Trabalhos no Subsolo

por Manoel Ricardo de Lima

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Isa Graça, Maíra Dal’Maz, Pedro Lucas Bezerra: enciclopédias mágicas

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Um trato de amor sobre os degraus de

um túmulo. Mas não é uma profanação.”

Emília Freitas, 1889

Angel Rama, crítico uruguaio [1926-1983], imagina a literatura diante de um impasse antropológico, porque uma das mais dóceis projeções intelectuais é a sub-reptícia fé no progresso, fé que leva-se a pensar que as últimas novidades são sempre as melhores coisas porque operam em confronto com algum oposto simétrico, que seria, noutro sentido, um pensamento desinteressado de qualquer verdade revelada. Assim, a escritora e intelectual argentina, María Negroni [1951- ], lendo Walter Benjamin, atenta à disposição naturalizada de uma linha evolutiva frágil e insensata, o inscreve como um fazedor de enciclopédias mágicas. Estas, por sua vez, organizadas entre micrografias do desejo e alumbramentos do inesperado, a pobreza abjeta e o luxo insolente dos dados do mundo, os fracassos e os testamentos etc. Um bom exemplo é o fascínio de Benjamin pelo circo, este espaço rodeado por um ar fabuloso, com jaulas vistosas e animais cativos que esfumaçavam esse ar.

Interessante lembrar uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria.

Estamos diante de um método de trabalho com o pensamento que tem a ver com uma miniaturização das coisas do mundo, ou, ainda, do pequeno mundo das coisas. Uma beira arriscada, porque microscópica e frágil, infinitamente inapreensível; tal como poderia ser a tarefa política do poeta, quando recupera a vertigem das crianças, arqueólogos lúcidos do vínculo inaparente entre nostalgia e rancor, aventura e jogo. Para Benjamin, sabemos, o poeta é aquele que exerce um procedimento combinatório impensado, impossível, para imaginar um mundo que virá depois dele, uma memória insuficiente para algum futuro. O imprevisto opera no empenho das afinidades secretas, ou seja, pensamento desinteressado, contra o descompasso da língua que, por sua vez, opera como controle e constituição objetiva da violência para organizar o modelo civilizatório de verdades reveladas.

Estamos diante, agora, de uma ideia de “poesia atual”, “contemporânea”, que muito pouco atua e promete menos ainda, porque quase toda ela é o que Rama toma como “corpus doutrinário”. Este corpus, no caso irremovível do terceiro mundo, a América Latina, por exemplo, da qual o Brasil é um país vizinho, ainda se apoia numa concepção exaurida: uma ideia fossilizada de autor, que é invariavelmente um produto de feira, sem trocadilho, e uma produção mais fossilizada ainda para uma circulação padronizada. Daí que, muitas vezes, a argamassa dessa produção seja cafona, um disse me disse que beira a fofoca, uma renúncia do corpo, sem violação normativa, sem voz, logo sem grito e sem silêncio, condenada a ter a língua arrancada.

Isa Graça | Foto: Luana Tayze

“Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”.

Interessante lembrar, como contra exemplo, uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria. E é essa transformação, prossegue o Leminski, que dá a um trabalho com a arte a ilusão de ser livre. Não à toa, repare-se, o disco de Isa Graça, Corpo Celeste [2024], nascida na Baixada Fluminense e radicada em Natal, no Rio Grande do Norte, abre com uma canção chamada Vênus [Estrela D’alva], que termina sugerindo a recomposição de uma sobrevivência: “Sonhos desaparecidos no meio de nós / Cantando que não vão calar minha voz / Soberana flor regada por sóis / Explodir meu algoz”. São canções de amor, impressas sobre um tempo em que o amor resulta inútil, porque é mera palavra de ordem que despreza, convicta, a figuração de levante da presença daquilo que é, Eros.

Todo o disco de Isa Graça relembra, de pronto, o livro mais bonito com poemas de amor que foi publicado mais recentemente, O livro de Carolina [7Letras, 2019], de Carlos Augusto Lima. É a construção de uma linha tensa entre a música – numa conversa direta com algo de psicodelia, como Tame Impala, raspando algo dos Mutantes e da turma genial do Clube da Esquina –, e letras encantadas, casos de Farol, no trecho “Como sua pele ressoa o sol / O mais bonito do farol / Que guia o navio no nevoeiro / O inverno inteiro”, e Tamarilho (afrobeat), também um trecho, “Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”. Os usos da repetição, muito comum numa tradição da canção brasileira, sugere jogos de armar, o puzzle impraticável e insensato do desejo entre perda e compensação, reparação e desmando, nem lá nem cá, nem torto nem de pé, nem dormindo nem muito menos acordada. A escolha do nome Gracinha, para a banda, com as presenças de Rodolfo Almeida, baixo e vocais; João Victor Lima, guitarras; Mateus Tinoco, nos samples; e Pedro Lucas Bezerra, na bateria, se juntam aos instrumentos que ela mesma toca, da guitarra ao baixo, e voz doce daquela que se sabe mulher, homossexual e preta, recompondo os sentidos da delicadeza e da violência de uma “lucha contra este deseo”, como quando canta em espanhol na linda canção Cuantame.

“As mulheres cuspindo fogo/ para o alto/ para onde Deus não olha /[…]/ rezam baixinho/ sabem fazer colares de miçangas/ jogam futebol com os meninos/ e seduzem quem tiver/ assim na distração das margens”.

Pedro Lucas Bezerra | Foto: divulgação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A figura de Pedro Lucas Bezerra na bateria da Gracinha é praticamente um espectro, no sentido mais radical da ideia, como a projeta o filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini: “um esse objectivum, mais precisamente uma entidade de pensamento puro e, portanto, um atributo possível da natureza sobre a modalidade do pensar” e “a vida mais intensa possível”. Logo, o espectro não se vincula à metafísica, mas a materialidade do impossível. Está ali, ao fundo, chiaroscuro, ao mesmo tempo, a deliberação de uma ideia para o poema, o poeta, que publicou Trem Fantasma [Quelônio, 2021], redesenhando a cidade de Natal, onde nasceu e vive, cidade estrangeira, tal como um Nicanor Parra baterista, “o último poeta do mundo”, morto aos 103 anos, quando “de nada em nada, vamos caindo ainda um pouco”, anota Pedro no poema Para Nicanor Parra.

Dividido em 3 partes, tábuas de maré, tábuas de horário e os aterrados, o livro encena a cidade também como espectrologia, desde as epígrafes retiradas do Eclesiastes e de James Joyce, entre o que existe e o que não existe ainda, e a travessia de alguém por uma cidade em suas estâncias mais furiosas. Há muita linha de mar, de pedra, muitos cigarros, muitas solicitações urbanas comuns a todas as cidades do planeta, tanto faz se em Tóquio ou em Ponta Negra, certa eletricidade musical de um trânsito fixo e um bocado de expectação com raiva: “meus dentes habitam as carnes / cortam os plátanos / anunciam a raiva / outra vez a raiva / meus dentes não me dão medo / e a eles me volto quando amos os cães” e “as mulheres cuspindo fogo / para o alto / para onde Deus não olha / […] / rezam baixinho / sabem fazer colares de miçangas / jogam futebol com os meninos / e seduzem quem tiver / assim na distração das margens”. São traços e apontamentos que vêm também da poesia Beat, “O Brasil é o país mais deprimido da América Latina” e “Não rimarei / não nadarei no absoluto / não lerei as cartas de Newton Navarro / não olharei o Potengi sob o abismo” etc., depois e muito de Carlos Drummond de Andrade, das presenças de Roberto Bolaño ou de João Gualberto Aguiar, tudo como esperança espectral de força política num trabalho que começa expandido na deliberação do poema: “a coisa-viva que nos amarra”.

Maíra Dal’Maz | Foto: Helis Verônica

Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois, Maíra Dal’Maz e seu livro Vira uma pedra o tempo [Patuá, 2024], nascida em Monte Dourado, no Pará, e que vive também em Natal. Heitor Ferraz, poeta e professor, diz que os poemas de Maíra são um redesenho de sentidos e aberturas entre o poema e a experiência com o poema. Rápido, nas primeiras páginas, se percebe que há uma construção de contaminação, virótica, entre a vida e o texto, o texto e a vida, sem hagiografia ou mistério, o poema está todo lançado ao chão da sobrevivência: quando o poema ainda é o corpo que o imagina inscrever e, ao mesmo tempo, quando o corpo se inscreve no poema como se num precipício de devoração. O poeta italiano Pier Paolo Pasolini, em texto de setembro de 1968, O medo de ser devorado, afirma que “somos ainda determinados em nosso destino pelo medo de sermos devorados” e “penso que o desespero é hoje a única reação possível à injustiça e à vulgaridade do mundo, mas só se for individual e não codificado.” Pasolini imagina que o medo de ser devorado é, numa oscilação consciente, o desejo de ser devorado. Imagem dialética de uma realidade infinitamente mais extensa do que os sistemas dominantes que a encobrem.

O livro de Maíra, dividido em 2 partes, Tempo e Pedra, é das coisas mais fortes que apareceram na poesia brasileira recente. E o é exatamente porque inscreve o desespero da confrontação do real em toda a gradação desmesurada do que um real é, impõe, projeta. Maíra devolve a língua à língua, todo terror e todo desejo que vêm até a devoração; basta ver que as marcas mais íntimas de seus poemas se ampliam e se desgastam ao demorarem num gesto para a comunidade, gesto que se aproxima de uma obscenidade que a “literatura” de agora não suporta, porque quase sempre é carola, cristã-capitalista culpada e ressentida, senão não vai pra feira financiada por empresas que matam pessoas e destroem florestas nativas o tempo todo como se não tivesse havido nada. Maíra, depois da entrada, diz no poema Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”. São apenas duas linhas e nenhum horizonte, esta linha matemática inventada para dominação, controle e poder.

A série que segue essa máxima entre escrever-brincar tem personagens geniais, porque destroçados pela religião e pela fome: uma avó e os tempos famintos, um pai ensacador de bolachas, outra avó que não come polenta porque esta sabe a fome, uma mãe vendedora de flores de pano e sonâmbula etc. Importante ler o quanto a imagem do desespero, ou o desespero mesmo, ainda não é um mero contrário de esperança,  mas sim o desejo de sobreviver com esperança e, mais, o desejo de sobreviver à esperança que é o enlace dessa pedra/tempo, desse tempo/pedra. Em poemas como Belchior, uma referência direta ao cantor e compositor dos mais geniais da canção brasileira no século 20 [que aparece de novo, diretamente, no poema Lithium e em outras linhas por todo o livro, também como espectro], quando há uma disposição de jogo entre nascimento, medo, choro e viagem, uma vida e alguma coragem; e Solstício de verão, quando desempenha perguntas entre a terra, o tempo, uma vespa e a dimensão demoníaca de um “exatamente”, por exemplo, aparecem as questões que mancham esse obsceno desesperado. Tudo, no livro de Maíra, respira com dificuldade e, num sopro, com a erudição de um pensamento livre e errante, modulado por um vocabulário sertanejo, nordestino, aberto, desinteressado, contraria a fé no progresso e as linhas frágeis e evolutivas do que se toma como poema, agora. Leia-se aí os pequenos poemas, Amor: “jamais abrir mão dos rituais / fumaça, livros / vários nãos / nenhum filho”, e Joan Didioni: “Joan DIdion pergunta a seu sobrinho / se ele tem uma cobra / ele responde que não / que pega um ancinho e mata // se você mata uma cobra, / quer dizer que você a tem // é preciso registrar isso / o que se diz é um ato / de vida e de morte”, e pode-se imaginar o quanto se está diante da inscrição do poema como memória insubmissa e enciclopédia mágica.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2]. Acaba de lançar O lado esquerdo + Jeanne Moreau [Mórula/Cultura e Barbárie]. Publicou, entre outros, A guerra da água [7Letras], Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin]. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.


            

Aline Prúcoli, Jorgeana Braga, Priscila Amoni: trabalhadoras da terra

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“mas hoje, de novo, os poetas trabalham”

Ruy Belo

“para todo poder, leis”

Isabelle Eberhardt 

A pequena e encantadora ilusão de Ruy Belo [1933-1978], nascido em Portugal, numa entrevista de 1976, a de que os poetas, de novo, trabalham, ao imprimir a ideia à situação violenta do capital entre poder e opressão, língua e nação, Fernando Pessoa e povo etc., apresenta o impasse de que o poema, o pensamento, a imaginação se, antes, poderiam agredir e existir em luta, vinculam-se muito mais à ausência de jogo e fúria e, numa inversão de tudo, convertem-se terrivelmente conformadas em bem estar, vida familiar e saúde. Reclama, por fim, em seus últimos livros, Toda a terra e Despeço-me da terra da alegria, por exemplo, das “secas árvores do meu país” e do quanto “a vida tem aspectos criminosos”.

O que Antonio Gramsci, de outro modo, apontara bem antes, em texto de junho de 1921, acerca da participação camponesa na luta proletária, os trabalhadores da terra, as “vozes da terra”. E isso diz muito, muitíssimo, escutássemos devagar essas vozes, vivas e materializadas, com força, noutro exemplo, do que vem do Movimento Sem Terra, o MST, sem dúvida, o movimento de luta política pela reforma agrária dos mais importantes do planeta. A canção de Milton Nascimento e Chico Buarque, Cio da terra, gravada pela primeira vez em 1987, por Pena Branca e Xavantinho, já anuncia também um bocado do que essa imaginação amplia, bastariam 2 linhas: “afagar a terra / conhecer os desejos da terra”. Conta-se que nas primeiras reuniões do MST, os presentes a cantavam quase como formas e dobras de oração, hino, gesto, dádiva etc.

O que sobra, diante do vazio em que estamos agora, dimensão inócua, de uma atualidade político-ecológica da imaginação [quando atual, se político, é ao mesmo tempo o que atua e promete] e, principalmente, com a imaginação, quando ainda é capaz de pensar e mover as coisas um palmo, que seja, para algum lado? A aposta de Walter Benjamin, “destruir a destruição”, outro exemplo, busca enfrentar a exploração da natureza e as relações criminosas com o modelo único e cretino da “civilização capitalista”. Há uma inferência constituída pela ideia fascista dos “estados-nação” que se atravessa, como falsa saída circular, da política para a polícia; ultranacionalismo e democristianismo evidentes como estratégia de culpa e esperança ilusórias a um neoliberalismo desenfreado. É isto que gera e produz, industrialmente, numa escala absurda, um contingente de refugiados para morrer de fome ou a bala ou estruturas bélicas associativas para a prática de genocídio, como o que acontece em Gaza, com os palestinos, desde, pelo menos, 1948.

Agora, se os tempos em que estamos se equilibram entre neurose e necrose, ou seja, consumo máximo, máximo consumo, e quando nada escapa à imposição da lei, porque até quem imagina-se contestando a norma imposta pelo direito, só projeta alguma mínima resposta a isso no contraponto sugerido pelo próprio direito sempre dominador, que é o truque fatídico da ideia de crime. Todo o resto, como linguagem, parece cumprir-se numa ausência de caráter, o abilolado, retirando dos jogos da imaginação o inespecífico, que pode ser o que ainda escapa à lei, à regra, a uma origem, a uma identidade, a um território [termo sempre fascista] etc. e se lança ao mundo e a vida como uma vagabundagem: Eros, errância, frescor, liberdade e coragem.

As poetas Aline Prúcoli e Jorgeana Braga e a pintora Priscila Amoni: ou como reinventar uma inatualidade. [ Fotos de Aline e Jorgeana: divulgação + foto de Priscila: Cadu Passos ].

Reparar, mesmo que rápido, em algo dos trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, num encontro imprevisto, heterogêneo, série convulsa, é tentar expandir possibilidades ao atual em sua força para o político, ou seja, quando atua e promete, e não apenas no que se instala como banalização da crise, sem formulação ecológica, que é, por sua vez, instável. Aline é nascida em Vitória, Jorgeana em São Luís, Priscila em Belo Horizonte. Há o deboche sudestino, entre Rio de Janeiro e São Paulo, do “Brasil profundo”, mas essa é muito mais a história de uma transformação cultural, metamorfose para o impossível e revolução de conceitos, festina lente. Essas três artistas movem a forma do que fazem a um como fazem, da forma até a forma, que é também pensar sobre o pensamento ou como reinventar uma inatualidade.

O último livro de Aline Prúcoli, depois de coisas geniais como Pustulâncias e ανατομία, parece um jogo simples: [in]porta:nte [todos pela Editora Cousa], mas é uma impressão subtraída entre a experiência dos dias que se arrastam e a captura de imagens dessa experiência numa errância do corpo partido ao meio sob a perspectiva da terra encravada pela arquitetura moderna: é a porta que impede a existência do bolicho, as grandes salas das casas sertanejas das classes mais pobres, ou do porxo, as grandes salas das casas camponesas de Ibiza que fizeram Walter Benjamin repensar a máquina bélica que é a arquitetura moderna, quase sempre e apenas para o bem estar dos ricos. Aline impõe uma dilação erótica a essas portas, fotografadas por ela mesma e soltas numa caixinha como postais sem envio certo com textos em desenhos gráficos de letras anuladas, apagadas de fato, sem truque, quando tudo é moeda falsa, extinção de um si mesma, aprendeu com Derrida, o africano: “sopro q c enfia orifício a dentro. pau a c meter canal acima. agora 1 carne incha na sala d’estar. encostar nos móveis a toda hora: aparadores tão amigos: ñ há solidão. […]” ou “saldo do dia: 9 programas; 2 anais; 5 completos; 2 q só queriam conversar; pelo menos uns 7 palavrões no ouvido; 3 tapas no quadril; 4 puxões d cabelo; 2 arranhões nas costas; uma proposta p/ cocaína; 1 p/ não usar camisinha e algo em torno d R$ 450,00. ainda bem: amanhã: fazer apenas 3, talvez 4: a depender do 3°, pelo menos R$ 200,00 p/ poupança/aposentadoria”.

[in]porta:nte, de Aline Prúcoli: a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição

O trabalho de Aline, há tempos, é um arremesso deliberado que se engendra entre a professora, pesquisadora, estudiosa erudita, com risco, e a sua condição feminina/feminista, mulher e mãe, com a força de quem em momento algum negocia o que faz em troca da piedade da aparição. O que se lê, e agora mais do que nunca, é o sentido que Aline imagina tocar ao avançar sobre a terra diante da causa das outras mulheres, laceradas por imposições machistas e patriarcais, violentas, e de toda uma horda humana lançada à miséria da vida comprimida por um capitalismo assolador: “depois de 15 facadas, ainda há fome? na gaveta ñ há + pano d prato saco d lixo e perdão” e “ñ fazer apenas uma vez por ano só / provar ao mundo q c é caridoso. […] fome é 1 troço bem grande q nunca fecha os próprios olhos. apenas os olhos alheios.” Cada porta, assim, não guarda segredo algum, mas são a cada página livre e texto uma transparência da guerra dos dias, do ordinário mais previsível, da falência das coisas e dos corpos ao nosso redor. Tudo o que a vidinha corriqueira, urbanizada e civilizatória, de todos nós, o tempo todo, mata.

Um outro modo de tocar a terra, a causa de UM OUTRO, está no trabalho de Jorgeana Braga. Txaiuirá [Ed. Urutau], seu último livro de poemas, com um lindo e encantado texto de orelha de Celso Borges, chamando atenção para esse ritual que finca o pé na terra, a terra no pé, entre a pele e carne, indicando o termo: uma leitura sensível e partilhada, rota de pássaro [wyrá, no tupi], entre uma ideia de sertão como experiência e convívio, não apenas como letra, e de litoral, onde parece morar uma tropa dos ossos de vivos e mortos. E aí, de novo, de outro modo, Eros vem, firme, fundo, a alucinação da “jurema travosa”, quando “morrer não é doença” e até “entrar viva no desaparecimento”. Nos textos de Jorgeana se lê outra coisa, outra ruma e outros rumos às coisas e tempos, um misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem, e a presença inoperosa da floresta, do mato, das plantas, dos ventos, dos rituais em canto fulni-ô etc. e no movimento e no traço da letra que se alargam porque vêm de quem mora e se demora no que a terra ainda é.

Txaiuirá, de Jorgeana Braga: misto de ancestralidades índia e preta, preta e índia, sem ordem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”.

No lindo poema Norte, de uma só linha, ela anota uma inversão da imagem: “Gavião só baixa a cabeça pra chuva”. Procedimento que está por todo o livro, tanto nos textos menores, curtíssimos, quanto nos maiores, de página inteira. Noutro, quase mínimo, de 3 linhas, ela diz: “Levar a casa nas costas / Como uma borboleta que voa / Para dentro da terra.” Esse método está vinculado ao deslocamento físico do corpo entre pequenas aldeias que aparecem, muitas vezes, em anotações propositivas para repensar a vida nas grandes cidades movida a dinheiro e desconversa: “[…] / a cidade afoga o mundo / afoga os laços / os nós / e aquelas amizades que viraram de costas / pura convenção de uma mesa de bar em qualquer lugar / não há fé no asfalto / a gente tem que subir o morro pra isso / […]”. Jorgeana Braga risca o chão do poema com o seu corpo, uma mulher emprenhada de nordeste entre a vida no chão do real – “o silêncio que vem de cima”, “a ponta fina de um coração que não espera nada” e “ameríndia que habita a noite / coração de rocha que se apanha de águas doces” – e alguns mistérios que ela mesma inventa para nos lembrar que se há poetas que, de novo, trabalham, tem a ver com o lance inesperado de uma dicção alucinatória que escapa, corajosa, da dicção repetitiva e conciliatória da muito celebrada e muito premiada “poesia brasileira contemporânea”, este cansaço de umbigos sem poesia e sem poeta nenhum.

Criança, 2022, Sete Lagoas (MG), de Priscila Amoni: quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político.

Por fim, é o gesto do trabalho de Priscila Amoni, pintora, numa dimensão para além do olho, sem condicionamento retiniano, descolamento da técnica de ateliê entre cavalete, pincel e tinta para a escala do muro, da parede, em espaços públicos, urbanos para recompor uma invenção da terra. Pode-se imaginar que há nesse gesto, quando pintar com pincel passa a ser uma questão de escala, algo que remonta a um empenho político entre restituição e retratação de um passado que se revolta e invade a cena num processo de restauração tal como nada nele tivesse havido. Priscila desmonta o controle da luz, numa aprendizagem que vem do contato com outras pessoas pintando e de pintar junto com outras pessoas, para uma luz imprevista mais próxima da duração de uma visita, tanto na temporalidade das ruas quanto na composição de uma ideia de comunidade. É, ao mesmo tempo, a modulação do convívio com o entorno, ou seja, corpo e corpos, corpos e corpo, e a demora do pincel sobre a superfície do muro, da parede, numa tentativa heterogênea de leitura do lugar, do espaço, da vida que circula e se engendra ao redor. É praticamente uma urgência e uma emergência traçar essas linhas esfumadas do retrato de mulheres, pretas, brancas, velhas, benzedeiras, de terreiro etc., ou, num recorte de inferência em lançar sobre a paisagem exaurida da cidade, quase sempre a mesma, os impasses que figuras de bichos e plantas podem convocar como rememoração alguma sabedoria ancestral: o que ainda se pode receber da natureza contra as ações de avidez movidas pelo mundo capitalista neoliberal que nos rege o tempo inteiro.

Dona Geralda, 2024, de Priscila Amoni: “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU.

Repare-se em pinturas como Criança, de 2022, ou Dona Geralda, de 2024, ou, ainda, Rainha Bela, de 2019. São pinturas que remetem, de certa maneira, ao projeto dos muralistas mexicanos, como Siqueiros ou Orozco, entre revolução e sonho; transparências consistentes acerca da equação “ver-se, vendo”, mirar-se na figura que é pintada e, ao mesmo tempo, desejar uma dissolução de todo EU diante de uma suspensão provocada por uma paleta muito singular que ela cria, inventa; uma paleta vibrante, solar, difusa, e que Priscila chama de “ensolaramento”. Como pintar lançando-se, corpo, à pintura e, sobremaneira, esmagar esse corpo diante da escala e da cor e no pequeno gesto do pincel na superfície imensa até esse corpo, que pinta, desaparecer. Tanto que as figuras pintadas recompõem e reposicionam os corpos de expectação à espectros, ao inespecífico do contorno, sem explicação, como se magias perdidas, segredo, mistério, pausa.

Assim, diante dessa sobreposição de tempos improváveis, os trabalhos de Aline Prúcoli, Jorgeana Braga e Priscila Amoni, trabalhadoras da terra, mãos na lama do mundo e suas delicadezas, retratam e restituem, por exemplo, o impossível de Cézanne quando visitava, todas as manhãs durante uma viagem a Veneza, a capela de San Giorgio para confrontar-se com a luz que invadia a gruta e sem conseguir pintá-la. Para o poeta Joaquim Cardozo essa é a mais genial pintura de Cézanne: a que ele não fez.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

Paulo Leminski, leitor do sertão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“Não há mais tempo. O tempo acabou.”

Paulo Leminski

Manoel Ricardo de Lima, que assina a coluna trabalhos no subsolo, propõe numa série de 5 textos, uma releitura do trabalho e do pensamento selvagem do poeta Paulo Leminski [1944-1989] no ano em que se completam 35 anos de sua morte. A série parte da ideia de um Paulo Leminski, leitor. O texto que abre a série é Paulo Leminski, leitor do sertão.

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Agora, em 2024, completam-se 35 anos da morte de Paulo Leminski, morto em 07 de junho de 1989. Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras que só piora a cada ano, um malogro imaginado por Machado de Assis que, irônico e propositalmente e para rir de nós no inferno, nos legou esse deboche definitivo, a última de suas negativas –, é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, de todos os modos, nomear poeta. Como Ismael, o contador das histórias do leviatã, poeta não é quem diz “chamo-me”, mas quem imagina um espectro que vem do chão, sem metafísica, dizendo “chamam-me”. E que, mesmo assim, ouvindo o chamado, diz não, o tempo inteiro.

3 anos antes de morrer, em 1986, num seminário organizado por Adauto Novaes, através da Funarte, no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Curitiba, “Os sentidos da paixão”, ele participa com uma conversa deliberada, Poesia: a paixão da linguagem, retomando, essencialmente, o que apresentara como proposição em dois textos daquele mesmo ano: “sertões anti-euclidianos” e “grande ser, tão veredas”. O mais interessante é que faz uso de pequenos comentários ao que, natural e ordinariamente, se conhece como “prosa” para falar do que, também ordinária e naturalmente, imagina-se como “poesia”. Mas o ponto de insurgência aí nem é essa relação precária já levada a cabo tantas vezes, prosa/poesia, mas sim uma imaginação laceradora do pensamento que se lança através das figurações do sertão, como experiência, o que Leminski não parece ter tido – senão através do biografema que faz do corpo preto, esquálido e morto de Cruz e Sousa num vagão de trem entre cavalos –, e, depois, como imagem rarefeita, o mais perto possível de uma imaginação revolucionária ao ler esses livros impensados.

Depois de Drummond – que recusou por 3 ou 4 vezes entrar para a vida imortal numa tetraplégica academia nacional de letras – é certamente Leminski o único a quem ainda se poderia, no Brasil, nomear poeta.

Ao mesmo tempo, Leminski, este muito bom leitor do sertão sabia que é impossível tocar esses dois personagens-escritores tão díspares e esses livros também tão díspares, Os sertões, de Euclides da Cunha, 1900; e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, 1956; sem tocar num ponto do que afirma em direção a um si mesmo que advém daquilo que lia e, muito mais, de como lia aquilo que lia: “o pensamento que alimenta e abastece uma experiência criativa tem que ser um pensamento selvagem, não pode ser canalizado por programas, por roteiros, tem que ser mais ou menos nos caminhos da paixão [pela linguagem].” Daí que nos lembre, muitas vezes, o quanto Glauber Rocha é um exemplo que persegue como exímio leitor do sertão, não só porque devorou os livros de José de Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e, numa outra ponta, de Guimarães Rosa, mas porque, principalmente, para ler este último, escreveu ele mesmo um romance, o genial Riverão Sussuarana, publicado em 1978, numa convocação do  Bloom, de James Joyce, e de um Riobaldo amalgamado em êxtase com Diadorim. A figura de Glauber, do pensamento de Glauber, é uma constatação efusiva de uma materialidade imanente da paixão, porque Leminski insiste na ideia de que o que está na moda é a palavra paixão, não a paixão.

A recuperação das ideias de que “nenhum livro / teve sobre a cultura brasileira letrada / o impacto de “os sertões” e de que se está diante de um “cordel de guerra / de um homero anônimo / onde a crueza das ideias e expressões / se expressa em bárbara ortografia” se expandem até o vórtice destrutivo, porque se aproxima do materialismo histórico sugerido pela anacronia heliotrópica de Walter Benjamin, de uma ancestralidade imprevista; para Leminski “dele descendem / “macunaíma” / “vidas secas” / “o tempo e o vento” / toda nossa prosa regionalista / até o sertão máximo / “grande sertão: veredas” / onde o gênio de guimarães rosa / dá ao sertão uma dimensão cósmica / num texto rico como os de Joyce / encerrando com chave de ouro / o ciclo mais fecundo da literatura brasileira.” Leminski o lê como se fosse um delicado haicai, A TERRA / O HOMEM / A LUTA, ou tal como o “abc de incredulidade”, texto popular recolhido por Euclides num de seus cadernos, e remonta o gesto de sua própria e incondicional formação zen-marxista-trótskista, ao nos lembrar que a literatura, se imaginada para um impossível, poderia penetrar as massas ou quiçá uma classe popular como força social, o que é muito próximo do que Benjamin também sugeriu como “utopia irrecusável”.

O gesto de leitura de Paulo Leminski é tão inespecífico e movediço que contraria a si mesmo ao dizer que entende que “os textos mais subversivos” de Rosa estão reunidos em Primeiras estórias, “com toda a sorte de violações em relação aos sinais de trânsito da linguagem, não só da linguagem literária mas até da linguagem enquanto veículo de comunicação entre os falantes da língua portuguesa.” Daí que afirme também que se o grande romance de um ocidente suposto tiver sido escrito em basco, ele não há; e que escrever em português e ficar calado, “mundialmente falando”, dá no mesmo: “é mais que basco, mas é muito menos que o espanhol”. E que se há “um caráter jagunçal” na literatura de Rosa é, exatamente, porque ele vibra numa aposta entre a forma e o conteúdo para a construção de um terceiro, “uma força da língua”, quando o escritor não é algoz nem vítima da língua, mas aquele que se lança à escritura com todos os movimentos do corpo em direção à paixão pela língua, pelas línguas. E projeta categórico que Rosa “jagunceia [a língua] por precisão”, tanto que os seus textos vertidos para o alemão, inglês, francês ou italiano perdem, exatamente, diz ele, “o caráter jagunçal da linguagem”. O que acontece com Joseph Conrad, o polaco Józef Korzeniówski, que vai da Polônia para a Inglaterra e, segundo ele, “se britaniza” para tentar gritar na língua do capitalismo colonizador mais violento do século 20. Conrad que, por sua vez, muito bem lido por Belchior, genial cantor das coisas do porão e de um sertão condenatório e outro exímio leitor de Euclides, Rosa e Glauber, aparece com força na canção Coração selvagem e num truque final de uma sobreposição de línguas que todo sertanejo inventa: “Meu bem, meu bem, meu bem / Que outros cantores chamam baby”.

Leminski se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. No meio disso não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, o que produz a inexistência de tantos outros, muitas vezes mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes.

Jacques Derrida, no seu mínimo e denso Paixões, texto de 1993, diz que amar alguma coisa na literatura é amar um lugar do segredo, algo como “não há paixão sem segredo, este segredo, mas não há segredo sem paixão. Em lugar do segredo: aí, entretanto, onde tudo está dito e o resto nada mais é senão o resto, nem mesmo literatura.” A ideia de que a literatura previa, como sentido e paixão da linguagem, DIZER TUDO, DIZER A TUDO, quando ela é uma paixão sem martírio, para Leminski, já era. Termina na farda, numa conformação, no uniforme, este mesmo que alguns dizedores do sertão, como João Cabral, de família escravocrata, senhora de engenhos, e Guimarães Rosa, mesmo que tenha optado pela vida entre vaqueiros, não tenham conseguido recusar, porque diante da mercadoria nada se recusa, ela é mais rápida, indômita, violenta, legalizadora e legisladora, anula e encerra toda e qualquer paixão. E aí, nem adianta, segundo Leminski, entrar no universo dos José Lins do Rêgo ou das Rachel de Queiroz, esta última uma legítima apoiadora do golpe militar de 1964; nos sobrariam apenas os livros fortes e as tomadas de posição de Graciliano Ramos até o cárcere e depois, liberto, abandonado pela polícia aos trapos e farrafos na esquina do Largo dos Leões com rua Alfredo Chaves, no Humaitá, Rio de Janeiro, porque era o único nome de rua que lembrava e conseguia dizer sem parar. Ironicamente, o endereço da casa de Dona Naná e José Lins.

Um direito da literatura à morte, sem fuga e sem tempo, é que faria do escritor, o poeta, alguém tomado de coragem e fascinado pelo perigo. Mas “os tempos estão difíceis”, diz Leminski, e o poeta já era, acabou. No seu caso, se não tinha a experiência convicta do sertão, a que só é se com o corpo lançado ao espaço como deriva e vulto, justamente como a empenha o poeta, estudioso das coisas da terra e leitor diferido de Rosa, Carlos Augusto Lima, ao menos não foi um signatário efêmero como Mário de Andrade que, na sua travessia pelo Nordeste e pelo Norte, registra risonho um lapso que diz tudo: “Esqueci do Piauí!” E isso está tão posto e imposto que, por exemplo, até os dias de hoje, “não há” nenhuma literatura brasileira produzida nos anos 1970 que não tenha sido escrita apenas entre a praia de Ipanema e a instituição “esses poetas”. A denúncia ao “mal contado” é de que “boa parte da nossa ficção é contabilidade”, de que “o mal é de família” e de que “comparada com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latino-americana parece uma literatura que enlouqueceu”. Por isso, Leminski declara que “a última grande fábula brasileira é a de Grande sertão: veredas, […] de lá pra cá nossos ficcionistas se debatem entre naturalismo e a máquina fotográfica.” E é este pequeno “de lá pra cá” que demonstra a ideia imposta de “acarinhar o leitor” e da “forma de sucesso garantida” também numa poesia que é mera “prosa empilhada em versinhos, como está cheio o Brasil”.

Numa mesma modulação, sempre se perguntava quem, nesse país, lê e, mais ainda, quem no Brasil consegue perceber como lê o que imagina ler. E isto numa disposição para remover o imutável: “analfabetismo, alto custo do livro, falta de bibliotecas públicas, falta de preparo, de educação do gosto, de interesse e de procura” e “é a transformação em mercadoria que dá à obra de arte a ilusão de ser ‘livre’.” No meio disso, dessa anestesia, não se pode esquecer da grana imperiosa das corporações do mundo editorial para a inserção desse ou daquele livro, especificamente, o que provoca e produz a inexistência de tantos e tantos outros, muitas vezes muito mais interessantes, mais políticos e mais pertinentes, sem compromissos com uma agenda da hora ou com um vocabulário usual e mímico e nenhuma invenção imaginativa. Não há mais nada que não seja do plano do capital e da violência do que o capital determina em sua dimensão indômita, até – repare-se a ironia – no que deve ou não ser censurado, porque sempre é para tudo apenas o que está à vista imposto por essa mesma violência.

O projeto de leitura do sertão proposto por Paulo Leminski é, por vezes, maravilhosamente anárquico, anarquivista e selvagem; sem uniforme, completamente informe, porque ou se implica hermeticamente o corpo ferido e alegre num contágio com a terra ou é só novela das 7. E isso tem a ver com aquilo que Herberto Helder, que imaginava um Rimbaud impossível porque só seria o que é se for um discípulo ancestral de Godard, chamava de “gramática profunda”, e essa gramática é o princípio e o precipício do que se lê como política e gesto para a composição heliotrópica de uma comunidade: “a transformação mais insignificante de todas”. No entanto, Leminski, corajoso e subversivo como sempre, provocava naqueles idos de 1986: “qual a linguagem que não se escreve? qual é a linguagem em que a poesia nunca chega?” e “não há mais lugar para a paixão, porque a paixão é o desejo projetado para a frente. Não há mais nada lá na frente, apenas o apocalipse. Não há mais frente.” Acertou na mosca.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

Rhaina Ellery: o rancor e um enorme buquê de questões

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Viver… viver é assim, aturdir-se?

Aqui se batalha e aqui não se para.” 

João Antônio

Numa entrevista para Michal Ben-Naftali, 2004, Jacques Derrida, o africano, em torno de ideias e conceitos como amor, lei, direito, justiça etc., e impressionado com o tamanho da primeira pergunta, começa dizendo à sua amiga: “Trata-se de um enorme buquê de questões.” É no impasse da individuação que, a partir da psicanálise, delibera um pensamento ao que imagina como desconstrução nas figuras de um eu, o sujeito, a pessoa, e comenta que somos vários, divisíveis. Argumenta que o que se aprende aí é que somos sempre já divisíveis, várias pessoas, imagens, imago. E, com força, nos lembra que não podemos ser o que se chama um indivíduo, exatamente porque este é o indivisível. Atesta que “Não somos indivisíveis” e que esse enunciado tem numerosas consequências: divididos, contraditórios, ainda mais se estamos no lugar de tantos e diferentes, se estamos dispostos ao lugar de UM OUTRO.

A modulação se constitui de um instante ao instante seguinte, desse modo impõe-se o juramento:  se preciso jurar que amanhã ainda amarei alguém é porque é possível que isso mude; se não, nem precisaria jurar. Ora, o amor é ambivalente, só seria puro o amor de Deus, e isto não há, está à salvo somente no NOME, ou seja, naquilo que inventamos como proteção. Nos protegemos contra a divisibilidade para não virarmos pó. Apelamos para deus, deuses, elementos místicos, ao nome do pai, da mãe, ao nome próprio e, ainda, a uma suposta formação com história. Fernando Pessoa levou tudo isso a cabo, apagar-se / diluir-se / desmanchar-se, com mais de 100 heterônimos para desmontar qualquer sentido precário de um EU que não treme. Apresenta, em desassossego, a responsabilidade política de um pensamento que treme, porque o corpo e o solo tremem diante de uma tomada de posição a UM OUTRO, como UM OUTRO, entre silêncio e segredo, e isto porque é sempre o outro, o inacessível, quem dita a Lei.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo na lengalenga. Mas não guardo rancor desfaz a brisa morna que, saída de regiões mais pobres, como o Nordeste, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta.

Assim, nessa cosmogonia excessiva e tensa entre o que se engendra como um EU e um OUTRO, quando tudo aparece como descompasso e descontrole, contradição e, principalmente, divisibilidade, é que se pode tentar cumprir os jogos das mulheres que são personagens do primeiro e impressionante livro de Rhaina Ellery [Fortaleza, 1980], um romance: Mas não guardo rancor [Patuá, 2023]. Uma narradora que se dissolve nela mesma e, ao mesmo tempo, na mãe e em tantos nomes e corpos de outras mulheres: Carmem, Martina, Tonia, Dona Áurea, Olympia, Otto. Em princípio, o que se reinventa no texto de Rhaina é a retomada de algo que está na composição de uma comunidade de mulheres desabitadas, mas em luta, como aparece no genial A rainha do ignoto, 1889, escrito pela também cearense Emília Freitas. Livro esquecido, deixado de lado, porque é sempre mais fácil manter as coisas tal como estão, eis o sentido da catástrofe. Tiago Coutinho, professor na UFCA, em Juazeiro do Norte,  nos lembra em sua tese de doutoramento [PPGMS, UNIRIO, 2019] que é Iracema, a vítima do estupro do colonizador português, quem de fato pode reescrever uma outra história de uma fundação cultural brasileira e, assim, de “nossa” literatura.

Rhaina Ellery | Foto: Camila Chaves

Porém, na outra ponta, a monocultura da mercadoria sugere um só padrão de  literatura, a da impostura, que se desenha numa cartografia plana e sistêmica, ou seja, ordenação do mapa: um meta-modelo que tem apenas uma face e que se resume a mesura, controle e poder porque não admite alternativas. E, dessa maneira, se limita a tecer arengas sem nenhum jogo de laceração da linguagem, mera linha de montagem, praticamente reza vazia. É a ladainha do que agrada ou desagrada a um circuito sem vórtice, ou seja, sem margem para escapar de si mesma, sem utopia, sem forças renovadas. Salomé e seu capricho ao pedir a cabeça de Batista, aquele que dá nome às coisas, ou seja, o poeta, num prato. O corte da garganta é o corte da linguagem para sacrificar o corpo vivo e indicar que a Terra é apenas uma cabeça [sem corpo, logo sem desejo] lançada à tabula rasa da história.

Uma escritora como Rhaina Ellery é um furo nessa lengalenga; é uma interrupção, um abismo, um esgotamento. Mas não guardo rancor é intenso, denso, reflexivo, inespecífico, carne e sangue, e desfaz essa brisa morna e desenxabida que, numa linha de fuga saída de regiões mais pobres, como o Nordeste brasileiro, quase sempre se lança aos encantos dos centros econômicos do país satisfazendo todos os ritos lambe-botas que o Sudeste lhes imprime. Ao contrário, esse livro é uma ventania violenta, quente, apresenta a vida no que ela tem de mais forte, porque inconclusa, quando qualquer poder que a persegue se dilui, quando a vida ainda é uma existência. E é assim que a narradora começa com um cinema acefálico ou, no mínimo, de cabeça pra baixo, quando quem nos sonha é o tempo inteiro UM OUTRO: “Tenho poderes. Ressuscitei minha mãe quando preenchi seu útero vazio. Nosso cordão era elástico: esticava até o limite do rompimento e voltava à forma natural machucando quem segurava suas pontas. Enquanto as cinzas dos anos me queimavam, íamos nos desfazendo, silenciosamente ansiosas: por quem arderia primeiro. Como aconteceu? Ateei fogo. Mamãe me encarava em chamas.”

O relato da narradora se passa em Curitiba, e enquanto ela se debate com a garatuja de uma cidade inoperante, própria ao afastamento e programada como exemplar para um falseado ajuste social, há também a habilidade de leitora que Rhaina é e que comparece o tempo todo em seu texto para mover as personagens por linhas sinuosas, oscilantes, esfolando o sentido da interlocução: “Já que vou contar tudo pra você, não me interrompa.”; e indicando que toda e qualquer individuação não é ainda e nem será depois: “Curitiba é uma boa cidade para morar: a mais verde da América Latina, potência econômica, uma capital organizada, planejada, racional. Sem contar que não precisamos conviver com ninguém: Curitiba é a cidade dos solitários. Minha infância? Uma merda.”

Mas não guardo rancor é um livro intenso e adversativo, atente-se aí à conjunção do título, problema do mundo e, mais ainda, quando todo o relato se passa durante a frase que abre o primeiro o capítulo – “Não conheci o filho da puta que fodeu minha mãe, mas não guardo rancor, é só modo de dizer.” Este recurso singular remete diretamente ao Agora é que são elas, de Paulo Leminski, 1986, quando todo o romance dura o tempo de uma pergunta mínima, cigarro na boca: “Tem fogo?”. É o rancor que se desfigura, que mata e morre, numa série instantânea de fotogramas que, em movimento, provocam a ilusão de que o tempo se move, princípio da física, desvinculação matemática, experiência-limite sem insinuação de esperança. As imagens lançadas ao léu no que é dito pela narradora são uma espécie de revisão, imagens recuperadas, para que sejam vistas de novo e de novo, por ela, numa projeção para frente através de um regresso no tempo e, também, das lembranças delirantes que provocam essas imagens a um futuro anterior.

Entre as personagens não há piedade nem penitência, não há perdão nem vítimas, todas são algozes de si mesmas e de todas as outras. E isto é uma expansão que só pode ser provocada por quem carrega consigo uma biblioteca impertinente, caso de Rhaina Ellery, que indica a contingência do quanto escrever não tem importância alguma. Por isso, na lata, é impossível não lembrar de João Antônio e seu conto informe Abraçado ao meu rancor [1986]: “Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao meu rancor” e “Não tripudie, pois, que este viver nesta cidade é tão ruim, que as pessoas trabalham continuamente até para esquecer que vivem nela.” E um trecho dos mais contundentes e bonitos do livro de Rhaina: “Na minha rua, tinha uma cabeleireira que atendia a todos fiado. O corte era péssimo, assim como tudo que é de graça. Diziam que era generosa nos cortes porque cobrava caríssimo pelos programas que fazia no Passeio Público. Graças a eles, pôde redesenhar seu sexo. Antes da operação era triste, ficou menos triste depois da xereca modelada, mas teve que se contentar em ser somente cabeleireira. Depois da cirurgia, perdeu todos os clientes do pau. Sua freguesia assídua era composta de maridos dispostos a gastar o olho da cara para serem penetrados por uma mulher. Ela retirou aquilo que mais os atraia: seu disfarce. […] Ela estava livre para ser quem quisesse, mas perdeu pau, dinheiro, amantes e a esperança de ser plenamente feliz.”

Por fim, é Beatriz Pôssa, exímia leitora e pesquisadora de João Antônio, entre os cinemas de Julio Bressane e de Ozualdo Candeias, quem afirma que “a construção das figuras de João Antônio se dão num terreno lamacento de recuperação com uma sensibilidade ímpar, não a ‘solidão menos doença nervosa’ como sintoma burguês da neurose, mas muito mais reflexo de uma angústia incomunicável sentida por todo o corpo.” Rhaina Ellery carrega isso por todo o seu livro em cada personagem, angústia incomunicável em todo o corpo, e a prerrogativa desejante de que “olhar é com todo o corpo”. Está-se diante de uma escritora em letras minúsculas, porque leva a ideia de escrever às últimas lascas de impressão da literatura que imagina cumprir como responsabilidade política: primeiro, um enorme buquê de questões; depois, quando essa responsabilidade é um pensamento que treme, quando corpo e solo tremem ao tomar-se posição para UM OUTRO, como UM OUTRO, silêncio e segredo.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

Marcia Tiburi: as metamorfoses de Helena num ser-apetrecho-mulher-político-que-vem

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Aprendi a viver no exato

momento em que eles morriam.”

Dacia Maraini

Há uma perspectiva rara, raríssima, entre os livros de ficção e de poemas que brotam sem parar no Brasil, quase todos muito frágeis, muito ruins, sem risco, abobalhados: a de uma esferologia mais densa entre o que é escrever e quando escrever é um pensamento com a política para tocar, com força, a causa do outro. Algo que, como o vazio e o nada que é, a literatura e suas impotências, possa expandir-se para além do egoísmo e da cegueira que rege o mundo com sua aparelhagem burocrática fascista para o ordenamento jurídico dos Estados-nação: a fronteira, o território, o direito, o cidadão, o povo, a soberania, o sagrado como um voto à morte, a vida que pertence a Deus [zoé], a vida política [bios], o asilo, o exílio, a crise da indistinção entre citizen e denizen, o refúgio do indivíduo singular que cada ser propriamente é etc.

Marcia Tiburi | Foto: divulgação

Mas quando essa perspectiva se abre, como saliência, salto e começo, junto se esgueira a alegria da leitura. Jorge Luís Borges anotava: ler é uma questão de escala. Não há passe de mágica, sobra a miniatura do mundo e suas pequenas coisas. E se escrever é, muito mais, “botar a boca no mundo”, como sugeria Torquato Neto, é também fazer do corpo um alvo fácil porque não se abre mão de dizer tudo, de aborrecer, de enfadar, de enfastiar, de fazer de cada palavra um perigo, quando a literatura ainda sonha, ainda é capaz de sonhar, ainda é capaz de mover-se à beira de abismos. Nessa brecha para o impossível, o novo livro de Marcia Tiburi – filósofa, feminista, ativista de causas impertinentes ao mundo masculino branco estruturado e violento, escritora, artista visual, Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve [Editora Nós, 2023] é uma espécie de elemento abiótico nesse descompassado “mapa” [este regime de controle e poder] da atual literatura brasileira tão estereotipada em seus modelos circulares de rodopio das mesmices

Há algo encantado no livro de Marcia que é o entendimento visceral do quanto recuperar e recompor uma história das mulheres é, no mínimo, devolvê-las ao abrigo de pertencer à terra. E aí, não apenas como herança, mas principalmente como legado. Helena, a personagem que dá nome ao livro, mas que está longe de ser uma protagonista, porque se amalgama a todas as outras, como Chloé ou Catarina, Gertrude ou Alice, Valéria ou Olívia, Bárbara ou a outra Helena, todas impostas ao mundo em meio ao jogo do quanto “a vida é uma alucinação”, “um inventário da violência comum que sofrem meninas e mulheres por todos os lados porque o mundo é dos homens”, “o medo faz parte da vida de todas as mulheres”, “porcos são melhores que homens”, “há um universo paralelo no qual as pessoas acreditam em Deus acima de tudo” e, no talo do impensado e com força na figura quase jagunçal de Helena, nem Riobaldo nem Reinaldo Diadorim, nem amazona nem destemida, nem neutra nem quixotesca, nem calcanhar de Aquiles nem Hamlet, nem Manon Lescault nem Emma Bovary, nem Oblómov nem Erica nem Adolfo nem Ahab, nem o anjo Malaquias de Mário Quintana nem o anjo galináceo de Paul Klee tão caro a Walter Benjamin, “é o corpo do ódio que ela aprenderá a reconhecer ao longo da vida”. A Helena de Marcia Tiburi, longe de ser também a grega feliz, é um contágio de todas essas personagens e, ao mesmo tempo, um apagamento de todas elas, porque habita a dimensão microscópica da dor em sua existência sub-divina e supra-humana. Nem deus nem o diabo, nem mistério nem milagre, nem infinito nem nome etc.

Se escrever é “botar a boca no mundo”, como sugeria Torquato Neto, é também fazer do corpo um alvo fácil porque não se abre mão de dizer tudo, de aborrecer, de enfadar, de enfastiar, de fazer de cada palavra um perigo.

O livro se desenha num vai e vem das temporalidades com o espaço, este é o ponto de insurgência desse texto tão vertiginoso e inventivo. Marcia é uma escritora de habilidade incomum com o espaço, não apenas o da literatura, mas também com a anulação do mapa a partir do ritmo e do empenho das frases, do enredo mirabolante, uma espécie de cinema impuro que, no percurso da narrativa, desfaz as linhas da viagem contornando os corpos dessas mulheres em busca de uma vida comum e a rama de homens mortos deixados pelo caminho: Helena mata. Entre o interior do sul do Brasil e o deslocamento pela estrada até Recife, em Pernambuco, atravessando o Rio de Janeiro, a serra das Araras, o Espírito Santo, a Bahia e o embarque de navio até Paris o corpo de Helena é uma modulação do inferno que faz desabar, por completo, o céu prestigioso e privilegiado dos homens. Uma mulher de corpo curvado, magra, quase invisível e aparentemente ciente de que sua solidão só não é penosa porque não está mais presa a uma identidade, mas é uma metamorfose infiltrada nos corpos de várias outras mulheres como se uma estranha transformação que só se torna movente, logo política, por causa de uma dimensão amorosa entre todas elas. Helena está vestida com as armas e as roupas de Joana, a criminosa e camponesa francesa morta pela inquisição, na fogueira, aos 19 anos, em 1431. E calça sapatos ordinários, aniquilados, sapatos que acolhem aquela que se equilibra entre o ser e alguma verdade.

E reparem que bonito, como Marcia é uma escritora impressionante, porque este seu livro nos remete à 3 conferências de Heidegger pronunciadas em 1936 e que,  publicadas anos depois, em 1950, são reorganizadas num texto só: A origem da obra de arte. O filósofo alemão está preocupado com uma ideia do conceito de “origem”, quando uma coisa é o que é e como é, a essência da coisa. E isto, reaberto, nos lança também a ideia de salto, saliência, começo, começar. E todo começar, sabemos, é político. No inabitual, entre o estranho e o espanto, o que Marcia persegue em seu livro de força, as coisas reaparecem e se reconfiguram como um campo livre de movimento, ação e gesto, o informe e a potência, o ente e sua existência como apetrecho. Heidegger vai até uma pintura de Vincent Van Gogh, que pintara sem parar, obsessivamente, uma série de sapatos de camponesas e camponeses. Diz-nos que estes sapatos são, naquelas pinturas, um descolamento e uma suspensão, “que não há nada em que se integrem, a que possam pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. Porém…”

E é neste “porém” que COMEÇA a trajetória e a luta das personagens de Marcia com a vida e contra o mundo masculino e perverso e cretino dos homens, porque, aqui vem o lance de dados que jamais abolirá um lance de dados, Heidegger nos lembra que há algo na escura abertura do interior gasto dos sapatos que nos olha, e aí está e mora [e se demora] o cansaço dos passos dos e das que trabalham. Ali está e aparece o lento caminhar por cada sulco de terra, pelo campo, o vento agreste; é no apetrecho, o par de sapatos, que “está o apelo calado da terra”, “o calado temor pela segurança do pão”, “a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor diante da ameaça da morte”. É o apetrecho que pertence à terra e o ser-apetrecho do apetrecho reside, diz ele, sem dúvida, na sua serventia. E afirma que “a camponesa, por meio desse apetrecho, confia no apelo calado da terra; e graças à solidez do apetrecho, está certa do seu mundo. Mundo e terra estão, para ela e para os que estão com ela, aí: no apetrecho.” A terra, assim, é o que guarda, o que dá guarida ao que salta, ao que se salienta, o que alberga tudo o que se ergue como efeito de outras origens, um recomeçar que é, principalmente, um novo começar.

Há algo encantado no livro de Marcia Tiburi que é o entendimento visceral do quanto recuperar uma história das mulheres é, no mínimo, devolvê-las ao abrigo de pertencer à terra. E não apenas como herança, mas principalmente como legado.

Se Heidegerr se implica ao dizer que, na pintura de Van Gogh, os sapatos camponeses se reconfiguram entre máteria e forma, numa origem mais funda, que esta origem é “um testemunho da essência original do ser-apetrecho”, não seria sem fundamento imaginar que a Helena desenhada por Marcia Tiburi nesse seu livro, em suas metamorfoses e metaformoses, anjo infernal e heteronímia expandida e incorporada de mulheres, é o ser-apetrecho, um ser-apetrecho-mulher-político-que-vem tanto como ferramenta ou instrumento, mas também como munição, utensílio de guerra. Apetrecho é também, numa abertura do étimo, uma disposição, logo um caráter para tocar o que é a verdade e como ela pode acontecer.

A narradora de Marcia, a certa altura, tece a trama e inscreve a impressão severa daquela que dispõe seu corpo como um golpe decisivo: “Talvez ela devesse contar a essas mulheres, cujos olhos não provocam medo, que seu pai matou sua mãe, que ela foi deixada para trás pela polícia, que os policiais a levariam a um orfanato, mas decidiram atacá-la no meio da estrada e espancá-la, dizendo e fazendo coisas incompreensíveis e dolorosas, enchendo o seu corpo de medo e a sua alma de pavor. Ela poderia contar como aprendeu um dia a matar pássaros, preás e porcos, e como acabou por matar os dois policiais que a levaram para longe porque não via como escapar deles. Ela desenha as letras com a mão esquerda como se estivesse reaprendendo a escrever e medita sobre a necessidade de explicar tudo isso quando, no fundo, não há explicação possível.” Nesse livro raro, raríssimo, Marcia Tiburi reverte com invenção e contraste o silêncio das línguas maternas em grito de coragem pela sobrevivência política das mulheres.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.