Então Maria de Deus tinha marido e cinco filhos, Alfredo e outros dois meninos e duas meninas, Alfredo o mais velho. A cada ano nascia uma criança naquela casa, e o que chamava a atenção, claro está que além da evidente virilidade do pai e da fertilidade de Maria de Deus, era o rigor das datas: todas as crianças, a partir de Alfredo, nasciam no mesmo dia, fique claro que no mesmo dia é forma simbólica de o dizer, já que cada um era de um ano, mas todas nasciam na mesma data, 21 de janeiro. Então, todos os dias 21 de janeiro havia um novo choro de criança naquela casa e havia festa, e havia carne, e havia bebida, e havia música, e havia a certeza de que, em 21 de janeiro do próximo ano, haveria mais choro de criança, mais festa, mais carne, mais bebida, mais música. E assim foi por cinco anos, o ano de nascimento de Alfredo e os quatro seguintes, onde nasceram alternadamente uma menina e um menino, o que fez com que chegássemos ao número de crianças aqui já apontadas, cinco, três meninos e duas meninas. Dificuldades havia, já que eram pobres e de pouca instrução e assim de poucas oportunidades na vida, mas o que não tem remédio remediado está, assim dizem muitos por preguiça ou desengano, e a fé de Maria de Deus e o trabalho do pai davam conta do mínimo para se viver, sendo que o mínimo, se formos pensar bem, já é o suficiente, perdidos são os que querem mais do que o que é preciso para que a vida siga, isso sim, ora se não, é a causa da maior parte de tudo o que acontece de mau pelo mundo desde sempre. Assim o pensavam Maria de Deus e o marido, e chegou dezembro e Maria de Deus já ia com uma grande barriga, a prenhez arredondando suas formas já em ponto de rebentar, arredondando talvez seja um exagero, apenas o bucho se tornava um grande caroço, assim era sempre, em toda prenhez Maria de Deus se tornava só barriga, as pernas e os braços e o rosto finos, magros, ossudos, parecia que toda a carne do corpo se lhe voltava para dentro para formar a nova criança, mas isso rapidamente deixava de ser tão logo o rebento ou rebenta gritasse ao mundo, cá estou, claro que bebês não o gritam, mas berram como se o quisessem, então era só dar-se o tal berro ou choro e Maria de Deus voltava às suas formas, digamos, originais, nem tão magra, nem tão gorda, uma mulher normal, se diria, mais que isso era quase impossível, já que pela já citada personalidade pudica de Maria de Deus pouco mais se vira de seu corpo qualquer dia que fosse, a não ser as parteiras, essas mesmo assim apenas duas, e isso ainda porque uma morreu logo após o parto do segundo bebê da família, nenhuma ligação de um fato com o outro, morreu de um tiro a pobre, dizem que um crime passional, mas tinha ela setenta anos, que diabos. Então, ia-se o mês de dezembro e já tudo começava a encaminhar-se para as festividades do nascimento do sexto filho, quando deu-se. Um a um, os filhos de Maria de Deus e do pai foram tomados por uma febre, cada dia um, e ao fim de cinco dias todos sentiam os mesmos sintomas, e deliravam, e suavam, e choravam, e um dia morreu um, noutro dia morreu outra, sempre do mais novo para o mais velho, seria Alfredo o último, no ritmo que se ia em menos de uma semana não haveria mais filhos de Maria de Deus e do pai, e ainda Maria de Deus foi tomada pela febre, e foram vômitos e foram dores, ela chorava a morte de cada um dos filhos sem ter tempo de se acostumar com as sucessivas perdas, diárias, e não se sabia se Maria de Deus chorava e gritava pela dor que sentia dentro dela ou pela dor que chegava a ela do mundo de fora, e Maria de Deus acabou perdendo o filho ainda não nascido, em verdade uma menina, e Maria de Deus, agora mãe somente de Alfredo que já também agonizava em dores, ainda na cama chamou padre Muniz, que, como toda a cidade, fazia vigília em volta da casa dos sofridos pais e moribundos filhos, ou moribundo apenas Alfredo, os demais já além de moribundos, defuntos filhos. Padre Muniz prontamente atendeu ao chamado de sua mais devota paroquiana, mas para quê, imagine-se o susto com o que lhe disse Maria de Deus, que foi: Padre Muniz, hoje pela manhã renunciei a Deus e pedi ao diabo que acabe com as dores de Alfredo, que Deus já quase tudo me tirou, só me resta Alfredo e Ele quer me tirar também meu filho mais velho, então eu renuncio, padre Muniz, não sou eu mais devota do Divino, quem sabe o serei do Demo, pedi ao cramulhão que me recupere Alfredo, mesmo que me leve, mas ele é tinhoso e não vai me levar, vai curar Alfredo e me manter como prova viva de que o de baixo é mais poderoso que O do alto. Padre Muniz tão chocado ficou que nem pensou em excomunhão, nem em exorcismo, nem em enviar carta ao Bispo nem ao Papa, apenas ficou ali em frente a Maria de Deus, ou seria agora Maria do Cão, e sem ter o que fazer fez apenas o que se faz em momentos em que não se sabe o que fazer ou quando não se tem mais jeito de fazer nada, que é desenhar sobre si mesmo o sinal da cruz e pedir ajuda a Deus e Nossa Senhora e a todos os santos, coisa que, padre Muniz pensou, isso sim deveria ter feito Maria, até então de Deus e sabe-se lá como se chamaria agora.
É bom que não entremos em detalhes do tumulto que tal situação causou na pequena cidade, nem nos desdobramentos na comunidade religiosa local, regional, nacional e mundial, enfim, porque isso tudo pode ser imaginado, mas certamente o leitor deverá mesmo querer saber o que sucedeu com Alfredo e tudo o mais depois da declaração inesperada de Maria, antes, de Deus, agora sabe-se lá de quê. Deu-se que Alfredo ficou curado, que Maria ficou curada, que as outras crianças foram enterradas, que o pai nunca mais desabraçou-se da garrafa e, diz-se, nunca mais apareceu sóbrio novamente, assim como tio Bezerra, veja, do nada e sem motivo o tio aparece na história com o seu alcoolismo, e já dela sai, então aqui se explica o que teria lhe causado, ao pai, a perda do mindinho e do anelar da mão direita, foi com um machado, quando, em uma manhã cheia de sol em tempos passados, tentando arrancar rolha de uma garrafa e não o conseguindo, cismou de fazê-lo com o tal machado, segurando a garrafa pelo gargalo. Ou seja, abriu-se a garrafa, o pai perdeu dois dedos e no hospital da cidade chegou cambaleante e com os dedos decepados no bolso para esperado reimplante, o que acabou sendo inútil, pois o hospital mal tinha como costurar um talho feito por faca no dedo, quanto mais reimplantá-los após golpe de machado.