Wellington Soares

Coisas e outras

Blog Title

Sérgia A: Escrevo por deleite e necessidade interior

 

Por Wellington Soares, professor e escritor

Eu já a conhecia há bastante tempo, desde as lutas estudantis na Ufpi dos anos 1980, quando reivindicávamos uma educação superior de qualidade e o fim da ditadura militar. Tempos memoráveis aqueles. Sua faceta literária, no entanto, era desconhecida por mim. À distância, tinha conhecimento que se formara em Letras e concluíra o mestrado em Literatura: memória e cultura, ambos na Uespi.

Voltamos a nos encontrar depois, com regularidade, nos saraus literários que eu organizava na Livraria Anchieta, toda quarta-feira de cada mês. Foi aí que ela, ainda de forma tímida, começou a ler alguns poemas e contos de sua autoria. Os aplausos recebidos sinalizavam que o público havia gostado, com pessoas querendo, inclusive, adquirir seu livro. Pena os textos existirem, na época, apenas em folhas avulsas e na própria memória.

Um belo dia, estava eu na Revestrés e ela apareceu, dotada de coragem, manifestando vontade em estrear na literatura. Com os textos em mão, queria ouvir minha opinião se valeria publicá-los em volume. Em tom de brincadeira, mas falando sério, recorri aos sábios versos de Fernando Pessoa: “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Sendo assim, disse que deixava os originais de Quatro contos comigo e que assinaria o livro como Sérgia A.

Não tardou muito para a obra, em formato artesanal, ser lançada ao público pela Quimera. Sob a benção de um chuvaceiro, a noite do coquetel, na cafeteria O Guarany, não poderia ter sido melhor e mais animada. Nascia ali, para espanto dela mesma, uma escritora que, com um único livro, inscrevia seu nome entre os talentos da atual literatura piauiense. A vertente poética surgiu em 2019, com a publicação de Adejo, pela Venas Abiertas, uma editora mineira.

Como não ler essa entrevista maneira de uma ex-bancária e quase engenheira civil que, por meio do binômio leitura/escrita, resolveu trilhar os inquietantes caminhos da cultura?

 

A poesia não resolve, revolve, escreveu o poeta William Soares. Você concorda?

Sim, me parece uma boa definição. William foi certeiro como sempre. Entendo que a poesia está no mundo e se revela ao olhar do poeta/artista como um espanto. Traduzir esse espanto em palavras e torná-lo espelho é o labor do poeta, assim como traduzir o espanto em desenho, pintura, música, dança, cinema etc. é o trabalho de outros artistas. O verbo resolver traz a ideia de apresentar uma solução ou uma resposta. Enquanto revolver, pelo contrário, é revirar, mostrar o lado encoberto, instigar… causar incômodo ou levar à reflexão. É o que a poesia faz.

Mesmo ligada ao mundo das letras, por que demorou tanto a publicar um livro?

Já me fiz essa pergunta e cheguei à conclusão de que existem duas razões que estão interligadas. A primeira é pessoal, por insegurança em relação à qualidade do que eu escrevia ou medo da exposição. A segunda nasce da desigualdade de gênero e da distância dos ditos “centros culturais”, que ainda são fatores presentes no mercado editorial. Há algumas décadas era muito pior, não havia internet (sou desse tempo). Até os livros chegavam com dificuldade e já passando por uma “seleção” feita pelo olhar masculino dos livreiros. Uma menina criada no Piauí crescia sem referências próximas, palpáveis, acreditando que aquele mundo era inalcançável. Poucas escritoras conterrâneas de gerações anteriores ou da minha geração superaram todas as barreiras e abriram o seu espaço. Aí retornamos à primeira: pra enfrentar é preciso ter um suporte ou acreditar muito em si mesma. Eu não contava com uma coisa nem outra. A coragem só veio com a maturidade.

Em qual praia literária você fica mais à vontade pra lutar com as palavras: poesia ou conto?

Uma pergunta difícil de responder porque meu processo criativo é meio caótico. Dificilmente me sento diante de uma folha em branco com a decisão sobre que gênero literário escrever. As ideias me chegam e são elas que definem o próprio rumo. Faço anotações sobre o que vejo, o que escuto, o que sinto… dali com transpiração, e muita pesquisa se for o caso, pode nascer um poema, um conto, uma crônica ou outro texto fora dos trilhos.

Ao contrário do passado, hoje despontam várias mulheres em nossa literatura. Alguma explicação pra isso?

Eu não tenho dados para citar, mas é notório que nos últimos anos cresceu o número de publicações de literatura produzida por mulheres como também essas publicações passaram a ter a qualidade reconhecida em premiações. Credito esse avanço a uma conjunção de fatores. Entre eles, a expansão dos estudos de literatura e gênero nas universidades na última década que jogam luz sobre a produção feminina; a eclosão de movimentos como o Mulherio das Letras e clubes de leitura como o Leia Mulheres que incentivam a produção e a leitura respectivamente. À medida em que mais mulheres produzem literatura maior a possibilidade de se encontrar qualidade nessa produção que diversifica o olhar. Assim como à medida em que mais mulheres são lidas maior a possibilidade de reconhecimento e valorização dessa produção. Isso cria uma reação em cadeia que influencia o próprio mercado editorial.

Sua obra está mais sintonizada com as causas feministas ou políticas?

Bom, eu não diria que o que escrevo tem uma causa além da própria arte de escrever. Não escolho os temas. São eles que se apresentam dentro do meu espanto diante do mundo. O “Quatro Contos”, por exemplo, são histórias que se guardaram em mim, ouvidas aos sussurros na infância/adolescência vivida sob uma ditadura militar. Portanto, os dois aspectos estão dentro de mim e ressoam. Sou mulher, mãe e avó de meninas… não tem como a minha obra não ser atravessada pelo feminismo. É uma questão de sobrevivência. Da mesma forma que por sermos humanos, somos seres políticos e manifestamos nas criações as angústias do nosso tempo. Nesse sentido, o feminismo é abarcado pelo político que seria então a causa maior. Como disse a poeta polonesa Wislawa Szymborska no poema “Filhos da época”:

“O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.”
Dá pra viver e ser feliz com literatura?

Viver no sentido de ter a literatura como fonte de renda é quase impossível neste país. São poucos os casos de autores, mesmo os consagrados, que vivem da sua arte. Felizes são os que têm atividades paralelas vinculadas como o ensino de literatura ou produção cultural. Sob esse ponto de vista, o fato de ter dedicado longos anos a outra carreira profissional me favorece, me deixa livre para escrever e ser feliz. É um privilégio. Escrevo por deleite e necessidade interior. Sem pressão. Não conseguiria mais viver de outro modo. Mesmo com todas as angústias que a sensibilidade traz sou feliz por ter encontrado esta forma de expressão. É um canal para extravasar o que me sufoca por tristeza ou por encanto, às vezes até inconscientemente. Catarse, talvez!

O isolamento social tem favorecido ou prejudicado sua escrita?

Como todo mundo, vivi fases. O mais fácil foi ficar em casa porque já trabalhava assim e nunca tive vida social agitada. O problema é a sensação de impotência, de ver a humanidade inteira ameaçada por algo invisível, desconhecido. No início não conseguia produzir. Depois de um tempo a gente se adapta, se organiza mentalmente e a coisa flui. Participei de grupos de estudo à distância com incentivo à produção que me ajudaram a manter o foco. Alguns eventos literários importantes nos facilitaram o acesso, pelo formato on-line. Mantive minha rotina de leitura. Escrevi pela primeira vez um conto de terror, para uma edição muito bonita que reúne 15 autoras, como se estivéssemos em uma roda em que mulheres usam a ficção para lidar com o medo. 2021 trouxe a esperança da vacina e o desespero de tantas mortes diárias, cada vez mais próximas, que poderiam ser evitadas se tivéssemos um governo preocupado com a vida a exemplo de outros países. Novamente fico abatida, mergulho na dor que nasce da percepção de que não aprendemos (nós humanidade) muito sobre o que o vírus nos diz: somos um todo, estamos conectados, se o coletivo não estiver bem o indivíduo não estará… Respiro fundo (enquanto posso) e sigo encontrando refúgio em novos projetos. Penso que, no cômputo geral, a minha escrita manteve o ritmo.

 

Biografia

Sérgia A. vive em Teresina-PI. É mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura. Tem publicações acadêmicas e literárias em revistas culturais e coletâneas diversas, sendo mais recente a coletânea de contos de terror COVEN (Editora Desdêmona, 2020). Escreve para o blog Do Caminho, site da Revista Revestrés. Autora dos livros Quatro Contos (Quimera, 2018) e Adejo [poemas] – Coleção I Mulherio das Letras (Venas Abiertas, 2019)

Vanessa Trajano: “A literatura é um projeto e uma missão de vida”

Por Wellington Soares, professor e escritor

 

A literatura é um projeto e uma missão de vida

Foi ao ler Mulheres incomuns que conheci Vanessa Trajano. Era sua estreia na literatura, ano de 2012. Um livro de contos que, à primeira vista, não se dava muito por ele. Projeto gráfico tímido, meio artesanal. Mas o impacto forte, soco no estômago, não tardou pra nos tirar a respiração. Texto a texto, era uma pancada só, com o fôlego retornando, aos tantinhos, apenas no final – saboreada a última história.

Ali percebi o desabrochar de uma escritora que, com destemor, alargava os horizontes das letras piauienses, substituindo a escrita comportada, vigente até então, pelo sentimento de estranheza. Deixando claro que, em termos literários, a vida pulsa sem mistificações. Ainda mais quando, focada na liberdade, traz, sem pudor nem moralismos, o exercício estético do erotismo.

Depois vieram, lidos com sofreguidão, outras pauladas: Poemas proibidos (2014), textos “obscenos” com ilustrações ousadas, pouco recomendável aos preconceituosos; Doralice (2015), romance  inspirado numa garota interiorana que, limitada por condições socioeconômicas, sonha em voos maiores para si; e, finalmente, Ela não é mulher pra casar (2019), reunião de 24 contos sobre mulheres que desafinam, cada uma a seu modo, a cultura machista cerceadora de direitos e felicidades.

Mas deixemos de lero-lero, como diria Bandeira, e ouçamos o que tem a nos dizer essa autora teresinense radicada em Brasília, mestra em Estudos Literários pela Ufpi e professora de língua portuguesa.

 

Mário Quintana dizia que “quem faz um poema abre uma janela”. Quais janelas você está abrindo, hoje, com a sua literatura? 

Acredito que quando as mulheres leem a minha literatura se sentem mais abertas, cobram menos uma postura moral de si mesmas. Porém, infelizmente vejo que escrevo não para a minha geração, e sim para as próximas, pois a janela está sendo aberta lentamente, num processo, como tudo ao longo da história. Nisso os leitores também têm participação, pois alguns (só alguns) entenderam que, na verdade, não existe mulher pra casar e mulher pra pegar, e que o título do meu último livro não passa de uma grande ironia.

Entre tantas profissões, por que você escolheu justamente o ofício da escrita? 

Prefiro afirmar que a escrita me escolheu, pois é a única coisa que persiste até agora. A literatura é um projeto e uma missão de vida. Só alguém com um mínimo de audácia e coragem teria peito para fazer o que eu fiz até agora, e o que ainda vou fazer. Muitas coisas precisam ser ditas, e eu percebo que os artistas e os intelectuais hoje estão indo para o caminho da unilateralidade. Todavia, quando leio os grandes clássicos e filósofos, percebo justamente o contrário: a observação humana, em sua completude. Desse modo, sinto-me obrigada a escrever minhas constatações de mundo (que podem perfeitamente não estar certas, mas isso é outra história).

Como explicar a obsessão pela sexualidade em sua obra e a reação nada cordial de muitos leitores? 

Não diria pela sexualidade, mas sim pela liberdade – o que acaba incluindo o sexo. Todos nós sabemos que se um homem tiver duas famílias ninguém irá denegri-lo por esse motivo, mas se uma mulher der uma simples pulada de cerca veja o que acontece com ela. Um homem pode ter uma vida sexual muito badalada, entretanto dificilmente assumirá relacionamento sério com uma mulher que também tenha, apesar de estar até apaixonado. Então friso nesse ponto justamente para mostrar que podemos ser iguais, pois todos(as)  temos nossos desejos e eles merecem ser atendidos. Acho que é isso que incomoda, porque o conservadorismo consiste justamente em querer que as estruturas permaneçam como estão, sem prenúncio de qualquer mudança. É uma ameaça tanto para aqueles que acham mais confortável do jeito que está quanto para as Amélias, porque elas ainda não entenderam que a mordaça que colocaram nelas é puramente social e deve ser desconstruída.

O que a leva a polemizar, nas redes sociais, com algumas mulheres? Você não é feminista? 

Como a Fernanda Young, demorei a me assumir feminista, não por negação à luta, pois a minha postura sempre foi de questionar a tudo e a todos, desde criança. Demorei devido ao fato de perceber certas questões nos bastidores que me conduziram, num primeiro momento, a generalizar quem carregava essa bandeira de maneira estúpida com suas ações incoerentes. Eu já fui atacada verbalmente por outra mulher na frente de cinquenta pessoas, já me xingaram para o meu melhor amigo sem saber disso, fora inúmeras histórias que eu poderia contar, mas isso aqui não é uma revista de fofoca. Então não acho que seja bem uma polêmica, é uma reação legítima. Levo a falta de noção dos homens até numa boa, pois eles se encontram numa engrenagem viciosa em que foram educados a nos cobiçarem como forma de provarem a sua macheza. Mas eu simplesmente não admito sofrer violência vinda de outra mulher, ainda mais se ela se diz feminista, porque aí subentende-se que é esclarecida e não deveria agir de tal maneira. Eu jamais polemizei com mulher alguma nas redes sociais, eu apenas expus, com indignação, como me senti em determinadas situações – até porque nunca coloquei nome de ninguém nessas postagens. E a respeito desse assunto, estou produzindo um Documentário, que se chama: A DESunião faz a FORCA! Sairá ainda este ano, com direção e roteiro de Camila Maia e montagem de Marcos Aureliano.

Verdade ou absurdo quando a comparam à escritora francesa Anaïs Nin? 

Se eu disser verdade estarei sendo muito orgulhosa, se responder absurdo serei injusta com o Feliciano Bezerra, quem primeiro me chamou de Anaïs Nin tropical, lá em 2012. Como a admiro demais, tal comparação é uma verdadeira honra. Estudei-a no mestrado, a minha dissertação é sobre a obra dela. Então, posso afirmar que essa relação é fundamentada sim, embora considere que falta muito para chegar ao seu patamar. 

De que forma não só a literatura como a cultura em geral ajuda a salvá-la nestes tempos de pandemia e isolamento social? 

Não está sendo um período que eu consiga produzir algo, mas o bom é que ando consumindo bastantes séries, filmes, livros e documentários. Se não fosse essa válvula de escape, seria bem pior. Não digo só por mim, por todos. A arte é, talvez, a única forma de  lembrarmos que ainda existe vida, da forma mais catártica que ela pode ser.

Em qual espécie literária você viaja com mais desenvoltura: poesia, romance ou conto? Explique. 

Considero-me uma contadora de histórias. Então se me atrevo em versos, às vezes, é porque pretendo escrever um enredo um tanto mais lírico e em outro formato. É sempre uma ficção, procuro nessa “mentira” dizer algumas “verdades”. Portanto, o melhor ambiente para mim é, sem dúvida, o da prosa. E ela escolhe se quer ser longa ou curta. Prefiro ler romances, mas me saio melhor nos contos enquanto escritora – embora a palavra final seja do público e da crítica.

 

 

 

 

Marcelino Freire: “O artista, nessa pandemia, deu ‘asas’ às nossas ‘casas’.”


Entrevista por Wellington Soares, professor e escritor
Foto: Antônio Andrade

Eu o conheci pessoalmente em 2012, mas já ouvira falar muito dele no meio artístico. A nosso convite, Marcelino Freire veio ao 10º Salipi, realizado à época na Praça Pedro II, papear sobre “Amar é crime e outras paradas culturais”.

Em novembro do mesmo ano, fui a São Paulo, retribuindo a visita, a fim de conhecer a Balada Literária, evento cultural idealizado por ele e um dos mais importantes do país. Depois desses encontros, não nos largamos mais. Foi amizade à primeira vista.

O filho de Sertânia (PE) veio a Teresina outras vezes, foi o entrevistado da Revestrés#16 e iniciou o projeto Quebras, do Itáu Cultural, por nossa capital; eu, por outro lado, estive noutras edições do projeto e, atualmente, sou o curador da Balada no Piauí.

Além de um grande “agitado cultural”, como prefere ser chamado – organizando feiras de livros pelo país e ministrando oficinas de escrita criativa -, Marcelino Freire inscreve ainda seu talento na contemporânea literatura brasileira, destacando-se nos textos em prosa: Contos Negreiros (Prêmio Jabuti 2006/Conto) e Nossos ossos (Vencedor do Prêmio Machado de Assis/Romance).

Trancado em seu apartamento, na grande São Paulo, Marcelino nos concedeu uma baita entrevista. Bora conferir?

Evocando o poeta Fernando Pessoa, indago se a peleja em organizar a Balada Literária durante esses 16 anos valeu a pena?
Vale a pena, a purpurina, a fantasia. Faço porque não me aguento… Dizem que eu sou agitador cultural. Não, eu sou “agitado”. Agitar para sair do lugar. Aliás, você também, Wellington, eita escritor, eita professor agitado…

Qual a importância da cultura na vida das pessoas, sobretudo, em tempos de pandemia e isolamento social?
A cultura abre a nossa alma, nos faz companhia, ajuda a gente a enxergar… Nessa pandemia mesmo, tantos e tantas artistas que vieram nos abraçar, olhar nos nossos olhos… Veja, por exemplo, Chico César. Quantas canções inéditas ele fez no Instagram. Cantando ali do quintal da casa dele para dentro da nossa casa. O artista, nessa pandemia, deu “asas” às nossas “casas”.

Comparada aos anos anteriores, como você avalia a edição virtual de 2020?
A gente não deixou de fazer. Quando eu digo “a gente”, eu digo: você, no Piauí; Nelson Maca, na Bahia; e eu, aqui, costurando essas pontes em São Paulo. Vocês são meus parceiros “baladeiros”. A gente fez a Balada virtual nas mesmas datas em que havíamos programado sem saber da pandemia… Que homenagem linda fizemos, nacionalmente, a Geni Guimarães. Ficou aí, tudo gravado. Somos resistentes e não ficamos “parados”. Agitamos sem sair de casa… Foi uma Balada histórica e vitoriosa nesse sentido…

O que representa o desmonte da cultura, pelo governo federal, na produção e na vida dos artistas brasileiros?
Não falo de cultura quando me refiro a eles que estão aí, chamo só de “desmonte” mesmo. “Governo”, qual? Federal? Não há uma consciência “federal”… Só “federal” de “feder”. É triste o que acontece. Mas repito: a gente não para. A gente teima. A gente é enfrentamento. Esse o nosso papel: o de lutar “gritando”. Gritando com o que a gente escreve, com o nosso testemunho, com os nossos “livros” em punho. A nossa palavra é um calibre pesado, viu?

Uma das inovações deste ano é a realização da Balada Mês a Mês. Explica os objetivos disso.
Por causa da experiência da Balada Literária virtual do ano passado, achamos que poderíamos mês a mês continuar abraçando as pessoas virtualmente. Por isso, resolvemos fazer um especial da Balada todo mês. Uma maneira idem de a gente organizar a memória do evento, que acontece desde 2006. Temos muito material gravado, daí exibimos. E também tem atração inédita a cada mês, como as “aulas” que acontecem na Sala Paulo Freire. Estamos já nos antecipando ao centenário de Paulo Freire que acontece este ano. Todo mês tem uma aula inédita. Vocês podem assistir tudo pelo canal do YouTube, da Balada Literária. Claro que haverá a Balada Literária anual, em novembro desta vez. Esperamos que seja presencial…

Quem são os artistas homenageados em 2021 nas três capitais e que papel cada um deles exerce na cultura nacional?
Vamos fazer a décima sexta edição da Balada Literária em novembro e resolvemos trazer de volta a poeta Geni Guimarães, desta vez ao lado da escritora indígena Eliane Potiguara. Queremos abraçar e celebrar essa dupla de autoras brasileiras. Se elas são conhecidas, mais gente precisa conhecer. E o que dizer do Marcelo Evelin, aí de Teresina? Conheci por causa de você. O trabalho dele na dança, nas artes, na filosofia de coletividade é algo à frente… Evelin é mundial. Se muita gente o conhece, mais gente precisa conhecer. Sobre a homenageada da Bahia, Nelson Maca está confirmando ainda. Aguardemos em breve o anúncio de mais essa celebração.

Que sensação você experimenta hoje, depois de lançar em 2018 a antologia-manifesto “Lula Livre – Lula Livro”, ao ver restituídos os direitos políticos do ex-presidente?
A gente vem gritando desde o golpe sofrido pela Dilma. Ali começava uma narrativa forjada de “combate à corrupção”. Quando Lula foi preso, resolvemos, eu e Ademir Assunção, organizar uma antologia-manifesto chamada “Lula Livre – Lula Livro”. Reunimos 90 autores e autoras de todo o Brasil. Você está lá com a gente, inclusive. Chico Buarque mandou texto inédito. Raduan Nassar mandou. Roberta Estrela D’Alva, Alice Ruiz. Gritamos por justiça. O prefácio do livro, inclusive, conta dessa narrativa mentirosa. Só agora se deram conta de que tudo foi um erro. Só agora ouviram o que todo mundo estava gritando… Um das maiores farsas jurídicas da história mundial. Com o livro, a gente deu a nossa contribuição no sentido de ter tentado acordar as pessoas. Que bom ter deixado isso em livro registrado: de que lado nós  sempre estivemos.

Algum livro seu para ser publicado ainda este ano?
Pensei que viria um romance. Estou ainda mexendo nele… Infinitamente. Mas vem, sim, um livro de “ensaios” curtos. E estou muito ligado ao teatro. Fazendo dramaturgia para alguns atores e atrizes. Tenho curtido voltar a essa escrita teatral. Achei, adolescente, que eu seria um dramaturgo a vida inteira. Acho que voltei a esse sonho antigo. Estou fissurado nessa volta. Sou muito adaptado para o teatro. Amo teatro. É amor sem fim, viu?

Emboá

Somente ao passar de volta por baixo da rede, no silencioso deslizar de suas inúmeras patas, tomo consciência de acordar em definitivo. Espreguiçar o corpo, abrir a janela do quarto, deixando que o sol da manhã, generoso em sua bondade, aqueça tudo ao redor. Essa tem sido a rotina, em tempos de Coronavírus, das últimas semanas. Virar as noites assistindo a bons filmes, pelo Youtube ou Netflix, e lendo, às vezes, algum livro. O despertar começa às onze e meia, ao pressentir ele, o emboá, na sua lenta travessia pelo apartamento, fato que acalma, por incrível que pareça, todos meus sentidos. 

Enquanto ele não retorna, fico curtindo a malemolência desse período de quarentena, sem pressa nenhuma pra fazer nada, exceto pensar na boca quente em que o mundo se encontra – incluindo o Brasil – com essa maldita doença. Passei boa parte ontem da madrugada, a exemplo das anteriores, matutando sobre esse abacaxi dos grandes, sobretudo, do tempo que os cientistas levarão para criar uma vacina, pondo fim ao encantamento de tantas vidas preciosas. Nessa loucura que paralisa os movimentos, órgãos estancados pelo medo, quem sabe não estejamos no ensaio, ainda de pouca letalidade, da futura guerra planetária dominada por armas bacteriológicas. 

Deitado na rede, curtindo as belas músicas de Chico César, aguardo em verdadeiro Estado de poesia, a chegada do sono

As pessoas isoladas em seu cantinho, proibidas de pôr a cara fora, e morrendo aos piqueiros, sem assistência médica, abandonadas à própria sorte. Angustiado, desloquei minha atenção, dado não ter resposta à crise tão complexa, para uma víbora que surgiu no teto, leve e sorrateira, justo no instante de atacar o inseto, através de golpe certeiro, não dando ao coitado tempo de perceber a indesejada da morte. Tal cena me proporcionou, não sei por que, um estranho sossego interior, embora tenha abraçado a vida com receio de perdê-la, ainda mais ao notar a inquietude da branquela, não saciada por completo, me encarando de alto a baixo. 

Foi quando recebi ligação de um sobrinho, nunca tão providencial, me pedindo que entrasse no Zoom, via celular, a fim de papear com alguns amigos seus da Europa. Queria que eu, engraçado por natureza, animasse um pouco essa galera que vivia, em face da Covid-19, um baixo astral quase depressivo. Pego de surpresa, o jeito foi improvisar, tascando de primeira, após os cumprimentos iniciais, que “a terra é redonda”, abrindo um sorriso galhofeiro em todos. Ao notar que o caminho era por ali, citando eguagens dos bolsominions, sapequei uma atrás da outra, sem tempo pra galera respirar: “nazismo é de esquerda”, “Menino veste azul e menina veste rosa”, “Rock é coisa do Satanás”, “Cultura é aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço”, “Eu vi Jesus no pé da goiabeira”, “Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado de coisa escrita”. Só parei quando dei conta que os gringos estavam sem fôlego, na maior gargalhada, alguns no chão, inclusive, de pés levantados, morrendo de rir. Sob aplausos, encerrei meu improvisado stand up com a máxima dos energúmenos: “fazer cocô dia sim, dia não”. 

De volta a mim mesmo, já que vivo sozinho, fui à Internet conferir as novidades. Uma chamou a atenção em particular, a que recomenda masturbação como forma de evitar a propagação do Coronavírus, sendo prática recomendável nos dias atuais. Por que o espanto? Simples, uma vez que outrora, não muito distante desta época, a punheta cinco dedos bronha vício solitário, a seu gosto o nome, era sinônimo de pecado grave, crime abominável, causa de loucura, ataque epilético, reumatismo, impotência, cegueira, surdez e, pior de tudo, perder a mão, ou as mãos, caso insistisse em bater com a outra, ostentando publicamente dois toquinhos de braços. Bom ver o mundo dar voltas, sepultando também mitos, crendices e fundamentalismos toscos, deixando o prazer em nossas próprias mãos. 

Enquanto o sono não chegava, preparei algo pra comer – um sanduba com suco de laranja – e escolhi um filme arretado de bom pra assistir: O poço, misto de suspense e terror com tirada política, ambientado numa prisão espanhola, que fala de classes sociais, egoísmo, solidariedade, capitalismo, indiferença ao sofrimento alheio, socialismo, violência, distribuição justa da riqueza e, diante de situações extremas, da mesquinhez humana independente de ideologia, tornando-nos uma espécie miserável, indigna de compaixão. Melhor que ver o noticiário da madrugada, nas TVs, sobre os últimos óbitos mundiais da “gripezinha”, com imagens de cadáveres amontoados em necrotérios, covas rasas e nas ruas de alguns países. 

Pra espantar de vez a insônia, recorro à releitura de Dom Casmurro, romance de Machado de Assis, atrás de descobrir o enigma que nos perturba ainda hoje: Capitu traiu ou não Bentinho? Quando aluno do antigo científico, tinha a resposta na ponta da língua – além de adúltera, ela era uma garota pra lá de dissimulada, uma grande fingida. Já como universitário, participando de júri simulado, abracei a tese do ciúme, uma vez que a história é contada por Bentinho, advogado dos bons, capaz de incriminar a “Olhos de ressaca” por considerá-la, como típico burguês, mais um objeto de posse. No sossego da quarentena, lendo com atenção, não é que o resultado, para meu espanto inclusive, descortinou um Bentinho apaixonado por Escobar, amigo dileto dos tempos de seminário. Interessante como a percepção da gente, a respeito de uma obra, muda ao longo do tempo. 

Deitado na rede, curtindo as belas músicas de Chico César, aguardo em verdadeiro Estado de poesia, a chegada do sono, que vem aos poucos, pálpebras fechando abrindo fechando abrindo, permitindo que ouça, em forma de sussurro, antes de apagar totalmente, a sensual voz de Josélia, musa inspiradora: “segure firme, meu bichim, que essa desgraceira toda vai passar, e logo logo, juro por Deus, retornarei aos teus braços”.   

Nesse instante senti, como num passe de mágica, a genuína leveza do ser, tudo por obra e graça da encantadora enfermeira que, de dois anos pra cá, vem tirando meu sossego, infelizmente obrigada há quase um mês, devido à sua profissão de risco, a manter distância de mim, sumindo com seus carinhos, seu olhar sedutor, sua pele cheirosa e macia, seus abraços envolventes e, motivo de grande revolta, seus beijos deliciosos. Antes de mergulhar no desconhecido, pressinto o emboá iniciando sua andança pela quitinete e grito, expressando o imaginário coletivo, o mantra atual dos brasileiros em relação ao presidente: “Bolsonaro, pede pra cagar e sai”.   

 

O homem que amava os cachorros

 

Quando Cristovão Tezza, convidado do Salão do Livro de Parnaíba (Salipa), lá no ano de 2014, falou entusiasticamente, num papo descontraído após a palestra, sobre O homem que amava os cachorros, livro de Leonardo Padura, ficcionista consagrado dentro e fora de Cuba, nasceu um interesse danado em mim de ler a história. De cara, pelo sugestivo título da obra, bastante estranho; depois, por adorar conhecer escritores ainda ignorados. Tão logo retornei a Teresina, movido por curiosidade, corri à Anchieta para adquirir o romance, um “thriller histórico” de tirar o fôlego do leitor, composto por 589 páginas, lançado pela Boitempo.

A narrativa gira em torno de um grito, não de um grito qualquer, mas de um grito aterrador na avenida Viena, Cidade do México, e que repercute indelevelmente até nossos dias, 80 anos depois “daquele fim da manhã e princípio da tarde de 20 de agosto de 1940, aquelas horas agônicas e indistintas.” Para quem não lembra da fatídica data, é quando Leon Trótski tem o crânio esmagado  por Ramón Mercader, agente soviético a serviço de Stalin. Arma usada na ocasião, a picareta resultou num dos mais bárbaros crimes políticos do século passado, envolvendo dois antigos “camaradas” e líderes da revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Não uma mera briga pessoal, mas luta ferrenha pelo poder em torno do projeto socialista, de redenção das classes oprimidas. A vítima defendendo a tese da “revolução permanente”, enquanto o mandante pregava a construção do socialismo, inicialmente, em um só país.

O calvário de Trótski tem início em novembro de 1927, após o fracasso de suas articulações para a retomada do poder, ao ser expulso das fileiras do Partido Comunista Soviético. Por ordem expressa de Stalin, ele é destituído das funções no Estado e deportado para o Cazaquistão, junto com sua mulher Natália Sedova e a cadela Maya. Daí para a expulsão do país, cujo exílio durou 12 anos, foi questão de tempo. A via-crúcis do renegado “traidor” da Revolução de Outubro, rótulo com que fora batizado, começa pela Turquia, passa depois pela Noruega e França, países onde é sempre perseguido pelos agentes de Stalin, e tem seu destino final no México, em 1937, com a fraterna acolhida do casal de pintores Diego Rivera e Frida Kahlo. Como se não bastasse, “seus adversários tinham decidido aproveitar o tempo e dedicaram-se a liquidá-lo da história e da memória, que também tinham se tornado propriedade do Partido.”

Igualzinho ao comandante do Exército Vermelho, o assassino também amava os cachorros, em especial os borzóis, galgos russos de pelo branco e rara beleza. Seu nome verdadeiro era Ramón Mercader, comunista espanhol recrutado pelo serviço secreto soviético para dar cabo do excomungado Trótski. Não um simples matador de aluguel, mas um homem de sólida convicção política, além de combatente corajoso da guerra civil espanhola, empunhando arma para defender os ideais republicanos frente à ameaça fascista de Franco. Até o final da vida, já tendo cumprido pena no México e vivendo em Cuba, ele nunca esqueceu a reação do inimigo ao receber o golpe na cabeça: “Saltou como se tivesse enlouquecido e deu um grito de louco.” Provavelmente, um grito que ecoa até hoje, feito o famoso quadro de Munch, nos alertando para o perigo dos regimes totalitários e dos podres poderes.