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Quem não arrisca não pode berrar

Por André Gonçalves

Durante mais de dois meses, todos da Revestrés mergulhamos no mundo torquatiano. A equipe inteira andava com poemas e livros de e sobre Torquato; nos carros, as músicas eram todas de Torquato, nas mais diversas vozes que o cantam e espalham e berram. Conversamos com muitas pessoas que com ele fizeram parceria, amizade e farras, e também com quem estuda seu legado. E, em todos os encontros para pauta, café ou discussões, parece que Torquato estava ali, sentado, olhando para nós, fumando um cigarro.  

Mergulhamos no acervo guardado com o maior cuidado pelo primo de Torquato, George Mendes, que teve a paciência de nos receber por lá uma, duas, três, cinquenta e sete vezes ou mais. Vimos todas as fotos. Lemos o que foi possível. Escutamos o que o tempo nos permitiu. Arriscamos. 

Certamente, essa edição especial de Revestrés não estará à altura do que ele produziu. Mas é uma edição, digamos, honesta, que busca levar, a quem não conhece, uma parte da obra de Torquato Neto, o nosso Anjo Torto do Piauí, e uma noção de seu tamanho e importância na cultura brasileira. Para quem já conhecia um pouco ou bastante as letras, os poemas, os textos, os filmes de Torquato, esperamos trazer alguma novidade, algum olhar de revestrés por entre brechas e caminhos até então não descobertos ou pouco explorados. É o risco. Nos colocamos a perigo. 

O fato é que desfolhamos fibra por fibra os nossos corações para dar conta de tentar colocar nas páginas da revista a multiplicidade da alma desse menino que saiu do Piauí para o mundo e, em um inacreditável prazo de apenas dez anos, criou uma obra que, quase 50 anos após sua partida, é moderna, atual, e que cada vez que é “remexida” por alguém se renova e mostra uma força comovente. Torquato, ele mesmo, parece ser uma rua que não tem mais fim. 

O que saiu foi essa edição que você tem em mãos. Um pouco documento, um pouco homenagem, muito de orgulho e uma das edições mais prazerosas e difíceis que já fizemos. Difícil segurar a onda de colocá-lo como mito, coisa de que, certamente, ele não iria gostar. Uma delícia descobrir as ironias e a vida de Torquato cruzando as entrelinhas de sua poesia. Um privilégio compartilhar sua visão de mundo com você.  

Esperamos que a Revestrés Especial Torquato Neto seja para você uma porta de acesso ao universo torquatiano, o cara que veio desafinar o coro dos contentes e, um dia, disse “chega!”, indo embora muito cedo.  

Let´s play that. Na medida do impossível, entregamos a você essa edição. Ou, a carne seca é servida.  

 

de deus ou o diabo

Então Maria de Deus tinha marido e cinco filhos, Alfredo e outros dois meninos e duas meninas, Alfredo o mais velho. A cada ano nascia uma criança naquela casa, e o que chamava a atenção, claro está que além da evidente virilidade do pai e da fertilidade de Maria de Deus, era o rigor das datas: todas as crianças, a partir de Alfredo, nasciam no mesmo dia, fique claro que no mesmo dia é forma simbólica de o dizer, já que cada um era de um ano, mas todas nasciam na mesma data, 21 de janeiro. Então, todos os dias 21 de janeiro havia um novo choro de criança naquela casa e havia festa, e havia carne, e havia bebida, e havia música, e havia a certeza de que, em 21 de janeiro do próximo ano, haveria mais choro de criança, mais festa, mais carne, mais bebida, mais música. E assim foi por cinco anos, o ano de nascimento de Alfredo e os quatro seguintes, onde nasceram alternadamente uma menina e um menino, o que fez com que chegássemos ao número de crianças aqui já apontadas, cinco, três meninos e duas meninas. Dificuldades havia, já que eram pobres e de pouca instrução e assim de poucas oportunidades na vida, mas o que não tem remédio remediado está, assim dizem muitos por preguiça ou desengano, e a fé de Maria de Deus e o trabalho do pai davam conta do mínimo para se viver, sendo que o mínimo, se formos pensar bem, já é o suficiente, perdidos são os que querem mais do que o que é preciso para que a vida siga, isso sim, ora se não, é a causa da maior parte de tudo o que acontece de mau pelo mundo desde sempre. Assim o pensavam Maria de Deus e o marido, e chegou dezembro e Maria de Deus já ia com uma grande barriga, a prenhez arredondando suas formas já em ponto de rebentar, arredondando talvez seja um exagero, apenas o bucho se tornava um grande caroço, assim era sempre, em toda prenhez Maria de Deus se tornava só barriga, as pernas e os braços e o rosto finos, magros, ossudos, parecia que toda a carne do corpo se lhe voltava para dentro para formar a nova criança, mas isso rapidamente deixava de ser tão logo o rebento ou rebenta gritasse ao mundo, cá estou, claro que bebês não o gritam, mas berram como se o quisessem, então era só dar-se o tal berro ou choro e Maria de Deus voltava às suas formas, digamos, originais, nem tão magra, nem tão gorda, uma mulher normal, se diria, mais que isso era quase impossível, já que pela já citada personalidade pudica de Maria de Deus pouco mais se vira de seu corpo qualquer dia que fosse, a não ser as parteiras, essas mesmo assim apenas duas, e isso ainda porque uma morreu logo após o parto do segundo bebê da família, nenhuma ligação de um fato com o outro, morreu de um tiro a pobre, dizem que um crime passional, mas tinha ela setenta anos, que diabos. Então, ia-se o mês de dezembro e já tudo começava a encaminhar-se para as festividades do nascimento do sexto filho, quando deu-se. Um a um, os filhos de Maria de Deus e do pai foram tomados por uma febre, cada dia um, e ao fim de cinco dias todos sentiam os mesmos sintomas, e deliravam, e suavam, e choravam, e um dia morreu um, noutro dia morreu outra, sempre do mais novo para o mais velho, seria Alfredo o último, no ritmo que se ia em menos de uma semana não haveria mais filhos de Maria de Deus e do pai, e ainda Maria de Deus foi tomada pela febre, e foram vômitos e foram dores, ela chorava a morte de cada um dos filhos sem ter tempo de se acostumar com as sucessivas perdas, diárias, e não se sabia se Maria de Deus chorava e gritava pela dor que sentia dentro dela ou pela dor que chegava a ela do mundo de fora, e Maria de Deus acabou perdendo o filho ainda não nascido, em verdade uma menina, e Maria de Deus, agora mãe somente de Alfredo que já também agonizava em dores, ainda na cama chamou padre Muniz, que, como toda a cidade, fazia vigília em volta da casa dos sofridos pais e moribundos filhos, ou moribundo apenas Alfredo, os demais já além de moribundos, defuntos filhos. Padre Muniz prontamente atendeu ao chamado de sua mais devota paroquiana, mas para quê, imagine-se o susto com o que lhe disse Maria de Deus, que foi: Padre Muniz, hoje pela manhã renunciei a Deus e pedi ao diabo que acabe com as dores de Alfredo, que Deus já quase tudo me tirou, só me resta Alfredo e Ele quer me tirar também meu filho mais velho, então eu renuncio, padre Muniz, não sou eu mais devota do Divino, quem sabe o serei do Demo, pedi ao cramulhão que me recupere Alfredo, mesmo que me leve, mas ele é tinhoso e não vai me levar, vai curar Alfredo e me manter como prova viva de que o de baixo é mais poderoso que O do alto. Padre Muniz tão chocado ficou que nem pensou em excomunhão, nem em exorcismo, nem em enviar carta ao Bispo nem ao Papa, apenas ficou ali em frente a Maria de Deus, ou seria agora Maria do Cão, e sem ter o que fazer fez apenas o que se faz em momentos em que não se sabe o que fazer ou quando não se tem mais jeito de fazer nada, que é desenhar sobre si mesmo o sinal da cruz e pedir ajuda a Deus e Nossa Senhora e a todos os santos, coisa que, padre Muniz pensou, isso sim deveria ter feito Maria, até então de Deus e sabe-se lá como se chamaria agora.
É bom que não entremos em detalhes do tumulto que tal situação causou na pequena cidade, nem nos desdobramentos na comunidade religiosa local, regional, nacional e mundial, enfim, porque isso tudo pode ser imaginado, mas certamente o leitor deverá mesmo querer saber o que sucedeu com Alfredo e tudo o mais depois da declaração inesperada de Maria, antes, de Deus, agora sabe-se lá de quê. Deu-se que Alfredo ficou curado, que Maria ficou curada, que as outras crianças foram enterradas, que o pai nunca mais desabraçou-se da garrafa e, diz-se, nunca mais apareceu sóbrio novamente, assim como tio Bezerra, veja, do nada e sem motivo o tio aparece na história com o seu alcoolismo, e já dela sai, então aqui se explica o que teria lhe causado, ao pai, a perda do mindinho e do anelar da mão direita, foi com um machado, quando, em uma manhã cheia de sol em tempos passados, tentando arrancar rolha de uma garrafa e não o conseguindo, cismou de fazê-lo com o tal machado, segurando a garrafa pelo gargalo. Ou seja, abriu-se a garrafa, o pai perdeu dois dedos e no hospital da cidade chegou cambaleante e com os dedos decepados no bolso para esperado reimplante, o que acabou sendo inútil, pois o hospital mal tinha como costurar um talho feito por faca no dedo, quanto mais reimplantá-los após golpe de machado.

Ignácio de Loyola Brandão: “O Piauí tem sua revista”

Excepcionalmente esse Blog da Redação traz uma carta.

Não é todo dia que chega a qualquer redação do Brasil uma carta de Ignácio de Loyola Brandão. Aqui, chegou. E a gente mostra pra você.

 

O Piauí tem sua revista

 

Ignácio de Loyola Brandão

 

“Porque eu vou confessar para vocês: eu não superei coisa nenhuma! Até hoje me enche o saco cadeira de rodas, correr para ir ao banheiro, chegar a uma cidade e minha cadeira de rodas estar quebrada.” Sincero, desabusado, de saco cheio,  franco, na contramão do politicamente correto. Marcelo Rubens Paiva deu a REVESTRÉS uma das mais belas entrevistas que ouvi dele. Desabafo puro, real.  Vamos por partes. Depois de fazer revistas por mais de 50 anos (Claudia, Setenta, Planeta Lui, Ciencia & Vida, Vogue, Homem Vogue, entre outras), quero dizer com alegria que o Piauí tem sua revista e não é a revista Piaui, é a REVESTRÉS  ( o logotipo é difícil de reproduzir em um computador normal: estão ficando antigas estas máquinas modernas; como girar as letras?).

Vai aqui quem desconhece a história da imprensa em meu estado adotivo. Digo meu estado porque sou Cidadão Piauiense há muitos anos.

REVESTRÉS, revista boa para banca em Teresina, por todo Nordeste, no Rio e São Paulo ou o que chamam Sul. Brasileira, sendo piauiense. Escrita sem provincianismo, assim como dona de um design limpo, enxuto, direto. Bem impressa e cheirosa.  Para mim, cheiro é fundamental em revista e em livro. A entrevista de abertura é um arraso. Marcelo Rubens Paiva não tem papas na língua, e define bem o brasileiro, como também desmistifica essa história de superação. Nunca tinha lido ou ouvido dizer o que ele disse sobre sua própria situação. Sincero, aberto, verdadeiro,  odiando a palavra superação que vem sendo usada até para quem quebra um dedo. Esta revista deveria ser distribuída para todo o Brasil, para psicólogos, terapeutas, neuros, fisioterapeutas  e também para os que vivem da “exploração” do tema superação.

Vou em frente, conheço Sulica e  as festas nas ilhas de areia do Rio Parnaíba, onde estive durante uma festa literária,  percorro o rio,  sei as tentativas de reocupação. Vejo as lembranças de Ai que Vida, um filme piauiense (é isso mesmo) de maior sucesso que completa dez anos. Atravesso as manifestações de muros, os desenhos, grafites, frases, siglas cifradas. E me vêm à memória o tempo em que vivi em Berlim, onde havia o chamado maior painel de grafites do mundo, a maior demonstração de arte urbana do planeta: O Muro, die Mauer, The Wall (Pink Floyd): o célebre Muro com 165 quilômetros de arte. Arte permitida apenas do lado ocidental. O comunismo odiava os grafites, assim como o prefeito de São Paulo, João Doria.

Mas há matérias que me encantam, porque são aquelas que mostram o Brasil em sua pureza e resistência. Aquelas coisas que quando viajo adoro conhecer, frequentar, ver, estar. Se anos atrás conheci o suco do Abrãao, que  ficou na alma, agora quero ir  ao Bar e Mercearia São Francisco, na verdade o bar do Zé de Melo. Um destes recantos especiais, típicos,  cheios de vida, espírito. O homem está num dos metros quadrados mais valorizados da cidade e  aos 85 anos recusa propostas milionárias do setor imobiliário. Não arreda pé. Essa gente é que mantém a alma, não deixa o dinheiro arruinar tudo, como diz o Caetano em uma canção. Zé de Melo, onde se compra de caderneta, assim como aqui em São Paulo em Pinheiros, compro de caderneta no empório da chinesa Claudia.

Uma delicia percorrer REVESTRÉS com sua cor local, a ficção, as entrevistas. Devia ser entregue no aeroporto a quem desce para ficar uns dias, distribuída nos hotéis, bares, restaurantes. Acho que falta uma culinária piauiense, devia ter em todo número. E aí chegando, dia desses, quero ir direto à Kina Kana, pedir um pastel e uma garapa (como se dizia no interior de São Paulo, onde nasci). Importante, assim como vinícolas tem suas videiras próprias, a  Kina Kana tem seu canavial em Demerval Lobão. Tudo autêntico. Este é o Brasil distante de Temer, das politicalhas. E nunca esqueço os primeiros números de REVESTRÉS que Wellington me enviava para ler, dar palpite, talvez colaborar. Colaborei e me orgulho disso. Está valendo a pena.

Um poeta desfolha a bandeira

 

Este ano ele será festejado como nunca, justamente quando completaria, não tivesse partido tão cedo, 73 anos de vida, com um monte de coisas em sua homenagem, desde um filme lindíssimo, Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando, até a Balada Literária de São Paulo, do intrépido Marcelino Freire, evento cultural dos mais importantes do país, nesta edição 2017 esparramada também por Teresina, cidade natal do nosso poeta, e Salvador, onde concluiu o ensino médio, as três capitais louvando, quiçá o Brasil inteiro também, através de matérias em jornais e televisões, quem bem merece, no caso Torquato Neto, e deixando, claro, o ruim de lado,  esse filho único de Heli da Rocha Nunes, defensor público, e Maria Salomé da Cunha Araújo, professora primária, que ainda meninote gostava de ler Machado de Assis, acredite se quiser, autor complexo e psicológico,  e pasme, desdobramento natural, já rabiscava os primeiros versos: “O meu nome é Torquato / O de meu pai é HELI / O de minha mamãe SALOMÉ / E o resto ainda vem por aí”, como veio de fato por meio da Tropicália, movimento que chacoalhou a arte nacional e mexeu com os comportamentos  da época, final dos anos 60 e início dos 70, de braços dados com os baianos,  sendo tido, geralmente, como um deles, por viverem tão próximos, participando de passeatas contra a ditadura e festivais de música, tendo nascido daí muitas parcerias importantes, hoje consagradas na MPB, a exemplo deGeleia Geral, manifesto-síntese da zoeira criada por eles, segundo opinião de críticos respeitados: “Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia / Resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria”, uma dobradinha de Torquato e Gilberto Gil, e, não poderia faltar, Mamãe, coragem, entre Torquato e Caetano Veloso, interpretada divinamente por Gal Costa, letra que faz sangrar ao tocar em assuntos delicados envolvendo partida, separação e escolha pessoal: “Mamãe, mamãe não chore / A vida é assim mesmo eu fui embora / Mamãe, mamãe não chore / Eu nunca mais vou voltar por aí / Mamãe, mamãe não chore / A vida é assim mesmo eu quero mesmo é isto aqui”, ele que depois, vislumbrando voos mais altos, zarpou pro Rio a fim de fazer curso superior – jornalismo, mas não concluiu -, embora tenha passado, até por uma questão de sobrevivência, em redação dos jornais cariocas Correio da Manhã, Jornal dos Sports e Última Hora, nesse último assinando uma coluna, Geleia Geral, que bombou entre a galera ligada em cultura, arte e algo mais, não vacilando em deixar o país, durante o auge da repressão política, em companhia da esposa Ana Araújo, rumo a Londres onde se encontravam os amigos baianos, retornando algum tempo depois ao Brasil com outros interesses artísticos, a sétima arte no caso, protagonizando filmes alternativos em super8, quer no papel de ator ou diretor, pouco importando, afinal quem sabe faz a hora / não espera acontecer – Nosferatu, de Ivan Cardoso, Adão e Eva do paraíso ao consumo, de Edmar Oliveira e Carlos Galvão, e o Terror da Vermelha, dirigido por ele mesmo, películas hoje consideradas cult, tudo produzido, algo inacreditável, em apenas dez anos, uma vez que Torquato Neto tinha pressa e, após comemorar seu aniversário, resolveu abriu o gás e encantar-se de vez, dizendo que pra ele, em bilhete de despedida, chegava e pronto, sem antes fazer um pedido repleto de ternura e humildade: “Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”, sendo o corpo do nosso poeta enterrado aqui, na terrinha onde nasceu, num túmulo do cemitério São José, centro da cidade, cujo túmulo continua  bastante visitado por fãs e admiradores, mesmo depois de 45 anos da fatídica madrugada de 10 de novembro de 1972, ele que deixou a vida, parafraseando Vargas, a fim de entrar no seleto grupo dos ícones da contracultura brasileira, sem pedir nada a ninguém e sem fazer concessões, muito menos alisando a cabeça de quem escolhe a arte de versejar: Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela (…). Quem não se arrisca não pode berrar.”

Senhoras, nossas| Nossa voz | vozes, caminhos e projetos educativos

Teresa Pessoa
Universidade de Coimbra/Portugal

 

O que somos ou em quem nos tornámos, seria diferente se não tivéssemos encontrado ou reparado nas janelas, se não tivéssemos tido a disponibilidade e a curiosidade necessária para nos debruçarmos, escutarmos e olharmos o outro ou outros que, naturalmente, passavam e com quem partilhámos caminhos ou conversas, constituintes de potencialidades que, mais tarde, tornámos em significado ou ideais ou na possibilidade, do(s) mesmo(s), para outros.

Desde muito cedo, tanto quanto aonde a memória nos pode levar, que tivemos necessidade de procurar as coisas para as entendermos ou de construir os nossos próprios caminhos, conhecimentos ou compreensões relativas às mesmas, fossem estas a simples planta, o desenvolvimento de uma rã (quantos girinos não vimos!), um eclipse ou o necessário afecto que nos aproximasse de um livro ou do outro.

Nunca mais nos iremos esquecer de um desenho da Nossa Senhora que fizemos, com todo o carinho e convicção, numa prova da 3ª ou 4ª classe, ainda hoje o consigo desenhar

 

…. , mas não foi aceite porque “A Nossa Senhora não era assim!”.

Segundo a professora, a Nossa Senhora não tinha sardas, não tinha puxinhos, não tinha umas pestanas assim tão grandes, não tinha bochechas e não tinha uma boca assim tão bonita! Tivemos que fazer outra Nossa Senhora, aquela, a da professora, e ainda hoje não percebemos porque é que não gostaram ou aceitaram a nossa Nossa Senhora!

Se a professora, naquela altura, tivesse ouvido a nossa voz e aceitado como válido o conhecimento que mostrámos acerca da imagem da Nossa Senhora, não teria sido necessário ter percorrido tantos caminhos para que hoje pudéssemos afirmar, com confiança, a outros, que a Nossa Senhora poderia ser assim, também!

A valorização da voz das coisas e das nossas próprias vozes, naturalmente, aproximou-nos da ideia de que o conhecimento implicará um sujeito que conhece. Este tem sido o argumento partilhado pelas diversas epistemologias construtivistas. Na medida deste valor atribuído à experiência, o conhecimento acontece e torna-se acessível ao sujeito, que conhece, através de um processo de construção de representações diversas sobre a mesma em que o sujeito estará, assim, implicado.

 

o que sou.”

Uma outra atitude possível da professora perante a nossa imagem da Nossa Senhora, teria sido ouvir a nossa voz, teria sido valorizá-la, como nós e, a partir daí, ter ajudado ou facilitado o desenvolvimento de representações, outras e diversas, num processo, partilhado e aceite ou valorizado, de desenvolvimento ou construção do conhecimento.