Por André Henrique M. V. de Oliveira

 

“Nossos castigos vêm de nossas virtudes” (Nietzsche, Aforismo 132, Para além do bem e do mal)

“Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar um monstro…” (Nietzsche, Aforismo 146, Para além do bem e do mal)

 

Durante muito tempo, enquanto a ciência perdurou como um discurso cuja autoridade teórica (não o autoritarismo, que é algo bem diferente) era respeitada, os pesquisadores que se dedicavam seriamente a determinada área gozavam de certo prestígio. Isso não os tornava imunes a erros (são humanos!), porém o rigor com o qual eles faziam suas pesquisas distinguia os resultados delas de meras “opiniões pessoais”, cabendo apenas ajustes a serem feitos para tornar suas teorias e concepções mais robustas.

Algumas pesquisas em psicologia indicam a existência de um comportamento chamado de “raciocínio motivado”. Dito de modo geral, tal comportamento diz respeito a como formulamos nossas crenças e raciocínios. Essas pesquisas indicam que nós somos propensos a chegar a conclusões que nós queremos chegar, mas tal propensão é limitada à nossa habilidade em construir justificativas aparentemente razoáveis para aquelas conclusões.

Ainda segundo essas pesquisas, há pelo menos dois tipos de raciocínios: os raciocínios orientados por metas de precisão e os raciocínios orientados por objetivos direcionais. No primeiro caso, tenta-se chegar à conclusão mais acurada, mais precisa possível, qualquer que seja ela, e para isso lançamos mão das crenças e estratégias mais apropriadas possíveis. Já no segundo caso, usamos as crenças e estratégias que mais provavelmente nos levarão às conclusões a que queremos chegar. No primeiro caso há um esforço cognitivo maior, na medida em que a busca por precisão exige maior atenção às variáveis relevantes (que podem ser muitas informações) e um maior aprofundamento na escolha da estratégia de abordagem dessas variáveis. Já no segundo caso, o esforço é buscar as evidências necessárias para construir uma conclusão que corresponda à conclusão previamente desejada, e para isso se cria uma ilusão de objetividade, baseada na seleção tendenciosa de informações que devem contribuir para a conclusão desejada. Nesse caso o sujeito não se dá conta que, se tivesse um alvo oposto a atingir, poderia coletar do mesmo modo informações que lhe levassem àquela outra conclusão. Não raro acontece de o sujeito ter de reconhecer conclusões indesejadas, quando são apresentadas a ele informações que ele não quis considerar.

Como que antecipando tal teoria, Schopenhauer considerava o intelecto humano como “’servo da vontade”. Assim, alguém pode me mostrar argumentos, razões, dados científicos etc. e mesmo assim eu posso não “querer” acreditar, tomando aquilo como mera “questão de opinião” pessoal, e contrapondo àqueles argumentos outros argumentos sem qualquer base teórica, como se toda e qualquer opinião no fundo “valesse igual” e tivesse de ser admitida publicamente. Mas, de onde vem essa “vontade-de-não-acreditar” em determinadas coisas?

Em Humano, demasiado humano, Nietzsche fala que “na base de toda crença está a sensação do agradável ou do doloroso em referência ao sujeito que sente” (§18), daí que tenhamos a tendência a rejeitar uma opinião quando ela nos é desagradável (§484). Digamos que essa proposição de Nietzsche não me agrade e eu não creia na verdade dela. Posso contradizê-la afirmando que um pessimista pode muito bem tender a acreditar no que ele mesmo repudia. Ok. Mesmo assim, terei que reconhecer que há um forte aspecto afetivo nas minhas crenças, “quer elas me agradem ou não”, pois o próprio “agradar” ou “desagradar” já denuncia esse fator afetivo de origem.

Roberto Damásio, neurologista português, afirma que “os níveis baixos do edifício neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo”. Ou seja, parafraseando Pascal, o organismo tem razões (e valores) que a própria razão desconhece. Assim, a visão de mundo de cada um, isto é, o conjunto de nossas crenças (morais, estéticas, político-ideológicas etc.) possui uma raiz biológica, construída por fatores internos (genéticos) e por fatores externos (o meio no qual crescemos e estamos inseridos).

Portanto, os nossos valores, as nossas escolhas, as nossas preferências, as nossas prioridades, tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo, são resultado de um processo de aculturação do nosso organismo. O que nos agrada, ou desagrada pode servir como termômetro para medir aquele conjunto de crenças, valores e prioridades pelos quais guiamos nossas vidas e influenciamos o mundo político.

– Hipótese para a questão “de onde vem essa vontade-de-não-acreditar em determinadas coisas?”

O Brasil hoje está como na música de Enrique Santos Discépolo, traduzida por Raul Seixas: “hoje em dia dá no mesmo ser direito que traidor. Ignorante, sábio, besta, pretensioso, afanador. Tudo é igual, nada é melhor: é o mesmo um burro que um bom professor”. As ofensas desferidas aos cursos de ciências humanas e às universidades públicas em geral encontraram autorização em um símbolo. O machismo, o racismo e o preconceito contra nordestinos encontraram autorização no mesmo símbolo. As pessoas que nutrem esses sentimentos gostam de acreditar neles; lhes agrada terem tais sentimentos. Sem qualquer respeito, solidariedade, ponderação ou sensatez. Digo por experiência pessoal, muitos dos que nutrem tais sentimentos não valorizam o estudo e a ciência, e quando o valorizam usam o seu estudo para exigirem um pronome de tratamento (“Doutor”), para se sentirem superiores, e não porque valorizam o estudo e o conhecimento como um bem em si.

O “mito” dessas pessoas disse que iria “expulsar” médicos do país, e assim o fez com os médicos cubanos. Ao invés de notarem o absurdo dessa atitude, aquelas pessoas disseram: “vai pra Cuba!” O coronavírus veio e desmascarou muita gente, incapazes que são de reconhecer os próprios valores que desde antes da ascensão do “mito” eles vem cultivando: o preconceito, a falta de solidariedade com os mais vulneráveis socialmente, o cinismo e a dissimulação diante dos atos e falas absurdas e desrespeitosas de seu “mito”. Numa palavra, são dotados de uma arrogância burra.

Das pessoas com quem falei poucos tiveram a honradez de intervir ou pelo menos de se solidarizarem diante daquelas ofensas a que nós, estudantes, pesquisadores, professores, fomos submetidos. A maioria dos apoiadores do “mito” endossou o palavrório escarnecedor. Qual foi mesmo o candidato que pautou todo o seu discurso na afronta e na ofensa? Então, por que, agora, os que cegamente o defendem se sentem ofendidos quando são chamados de “gado”? É arrogância exigir respeito? Se for, sou arrogante, admito, desde que se reconheça a etimologia da palavra “arrogare”: tomar algo para si, ser exigente quanto a. E, de fato, precisamos exigir. Respeito!

Eles não querem crer que estão errados. E, de fato, eles não estão errados. Trata-se do caráter deles: dos valores, das crenças, dos desafetos que eles cultivam. Deve realmente ser difícil (ou agradável, caso seja alguém que homenageie torturadores) olhar para si mesmo e reconhecer: “eu sou assim mesmo e defendo uma postura fascista, homofóbica, machista, elitista etc.” Essa postura é a escolha e priorização de uma visão de mundo; a visão de mundo segundo a qual é melhor que pessoas pobres morram do que milionários fiquem um pouco menos milionários.

Mas, isso é só minha opinião. Prefiro a caridade à verdade.