que lhe levassem àquela outra conclusão. Não raro acontece de o sujeito ter de reconhecer conclusões indesejadas, quando são apresentadas a ele informações que ele não quis considerar.

Como que antecipando tal teoria, Schopenhauer considerava o intelecto humano como “’servo da vontade”. Assim, alguém pode me mostrar argumentos, razões, dados científicos etc. e mesmo assim eu posso não “querer” acreditar, tomando aquilo como mera “questão de opinião” pessoal, e contrapondo àqueles argumentos outros argumentos sem qualquer base teórica, como se toda e qualquer opinião no fundo “valesse igual” e tivesse de ser admitida publicamente. Mas, de onde vem essa “vontade-de-não-acreditar” em determinadas coisas?

Em Humano, demasiado humano, Nietzsche fala que “na base de toda crença está a sensação do agradável ou do doloroso em referência ao sujeito que sente” (§18), daí que tenhamos a tendência a rejeitar uma opinião quando ela nos é desagradável (§484). Digamos que essa proposição de Nietzsche não me agrade e eu não creia na verdade dela. Posso contradizê-la afirmando que um pessimista pode muito bem tender a acreditar no que ele mesmo repudia. Ok. Mesmo assim, terei que reconhecer que há um forte aspecto afetivo nas minhas crenças, “quer elas me agradem ou não”, pois o próprio “agradar” ou “desagradar” já denuncia esse fator afetivo de origem.

Roberto Damásio, neurologista português, afirma que “os níveis baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo”. Ou seja, parafraseando Pascal, o organismo tem razões (e valores) que a própria razão desconhece. Assim, a visão de mundo de cada um, isto é, o conjunto de nossas crenças (morais, estéticas, político-ideológicas etc.) possui uma raiz biológica, construída por fatores internos (genéticos) e por fatores externos (o meio no qual crescemos e estamos inseridos).

Portanto, os nossos valores, as nossas escolhas, as nossas preferências, as nossas prioridades, tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo, são resultado de um processo de aculturação do nosso organismo. O que nos agrada, ou desagrada pode servir como termômetro para medir aquele conjunto de crenças, valores e prioridades pelos quais guiamos nossas vidas e influenciamos o mundo político.

– Hipótese para a questão “de onde vem essa vontade-de-não-acreditar em determinadas coisas?”

O Brasil hoje está como na música de Enrique Santos Discépolo, traduzida por Raul Seixas: “hoje em dia dá no mesmo ser direito que traidor. Ignorante, sábio, besta, pretensioso, afanador. Tudo é igual, nada é melhor: é o mesmo um burro que um bom professor”. As ofensas desferidas aos cursos de ciências humanas e às universidades públicas em geral encontraram autorização em um símbolo. O machismo, o racismo e o preconceito contra nordestinos encontraram autorização no mesmo símbolo. As pessoas que nutrem esses sentimentos gostam de acreditar neles; lhes agrada terem tais sentimentos. Sem qualquer respeito, solidariedade, ponderação ou sensatez. Digo por experiência pessoal, muitos dos que nutrem tais sentimentos não valorizam o estudo e a ciência, e quando o valorizam usam o seu estudo para exigirem um pronome de tratamento (“Doutor”), para se sentirem superiores, e não porque valorizam o estudo e o conhecimento como um bem em si.

O “mito” dessas pessoas disse que iria “expulsar” médicos do país, e assim o fez com os médicos cubanos. Ao invés de notarem o absurdo dessa atitude, aquelas pessoas disseram: “vai pra Cuba!” O coronavírus veio e desmascarou muita gente, incapazes que são de reconhecer os próprios valores que desde antes da ascensão do “mito” eles vem cultivando: o preconceito, a falta de solidariedade com os mais vulneráveis socialmente, o cinismo e a dissimulação diante dos atos e falas absurdas e desrespeitosas de seu “mito”. Numa palavra, são dotados de uma arrogância burra.

Das pessoas com quem falei poucos tiveram a honradez de intervir ou pelo menos de se solidarizarem diante daquelas ofensas a que nós, estudantes, pesquisadores, professores, fomos submetidos. A maioria dos apoiadores do “mito” endossou o palavrório escarnecedor. Qual foi mesmo o candidato que pautou todo o seu discurso na afronta e na ofensa? Então, por que, agora, os que cegamente o defendem se sentem ofendidos quando são chamados de “gado”? É arrogância exigir respeito? Se for, sou arrogante, admito, desde que se reconheça a etimologia da palavra “arrogare”: tomar algo para si, ser exigente quanto a. E, de fato, precisamos exigir. Respeito!

Eles não querem crer que estão errados. E, de fato, eles não estão errados. Trata-se do caráter deles: dos valores, das crenças, dos desafetos que eles cultivam. Deve realmente ser difícil (ou agradável, caso seja alguém que homenageie torturadores) olhar para si mesmo e reconhecer: “eu sou assim mesmo e defendo uma postura fascista, homofóbica, machista, elitista etc.” Essa postura é a escolha e priorização de uma visão de mundo; a visão de mundo segundo a qual é melhor que pessoas pobres morram do que milionários fiquem um pouco menos milionários.

Mas, isso é só minha opinião. Prefiro a caridade à verdade.

Isolamento solidário

Por Gustavo Silvano Batista

 

A proliferação do vírus corona e, por consequência, da enfermidade Covid 19, exigiu da população mundial medidas cada vez mais radicais para a vida cotidiana, na tentativa de prevenir a disseminação da doença, de fácil contágio, letalidade ainda desconhecida e com os medicamentos ainda em teste. Uma dessas medidas é o isolamento das pessoas em suas próprias casas, como uma forma de evitar a propagação cada vez maior da doença.

Deste modo, estamos todos em casa, trabalhando remotamente, graças às tecnologias de comunicação e informação, cuidando de nossos próprios lares e evitando atividades que possibilitem o contágio. À medida que os dias passam, o protocolo de isolamento se torna cada vez mais custoso, especialmente pela impossibilidade de mobilidade, distanciamento dos familiares e amigos que vivem em outras cidades e países, criando uma situação que exige calma, paciência e muito cuidado.

Uma das alternativas para amenizar o isolamento é o contato via telefone ou mídias sociais com amigos e familiares. Ontem mesmo entrei em contato com um amigo, meu antigo orientador, Prof. Paulo Cesar Duque Estrada, buscando saber notícias suas e de sua família, como uma forma de aliviar o isolamento de alguém que mora sozinho. Graças ao WhatsApp, conversamos rapidamente e ele me falou de uma nova característica – basicamente hermenêutica – que se impõe neste momento: o isolamento solidário.

À princípio, pode parece um contrassenso, ou seja, a elaboração de uma noção que aproxima duas palavras opostas: isolamento, de um lado; e solidariedade, de outro. Contudo, tendo em vista o cenário incontrolável de contágio fácil de uma enfermidade ainda desconhecida, o isolamento parece uma medida simples e eficaz para atenuar a proliferação da doença. Mas não se trata apenas de isolar-se. Está em jogo algo a mais: é um isolamento comum, ou seja, um isolamento para todos. Neste sentido, algo muda: não se trata simplesmente de um isolamento voluntário, mas de um isolamento que prevê um bem comum. Como há um mal comum (Convid 19), a primeira medida também se dá de forma comum (o isolamento domiciliar).

Ainda nos anos 80, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer já se perguntava, no horizonte da vida social ocidental, acerca do que nós, parte deste mundo ocidental, ainda tínhamos em comum. Essa preocupação não dizia respeito somente a uma forma de considerar as diferenças, mas afirmar que as diferenças são possíveis porque há o comum. Muitas questões aparecem como elementos comuns, como, por exemplo, a crise ecológica. Mas, o que seria, de fato, esse comum? Segundo o filósofo, o comum é a consciência de algo em comum, que nos mobiliza a sermos solidários, ou seja, é o que provoca uma solidariedade mínima entre os sujeitos. É a compreensão de que algo do que faço parte precisa de minha contribuição, mas está para além de mim, ainda que precise de minha associação.

Neste sentido, nossa atual situação de quarentena, a meu ver, se enquadra perfeitamente na percepção do comum, mesmo que neste momento o comum seja uma doença pouco conhecida. Contudo, mesmo sendo uma situação complexa, há, especialmente por parte das comunidades e de suas organizações políticas, estados e municípios, uma proliferação de solidariedades, tendo em vista um problema comum. É o caso, por exemplo, da nossa relação com os itens básicos de sobrevivência, como alimentação e remédios. É uma oportunidade de pensar no outro que também precisa, entendendo as restrições impostas por supermercados e farmácias como uma forma de manter tais itens disponíveis a todos.

Considerando tal situação, poderíamos realmente entender o isolamento solidário como sendo uma atitude fundamental para o enfrentamento individual e comum de uma epidemia mundial, também comum a todos, compreendendo tal isolamento como uma forma genuína de solidariedade, sem a qual a vida saudável parece estar cada vez mais comprometida.

Deste modo, não me parece um contrassenso pensar no isolamento solidário. Se trata de uma prática que possibilita uma melhor compreensão de nosso engajamento na vida em comum, enquanto enfrentamento de situações do mundo da vida, que muitas vezes nos abala, nos atinge, espanta e não apenas nos alegra ou conforta.

Talvez o atual isolamento solidário nos provoque a pensar acerca das estranhezas do mundo comum, as situações inesperadas e fora do controle e também a necessidade de repensar e reconstruir este mesmo mundo comum, mesmo que seja de modo contínuo, pensando na coletividade da qual fazemos parte.

Só o amor salva

Por José Vanderlei Carneiro

 

Tempo dos tempos! O mundo precisa de oração, de transcendência e de espírito de reflexão. O calendário católico convida os cristãos, por quarenta dias, a interiorização e mudança de atitude, isto é, tempo quaresmal. É um período profundo de silêncio, de fé e de compaixão. A semana santa vem depois dessa experiência: revisão de vida. É tempo de conversão e de renovar os propósitos do coração. Tempo de preparar a alma para acolher o sentido maior do amor, que se realizou na opção radical da Graça Divina ao assumir a condição humana, de todos e de todas, preferencialmente dos mais pobres, redimidos pelo sangue do justo e pela dor dos deserdados do mundo. A comunidade cristã, neste período de reflexão vivencia o mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus e com Ele de todos os povos que teimam em continuar o projeto salvífico de Deus – “só o Amor Salva!”

Nossa tarefa, hoje, é atualizar este acontecimento de fé e de vida. Isto significa dizer que para além de celebrar o tríduo pascoal, é imprescindível compreender a beleza de Deus no mistério humano, passando da paixão ao amor. Esta ideia tem alimentado muitas experiências de homens e de mulheres comprometidos com a emancipação da vida. A paixão, morte e ressurreição de Jesus estão imanentes na constituição terrena do ser humano, no qual os homens e mulheres se irmanam com a dor e o gozo de todos os povos que passam pela realidade da cruz. A paixão de Jesus começa na sua encarnação, na experiência de sofrimento do pobre, na privação da dignidade e na possibilidade de estabelecer diálogo em liberdade.

O tempo é tecido de contradição, no qual o justo é transformado em vítima e o verdugo em juiz. Pois toda vez que uma instituição ou corporação de poder, seja ela política, econômica, ideológica ou eclesial usa de mecanismos para ludibriar, fere substancialmente o sentido originário da convivência planetária. Sem esse sentido desencadeia um processo de insegurança absoluta das pessoas, configurada na banalidade moral do político, da governança da república e do respeito aos direitos garantidos dos cidadãos.

O objetivo da Campanha da Fraternidade, deste ano, busca o sentido da vida como dom e compromisso, que se traduz nas relações de mútuo cuidado com as pessoas e com o planeta – casa comum.  “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34). A abertura de coração vem da hospitalidade samaritana, do olhar terno e compassivo, desprendido da lei e do egoísmo. É tempo de ressurreição e de vida solidária. Tempo de descer a humanidade esquecida da cruz… “tempo de descer da cruz os povos crucificados”, acompanhando o teólogo espanhol, Jon Sobrino.

Desta forma são muitos os crucificados no estado de insegurança. Aqui, já estão incluídos todos os pobres ao sacrifício. Pois estes, conceitualmente, são aqueles que estão desprovidos das condições mínimas de vida: lugar decente para morar, trabalho estável, alimentação razoável, acesso a educação e ao serviço público de saúde… falando em saúde, existem aqueles que não têm água nem sabão, não tem condições mínimas para se protegerem contra o vírus da morte. Os pobres vivem em permanente situação de indigência e de vulnerabilidade. A experiência da morte é um fato presente tanto no cotidiano das famílias como nas manchetes dos jornais.

Para o teólogo Gustavo Gutierrez, os pobres são “aqueles que morrem antes do tempo” ou para história são aqueles que morrem em campo de concentração ou quarentena institucional. “Vida Nua” diria o filósofo. Mas na minha oração, ninguém deve ser levado à morte. Pois com Jesus o véu que separava os que morriam daqueles que eram mortos foi rasgado. O ser humano se encontra consigo mesmo, com o seu duplo sagrado. “E o véu do templo se rasgou em duas partes, de cima abaixo, a terra tremeu e as rochas se fenderam” (Mateus 27,50-51).

Este evento da experiência cristã, a semana santa, fundamentalmente, é tempo de reflexão, de assumir a cruz dos vulneráveis, de renovar a alma e de esperança – eis o tempo de Páscoa! Leonardo Boff chamaria isso de uma teologia militante “sem pretensas neutralidades nem hipocrisias equidistantes”. Este posicionamento teológico ajuda a compreendermos o sentido desta experiência como passagem da paixão à “contemplação para alcançar o amor”.

Observo por observar quem por mim passar

Por Maria Francysnalda Oliveira Dourado

         

Defendo a ideia de que algumas características das crianças não deveriam ser abandonas na fase adulta. Dentre elas, podemos perceber que a criança é curiosa (adjetivo usado para substituir o que nos interiores chamam de “malina”, “buliçosa”), é observadora (está atenta a tudo que se passa a sua volta), é verdadeira (se gosta, gosta; se não gosta, não gosta… e não tenta iludir os outros com o objetivo de “não-magoar”).

Infelizmente, eu abandonei muitas das minhas características de menina, mas a de ser observadora… Ah, essa eu cultivo com muito entusiasmo e total sedução.

O que mais gosto de observar e que além de me encantar ainda me fascina são as pessoas. Posso ficar horas e horas só a observá-las sem nenhuma pretensão, faço isso meramente pelo prazer da reflexão. Acho interessantes esses seres que vão e vem, que passam e ficam. Como diz a música de Biquini Cavadão: “trago a imagem de todas as ruas por onde passo e de alguém que nem sei quem é. E que provavelmente eu não vou mais ver. Mas mesmo assim ela sorriu para mim. Ela sorriu e ficou na minha casa que é meu reino”. É, alguns sorriem, já outros nem percebem que estão sendo observados; e posso garantir absolutamente que a maioria esmagadora não se dá conta que estão numa espécie de “Panóptico de Francysnalda”.

Há quatro lugares/circunstâncias em que procuro manter o hábito da observação: na praça, no ônibus, nos prédios e no calçadão.

Devo confessar que já está com um bom tempo que não me sento em um banco de praça. Porém, alguns anos atrás (mais precisamente quando eu cursava direito e pegava ônibus todos os dias na Praça do Fripisa) sentava e observa os que passavam do outro lado da rua. Observava os trabalhadores que abriam as lanchonetes: a maneira que se cumprimentavam, o ritual diário que faziam e, dava pra perceber, que eles estavam no automático. Tinha um rapaz que sempre estacionava o carro no mesmo lugar e ia caminhando para seu trabalho (não sei onde trabalhava, mas sei em qual rua ele entrava); esse rapaz, em especial, me chamou a atenção, pois frequentemente descia com uma sobrinha preta fechada em uma das mãos e frutas que eu pressupunha que era o lanche das nove (por vezes era uma maçã e outras eram frutas cortadas em um potinho transparente). Eu sabia exatamente a hora em que ele chegava com o carro branco. Não sei por que, mas meu olhar o acompanhava por dois quarteirões até dobrar a esquina. Não só meu olhar criou o hábito de acompanhá-lo, mas minha mente criou o hábito de recitar contos e orações para ele. Como dizem: “cada doido com sua mania”. Nunca mais o vi! E se o visse, creio que eu não o reconheceria.

Ônibus! Tem parque de diversão melhor do que um ônibus? Para mim, não. Já observei tantas coisas nesse meio de transporte que é melhor nem comentar. Deixem-nas em minhas lembranças e nos meus lábios que, por vezes, esboçam risos lembrando-me dos protagonistas destes parques.

Não me imagino morando em um prédio, mas gosto de subir naqueles com vidraça só para olhar os “homens-formigas” que passam lá embaixo, nas ruas. Na semana passada, estava eu em uma dessas clínicas com meu filho (outro que já pegou a mania da mãe) e ficamos a observar o povo que passava na rua. Observamos motoristas que não sabiam estacionar; menino chorando e a mãe brigando; velhinhos sendo arrastados pelo braço; cadeirantes em um malabarismo entre os carros, uma vez que não temos acessibilidade e estamos longe de entender o que é isso; flanelinhas correndo de um lado para outro que mais pareciam bumerangues; vimos carros de funerária chegando com corpos; e em meio a tudo isso, vimos beijos e abraços apaixonados (ou talvez não eram tão apaixonados assim!). É, a vida é isso: alegrias e tristezas, sorrisos e lágrimas, encontros e desencontros.

Por fim, o lugar em que mais sorriem para mim: o calçadão. O único desses lugares em que as pessoas são capazes de perceber que estão sendo observadas ou ao menos desconfiam disso. Admito que nunca me adaptei à academia e nunca entendia o porquê. Até ficar clarividente o meu encantamento pelas observações das ruas, dos animais, dos motoristas estressados, das pessoas que passam etc. Quando fazemos caminhada, podemos ver que algumas pessoas estão tristes, outras pensativas, outras felizes. Gosto da brincadeira de tentar decifrar o estado de espírito do outro. Podemos perceber como as pessoas interagem entre si ou se apenas estão em si. Eu vejo pais em uma harmonia linda com seus filhos (talvez aquele é o único momento do dia em que podem está juntos), mas também vejo a grosseria de outros pais e isso deixa minha caminhada mais pesada. São os pesos da alma que infelizmente não são nossos, mas, como diz a música: “eu sou a soma de tudo o que vejo”.

Observo pessoas diariamente e ao enxergá-las perguntas soltam em minha mente: quais histórias trazem em suas vidas? Quais suas maiores alegrias? Como se conheceram? Quando se apaixonaram? Será se daqui a 10 anos ainda estarão juntos? Quais seus medos? Quais são suas dores? Quais são seus anseios? O que deixaram de fazer por medo e que deveriam ter feito? Será que brigaram hoje com alguém que é especial? Por que está triste? Por que está chorando? (sim, já vi muitas pessoas chorando nos ônibus).

E uma das perguntas que mais saltitam em mim: será se alguém também está me observando? Ora, para esse questionamento eu tenho resposta e essa é muito fácil: sim, está. Sempre tem alguém observando alguém pelo simples prazer de observar; perceber que não estamos sozinhos no mundo. Mesmo aqueles que são sós (aqueles que não têm para quem voltar no final do dia), mesmo esses, não estão sozinhos. Estamos rodeados de pessoas, todas elas com suas histórias e vivências, medos e anseios, sonhos e realizações.

Enfim, se um dia me flagrarem observando você (como falas, como andas, como come…) lembre-se que não tenho nenhuma pretensão a não ser a da reflexão, pois eu observo por observar quem por me passar.