Por Wellington Soares, professor e escritor

 

A literatura é um projeto e uma missão de vida

Foi ao ler Mulheres incomuns que conheci Vanessa Trajano. Era sua estreia na literatura, ano de 2012. Um livro de contos que, à primeira vista, não se dava muito por ele. Projeto gráfico tímido, meio artesanal. Mas o impacto forte, soco no estômago, não tardou pra nos tirar a respiração. Texto a texto, era uma pancada só, com o fôlego retornando, aos tantinhos, apenas no final – saboreada a última história.

Ali percebi o desabrochar de uma escritora que, com destemor, alargava os horizontes das letras piauienses, substituindo a escrita comportada, vigente até então, pelo sentimento de estranheza. Deixando claro que, em termos literários, a vida pulsa sem mistificações. Ainda mais quando, focada na liberdade, traz, sem pudor nem moralismos, o exercício estético do erotismo.

Depois vieram, lidos com sofreguidão, outras pauladas: Poemas proibidos (2014), textos “obscenos” com ilustrações ousadas, pouco recomendável aos preconceituosos; Doralice (2015), romance  inspirado numa garota interiorana que, limitada por condições socioeconômicas, sonha em voos maiores para si; e, finalmente, Ela não é mulher pra casar (2019), reunião de 24 contos sobre mulheres que desafinam, cada uma a seu modo, a cultura machista cerceadora de direitos e felicidades.

Mas deixemos de lero-lero, como diria Bandeira, e ouçamos o que tem a nos dizer essa autora teresinense radicada em Brasília, mestra em Estudos Literários pela Ufpi e professora de língua portuguesa.

 

Mário Quintana dizia que “quem faz um poema abre uma janela”. Quais janelas você está abrindo, hoje, com a sua literatura? 

Acredito que quando as mulheres leem a minha literatura se sentem mais abertas, cobram menos uma postura moral de si mesmas. Porém, infelizmente vejo que escrevo não para a minha geração, e sim para as próximas, pois a janela está sendo aberta lentamente, num processo, como tudo ao longo da história. Nisso os leitores também têm participação, pois alguns (só alguns) entenderam que, na verdade, não existe mulher pra casar e mulher pra pegar, e que o título do meu último livro não passa de uma grande ironia.

Entre tantas profissões, por que você escolheu justamente o ofício da escrita? 

Prefiro afirmar que a escrita me escolheu, pois é a única coisa que persiste até agora. A literatura é um projeto e uma missão de vida. Só alguém com um mínimo de audácia e coragem teria peito para fazer o que eu fiz até agora, e o que ainda vou fazer. Muitas coisas precisam ser ditas, e eu percebo que os artistas e os intelectuais hoje estão indo para o caminho da unilateralidade. Todavia, quando leio os grandes clássicos e filósofos, percebo justamente o contrário: a observação humana, em sua completude. Desse modo, sinto-me obrigada a escrever minhas constatações de mundo (que podem perfeitamente não estar certas, mas isso é outra história).

Como explicar a obsessão pela sexualidade em sua obra e a reação nada cordial de muitos leitores? 

Não diria pela sexualidade, mas sim pela liberdade – o que acaba incluindo o sexo. Todos nós sabemos que se um homem tiver duas famílias ninguém irá denegri-lo por esse motivo, mas se uma mulher der uma simples pulada de cerca veja o que acontece com ela. Um homem pode ter uma vida sexual muito badalada, entretanto dificilmente assumirá relacionamento sério com uma mulher que também tenha, apesar de estar até apaixonado. Então friso nesse ponto justamente para mostrar que podemos ser iguais, pois todos(as)  temos nossos desejos e eles merecem ser atendidos. Acho que é isso que incomoda, porque o conservadorismo consiste justamente em querer que as estruturas permaneçam como estão, sem prenúncio de qualquer mudança. É uma ameaça tanto para aqueles que acham mais confortável do jeito que está quanto para as Amélias, porque elas ainda não entenderam que a mordaça que colocaram nelas é puramente social e deve ser desconstruída.

O que a leva a polemizar, nas redes sociais, com algumas mulheres? Você não é feminista? 

Como a Fernanda Young, demorei a me assumir feminista, não por negação à luta, pois a minha postura sempre foi de questionar a tudo e a todos, desde criança. Demorei devido ao fato de perceber certas questões nos bastidores que me conduziram, num primeiro momento, a generalizar quem carregava essa bandeira de maneira estúpida com suas ações incoerentes. Eu já fui atacada verbalmente por outra mulher na frente de cinquenta pessoas, já me xingaram para o meu melhor amigo sem saber disso, fora inúmeras histórias que eu poderia contar, mas isso aqui não é uma revista de fofoca. Então não acho que seja bem uma polêmica, é uma reação legítima. Levo a falta de noção dos homens até numa boa, pois eles se encontram numa engrenagem viciosa em que foram educados a nos cobiçarem como forma de provarem a sua macheza. Mas eu simplesmente não admito sofrer violência vinda de outra mulher, ainda mais se ela se diz feminista, porque aí subentende-se que é esclarecida e não deveria agir de tal maneira. Eu jamais polemizei com mulher alguma nas redes sociais, eu apenas expus, com indignação, como me senti em determinadas situações – até porque nunca coloquei nome de ninguém nessas postagens. E a respeito desse assunto, estou produzindo um Documentário, que se chama: A DESunião faz a FORCA! Sairá ainda este ano, com direção e roteiro de Camila Maia e montagem de Marcos Aureliano.

Verdade ou absurdo quando a comparam à escritora francesa Anaïs Nin? 

Se eu disser verdade estarei sendo muito orgulhosa, se responder absurdo serei injusta com o Feliciano Bezerra, quem primeiro me chamou de Anaïs Nin tropical, lá em 2012. Como a admiro demais, tal comparação é uma verdadeira honra. Estudei-a no mestrado, a minha dissertação é sobre a obra dela. Então, posso afirmar que essa relação é fundamentada sim, embora considere que falta muito para chegar ao seu patamar. 

De que forma não só a literatura como a cultura em geral ajuda a salvá-la nestes tempos de pandemia e isolamento social? 

Não está sendo um período que eu consiga produzir algo, mas o bom é que ando consumindo bastantes séries, filmes, livros e documentários. Se não fosse essa válvula de escape, seria bem pior. Não digo só por mim, por todos. A arte é, talvez, a única forma de  lembrarmos que ainda existe vida, da forma mais catártica que ela pode ser.

Em qual espécie literária você viaja com mais desenvoltura: poesia, romance ou conto? Explique. 

Considero-me uma contadora de histórias. Então se me atrevo em versos, às vezes, é porque pretendo escrever um enredo um tanto mais lírico e em outro formato. É sempre uma ficção, procuro nessa “mentira” dizer algumas “verdades”. Portanto, o melhor ambiente para mim é, sem dúvida, o da prosa. E ela escolhe se quer ser longa ou curta. Prefiro ler romances, mas me saio melhor nos contos enquanto escritora – embora a palavra final seja do público e da crítica.