Somente ao passar de volta por baixo da rede, no silencioso deslizar de suas inúmeras patas, tomo consciência de acordar em definitivo. Espreguiçar o corpo, abrir a janela do quarto, deixando que o sol da manhã, generoso em sua bondade, aqueça tudo ao redor. Essa tem sido a rotina, em tempos de Coronavírus, das últimas semanas. Virar as noites assistindo a bons filmes, pelo Youtube ou Netflix, e lendo, às vezes, algum livro. O despertar começa às onze e meia, ao pressentir ele, o emboá, na sua lenta travessia pelo apartamento, fato que acalma, por incrível que pareça, todos meus sentidos. 

Enquanto ele não retorna, fico curtindo a malemolência desse período de quarentena, sem pressa nenhuma pra fazer nada, exceto pensar na boca quente em que o mundo se encontra – incluindo o Brasil – com essa maldita doença. Passei boa parte ontem da madrugada, a exemplo das anteriores, matutando sobre esse abacaxi dos grandes, sobretudo, do tempo que os cientistas levarão para criar uma vacina, pondo fim ao encantamento de tantas vidas preciosas. Nessa loucura que paralisa os movimentos, órgãos estancados pelo medo, quem sabe não estejamos no ensaio, ainda de pouca letalidade, da futura guerra planetária dominada por armas bacteriológicas. 

Deitado na rede, curtindo as belas músicas de Chico César, aguardo em verdadeiro Estado de poesia, a chegada do sono

As pessoas isoladas em seu cantinho, proibidas de pôr a cara fora, e morrendo aos piqueiros, sem assistência médica, abandonadas à própria sorte. Angustiado, desloquei minha atenção, dado não ter resposta à crise tão complexa, para uma víbora que surgiu no teto, leve e sorrateira, justo no instante de atacar o inseto, através de golpe certeiro, não dando ao coitado tempo de perceber a indesejada da morte. Tal cena me proporcionou, não sei por que, um estranho sossego interior, embora tenha abraçado a vida com receio de perdê-la, ainda mais ao notar a inquietude da branquela, não saciada por completo, me encarando de alto a baixo. 

Foi quando recebi ligação de um sobrinho, nunca tão providencial, me pedindo que entrasse no Zoom, via celular, a fim de papear com alguns amigos seus da Europa. Queria que eu, engraçado por natureza, animasse um pouco essa galera que vivia, em face da Covid-19, um baixo astral quase depressivo. Pego de surpresa, o jeito foi improvisar, tascando de primeira, após os cumprimentos iniciais, que “a terra é redonda”, abrindo um sorriso galhofeiro em todos. Ao notar que o caminho era por ali, citando eguagens dos bolsominions, sapequei uma atrás da outra, sem tempo pra galera respirar: “nazismo é de esquerda”, “Menino veste azul e menina veste rosa”, “Rock é coisa do Satanás”, “Cultura é aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço”, “Eu vi Jesus no pé da goiabeira”, “Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado de coisa escrita”. Só parei quando dei conta que os gringos estavam sem fôlego, na maior gargalhada, alguns no chão, inclusive, de pés levantados, morrendo de rir. Sob aplausos, encerrei meu improvisado stand up com a máxima dos energúmenos: “fazer cocô dia sim, dia não”. 

De volta a mim mesmo, já que vivo sozinho, fui à Internet conferir as novidades. Uma chamou a atenção em particular, a que recomenda masturbação como forma de evitar a propagação do Coronavírus, sendo prática recomendável nos dias atuais. Por que o espanto? Simples, uma vez que outrora, não muito distante desta época, a punheta cinco dedos bronha vício solitário, a seu gosto o nome, era sinônimo de pecado grave, crime abominável, causa de loucura, ataque epilético, reumatismo, impotência, cegueira, surdez e, pior de tudo, perder a mão, ou as mãos, caso insistisse em bater com a outra, ostentando publicamente dois toquinhos de braços. Bom ver o mundo dar voltas, sepultando também mitos, crendices e fundamentalismos toscos, deixando o prazer em nossas próprias mãos. 

Enquanto o sono não chegava, preparei algo pra comer – um sanduba com suco de laranja – e escolhi um filme arretado de bom pra assistir: O poço, misto de suspense e terror com tirada política, ambientado numa prisão espanhola, que fala de classes sociais, egoísmo, solidariedade, capitalismo, indiferença ao sofrimento alheio, socialismo, violência, distribuição justa da riqueza e, diante de situações extremas, da mesquinhez humana independente de ideologia, tornando-nos uma espécie miserável, indigna de compaixão. Melhor que ver o noticiário da madrugada, nas TVs, sobre os últimos óbitos mundiais da “gripezinha”, com imagens de cadáveres amontoados em necrotérios, covas rasas e nas ruas de alguns países. 

Pra espantar de vez a insônia, recorro à releitura de Dom Casmurro, romance de Machado de Assis, atrás de descobrir o enigma que nos perturba ainda hoje: Capitu traiu ou não Bentinho? Quando aluno do antigo científico, tinha a resposta na ponta da língua – além de adúltera, ela era uma garota pra lá de dissimulada, uma grande fingida. Já como universitário, participando de júri simulado, abracei a tese do ciúme, uma vez que a história é contada por Bentinho, advogado dos bons, capaz de incriminar a “Olhos de ressaca” por considerá-la, como típico burguês, mais um objeto de posse. No sossego da quarentena, lendo com atenção, não é que o resultado, para meu espanto inclusive, descortinou um Bentinho apaixonado por Escobar, amigo dileto dos tempos de seminário. Interessante como a percepção da gente, a respeito de uma obra, muda ao longo do tempo. 

Deitado na rede, curtindo as belas músicas de Chico César, aguardo em verdadeiro Estado de poesia, a chegada do sono, que vem aos poucos, pálpebras fechando abrindo fechando abrindo, permitindo que ouça, em forma de sussurro, antes de apagar totalmente, a sensual voz de Josélia, musa inspiradora: “segure firme, meu bichim, que essa desgraceira toda vai passar, e logo logo, juro por Deus, retornarei aos teus braços”.   

Nesse instante senti, como num passe de mágica, a genuína leveza do ser, tudo por obra e graça da encantadora enfermeira que, de dois anos pra cá, vem tirando meu sossego, infelizmente obrigada há quase um mês, devido à sua profissão de risco, a manter distância de mim, sumindo com seus carinhos, seu olhar sedutor, sua pele cheirosa e macia, seus abraços envolventes e, motivo de grande revolta, seus beijos deliciosos. Antes de mergulhar no desconhecido, pressinto o emboá iniciando sua andança pela quitinete e grito, expressando o imaginário coletivo, o mantra atual dos brasileiros em relação ao presidente: “Bolsonaro, pede pra cagar e sai”.