Wellington Soares
Blog Title

Balada Literária 2019

 

A Balada Literária deste ano vem tinindo de boa ao homenagear duas figuras importantes da cultura nacional: o educador Paulo Freire, autor de Pedagogia do oprimido, e o poeta Elio Ferreira, autor de América Negra, nordestinos comprometidos com um Brasil mais justo e solidário. O primeiro na área pedagógica, daí ser o Patrono da Educação Brasileira; o segundo, no campo literário, com uma obra instigante do ponto de vista da negritude. Além disso, o evento ocorrerá, no Piauí, em quatro cidades do estado – Oeiras, Floriano, Parnaíba e Teresina, municípios que possuem campi da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), parceira nessa jornada de debate sobre temas oportunos na conjuntura atual. Embora dito por Paulo Freire, a expressão a seguir resume a prática de ambos: “Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.”

Esta é a terceira edição realizada em solo piauiense, tendo aportado por aqui em 2017, quando a Balada celebrou a obra perturbadora de Torquato Neto, um dos ícones da Tropicália, movimento que deu uma boa chacoalhada na arte nacional – “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo”. Entre outros convidados, estiveram em Teresina Jards Macalé, parceiro musical de Torquato, e Carlos Rennó, compositor dos mais talentosos da MPB. Ano passado, foi Graça Vilhena a homenageada local, ela que é tida como a melhor de nossas poetas, obra feita de essencialidades e lirismo – “ Foi o cafuné/ das andorinhas/ que adormeceu/ os sinos da cidade.” Tudo por iniciativa de Marcelino Freire, pernambucano de Sertânia radicado em São Paulo, um agitado cultural que não mede esforços em ligar os distintos brasis num só – “Toda palavra lavra, toda palavra colhe. Os livros são sementes, são árvores frondosas. Abaixo as armas. E viva as palavras”, disse ele em entrevista ao jornal Balada News.

A Balada 2019 começou nesta quarta-feira (13) por Oeiras, nossa primeira capital, berço de grandes escritores: O. G. Rego de Carvalho, José Expedito Rêgo e Rogério Newton, no campus Possidônio Queiroz, da Uespi, com mesas redondas nos turnos manhã e tarde. Às 10h, no auditório da universidade, houve o bate-papo sobre a obra/vida de Elio Ferreira: “Itinerário poético – Das performances de rua à afirmação da negritude”, com as presenças ilustres do autor, professor Harlon Lacerda (Coordenador do Curso de Letras) e do poeta Kilito Trindade, sob mediação deste aprendiz de cronista. Prosseguiu às 14h30 com a conversa “A leitura do mundo precede a leitura das palavras”, a respeito do projeto pedagógico de Paulo Freire, a cargo de Lucineide Barros e Leiliana Rebouças, com mediação de Iraneide Soares, todas professoras da instituição. O desfecho ocorreu num lugar paradisíaco, o Mirante Morro da Cruz, em show lítero-musical reunindo poetas da cidade e de Teresina. Uma noite repleta de muitas emoções e sentimentos. De tão marcante o evento, ficou o compromisso de retornarmos no próximo ano, iniciando a Balada 2020 por lá.

Em Floriano, terra natal de Elio Ferreira, acontecerá no dia 10 de abril, campus Josefina Demes/Uespi, berço também de Getúlio Targino Lima, jornalista e advogado, e de César Crispim, diretor do Grupo Escalet e idealizador da Paixão de Cristo no município. Depois chega, em 2 de maio, ao campus Prof. Alexandre Alves/ Uespi, na cidade de Parnaíba, onde nasceram Assis Brasil e Benjamim Santos, nomes consagrados dentro e fora do Piauí no romance e teatro, respectivamente.  Entre os dias 13 e 14 de agosto, no campus Torquato Neto e Theatro 4 de Setembro, a Balada Literária tem seu desfecho em Teresina, com a vinda de palestrantes e artistas nacionais. Em seguida, prossegue em Salvador, sob a batuta do poeta Nelson Maca, e finaliza em São Paulo, origem do evento, no período de 4 a 8 de setembro, reunindo todas as tribos culturais, gente  dos centros e das periferias do Brasil – “Poesia, poesia./ Quando estamos juntos/ é como se eu tivesse marcado um/ encontro com Deus/ na minha própria casa”, como bem expressou nosso poeta florianense.

Perguntas que brotam do lado de dentro

Por Francisco das Chagas Amorim de Carvalho

 

E se estivéssemos todos unidos não pelas ideias, mas pelas plantas dos pés? [daqueles que ainda pisam no chão]; então aprenderíamos a lição dos ipês-amarelos: quanto mais perto do azul do céu, mais se entranham no coração da Terra. Então veríamos que a linha do horizonte é o lugar onde se equilibram as crianças e a bailarina, onde cultivam os poetas, onde está o jardim das utopias. Veríamos que o interior da rosa vai dar neste lugar onde tudo nasce, é a direção que temos em comum: o lado de dentro das coisas, no fundo, a face interior do mundo, é por aí que passa o círculo que contém todos os círculos; tudo na vida é circular, uma ciranda.

E se as plantas nos conhecem, a cada um de nós, e por isto o chá de lírio para a imaginação, o de alecrim para a memória, os florais de Bach e tudo mais? Por isto nos restaura entrar na mata, andar com os pés no chão, abraçar uma árvore, entrar na água. E se foi o vento que fez os meus cabelos? O amanhecer e as estrelas, os meus olhos? E se foi o cantar dos pássaros e as ondas do mar esculpiram meus ouvidos? Explicaria porque tua voz e te perfume me atraem? E se realmente são palmas as mãos em mãos amigas?

Como podem se vender a terra, os rios, e todas as vidas que são livres no ar, se elas vieram antes? Como podem dizer que são propriedades de alguém? Os minerais são propriedades da água, o ar puro propriedade das florestas, nós somos propriedade da Natureza. Que tristes faculdades de economia e de comércio estas que diante do mar e das florestas não veem beleza, apenas toneladas de matéria para negociarem na Bolsa de Chicago.

No dia do juízo, em um prato da balança colocarão meu coração, no outro uma pena. Mas toda a economia tem se baseada no “ouro”, “a verdade se pesa em ouro”, “o silêncio vale ouro”, explicam que é por sua raridade e por seu brilho …por ser pouco na naturaleza… Porém, uma criança bem alimentada também brilha, então, isto é já uma raridade? E nossa moeda fosse tempo de vida? Um prato de comida seria um tanto de tempo de vida. Uma camisa vale um tanto de vida.

E se o futuro estivesse lá atrás ou suspenso nas estrelas como os desejos? É costume pendurar as melhores sementes da safra nas vigas da casa, como penduramos nossos pensamentos, nossos sentidos; talvez por isto olhamos para cima quando queremos lembrar; uma semente é um cristal de tempo, palpável, esta potência de futuro, experiência presente, é a memória da Terra.

E se a vida fosse um sonho? Seria necessário sonhar tanto que esparramasse pelas beiras da realidade; a verdade é o caminho feito das pegadas dos muitos que sonham, ou então um sonho que se esqueceu de acordar; é esta praça onde os muitos caminhos se encontram.

E se é nossa raiva e nossa alegria que move as tormentas, esfria, faz chover e jorrarem os vulcões? A lama tóxica que escorre naquele rio, que mata o peixe e o pescador, é egoísmo líquido que escorre das veias do homem civilizado – a ganância que nomeia de progresso. A vida precisa do tempo d e m o r a r… Vou escrever um poema e chamar Elogio ao pote de barro.

E se todos os animais nos compreendem mas se negam mostrar, com medo de que lhes ensinem a trabalhar? Eis a solução para o desemprego: trabalhar dois dias da semana, todos os outros dias é para cantar, ornar esta terra, aprender a tecer uma rede, ler um livro, brincar.

Se parássemos de produzir, produzir, produzir; cada um teria tempo de produzir para si; se entre amigos tudo é de todos, não faltaria para ninguém. Se parássemos de crescer, crescer, crescer, haveria o tempo de florescer, perfumar, e dar frutos, amadurecer.

Por outra parte se diz: “está falando água”, como se água fosse coisa sem valor. Quanto menos valoramos o essencial, mais diminui o nível dos rios e secam as fontes. Escasseia a água, o essencial é isto que brota e se entrega, sem nada cobrar. Só podemos dar o que sai de nós mesmos.

E se todos fossemos educados na língua dos pássaros? Fui a Sevilla e reparei que as pombas do Parque María Luísa falam a mesma língua que as pombas do Parque Ibirapuera ou da Praça da Bandeira; fui iniciado na língua dos pássaros, em algum momento da sua história a humanidade esqueceu o idioma da paz. Sim, a cada dia se ouve menos a voz da natureza, os animais e insetos estão cada dia mais em silêncio, e mais distantes; por isto, talvez, cada vez menos nos entendemos.

Os corretos andam curvados, e pelo peso, já fora do eixo, pois a declividade da eclíptica tem uns 23 graus; os que parecem tortos, que são leves e plainam, estão com a Terra.

E se existisse tendência política nas plantas? Existiria o movimento da vida. Observei que as plantas quando acordam, giram em uma espiral ascendente à esquerda; quando sonolentas e esvai sua vitalidade giram no sentido contrário, se endireitam.

…um amigo entendido me disse que estes movimentos têm a ver com o girar dos astros, então é isto: uma fenomenologia das ideias políticas – não é pela força da gravidade, os corpos não caem, ou são atraídos pela força do coração da terra, ou se deixam levar para o nada…

 

Dorothy Stang

Foram seis tiros certeiros. Um na cabeça e os demais espalhados pelo corpo. Todos disparados por mãos assassinas. A poucos metros de distância. Mãos essas que estavam a serviço de fazendeiro cruel, desumano, mais assassino que os executores. Covardes, todos, acima de tudo. No momento do crime, Dorothy Stang se encontrava sozinha, no meio da mata, uma senhora de 73 anos. Em vida, só procurou fazer o bem, ajudar os necessitados. Indagada se portava alguma arma, pelos criminosos, respondeu convictamente: “somente a bíblia”. Antes de ser morta, pediu para ler um trecho das palavras de Deus. Foram seis tiros disparados à queima roupa. Um na cabeça e os outros em diferentes partes do corpo. Sem clemência nem piedade. Uma senhora de 73 anos que, ao longo da existência, nunca fez mal a ninguém. Tornou-se missionária a fim de ajudar as pessoas, sobretudo, os pobres, marginalizados de tudo. Ela pertencia às Irmãs de Notre Dame de Namur, uma congregação católica internacional que realiza trabalho pastoral ao redor do mundo.

Dorothy Stang deixou o conforto dos Estados Unidos, país onde nasceu, para vir morar nas entranhas do Pará, precisamente em Anapu, um dos municípios mais carentes da região Amazônica. Naturalizada brasileira, a irmã era uma mulher de sorriso franco, fala macia, que acreditava num mundo solidário, apesar da idade avançada, cabelos brancos. Foram seis tiros perversos, todos certeiros, sem chance de sobrevivência. Um na cabeça e o restante espalhado pelo corpo. Tiros disparados por mãos insanas a mando de latifundiário ganancioso, capitalista selvagem. Transcorria o dia 12 de fevereiro de 2005, às 7h30, em estrada de difícil acesso, distante de Anapu 53 quilômetros. Na blusa que usava, a religiosa trazia uma mensagem de alerta a todos, simbolizando sua luta cotidiana: “A morte da floresta é o fim de nossa vida”.

Mas que desatino cometera Dorothy Stang, afinal, para merecer pena tão severa? Defender projetos de desenvolvimento sustentável no Xingu está longe de constituir crime de qualquer tipo. Buscar a geração de emprego e renda, com planos de reflorestamento em áreas degradadas, menos ainda. Que dirá se bater pela redução dos conflitos fundiários da região. Tais compromissos levaram seu trabalho, inclusive, a ser reconhecido dentro e fora do Brasil. Ignorando a importância dessas bandeiras, os que se julgam “donos” da terra mostraram sua face odiosa. Contrataram pistoleiros para matá-la friamente, de preferência com seis tiros. Um na cabeça e os demais distribuídos, aleatoriamente, pelo corpo. Não dando à freira a possibilidade de esboçar qualquer defesa. Uma senhora de 73 anos, de sorriso franco, fala macia. Igual a Jesus, assassinada injusta e cruelmente. Defender a distribuição de terra entre todos, irmãos nascidos de um mesmo Pai misericordioso, é infração passível de punição tão grave assim?

As ameaças constantes jamais a intimidaram, ela que tinha um coração imenso: “Não vou fugir nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar”. Apesar das reviravoltas no julgamento do bárbaro crime, ora inocentando ora condenando Reginaldo Pereira Galvão, a justiça não deixará de ser feita. Mesmo vindo a cumprir somente um terço da sentença, eles jamais escaparão da terrível pecha de assassinos. A história é impiedosa com os que menosprezam a vida, matam o próximo. Enquanto Dorothy Stang terá o nome guardado com amor – hoje e sempre – pelos que têm fome de terra e sonham com a mesa farta. Difícil lembrar sem se enternecer, mesmo 14 anos transcorridos, com seu olhar cheio de ternura e tamanha bondade. Foram seis tiros covardes, à queima roupa, um na cabeça e o restante espalhado pelo corpo frágil.

Green book – o que eu sou?

 

Antes de mais nada quero deixar claro que se você é uma das pessoas a quem Green book não surpreendeu porque é um filme “previsível”, “mais do mesmo”, pode ficar à vontade e seguir a leitura porque sim, esse texto é para você mesmo.

Eu sou totalmente a favor do cinema claro, didático, acessível – estou cansada do elitismo intelectual disfarçado de profundo conhecimento da indústria cinematográfica. Se há uso de uma fórmula de sucesso pra atrair um grande público, que ótimo. Pode ter certeza que você também está incluído nele, embora tente, com esforço, distinguir-se. Aliás, Green book é exatamente sobre isso.

O que me leva a ideia de construir pontes, não muros: o que este filme faz de forma linda.

Na primeira cena logo somos apresentados a um tipo espertão, segurança de boate acostumado com o excêntrico mundo noturno. São os anos 60 em Nova York, e Tony Lip (Viggo Mortensen) trabalha no Copacabana, quando a casa precisa fechar para reformas e ele se vê tendo que procurar um novo emprego. É indicado para a vaga de motorista de Dr. Shirley (Mahershala Ali), um pianista famoso que sairia em turnê pelo sul dos EUA.

O que esqueceram de avisar a Tony é que Dr. Shirley, contrariando sua expectativa, não é médico. E é negro.

(Nota: estamos em 1962, um ano antes de Martin Luther King fazer aquele discurso histórico em Washington clamando por um país sem divisões raciais).

Essa road trip é basicamente o enredo do filme ganhador do Globo de Ouro na categoria comédia e indicado a cinco Oscar este ano, incluindo o de melhor filme.

A história é real e o filme já estreou entre protestos – um deles diz respeito a distorção dos fatos reais, o protagonismo dado ao personagem do motorista em detrimento do pianista negro e o fato de ser dirigido por Peter Farrelly, um homem branco.

Polêmicas à parte, este filme constrói links importantes para pensarmos o racismo estrutural e nosso comportamento, séculos depois, repetidor de práticas discriminatórias.

Não sei se pelo fato de Pedro Gonzaga ter sido assassinado por um segurança de supermercado nos últimos dias, ou dos casos absurdos de racismo no BBB, ou ainda a comemoração quase discreta do posto que Maju Coutinho, finalmente, ocupou na bancada do Jornal Nacional, Green book encontrou um contexto crucial para reverberar em mim – assisti na sexta, revi no sábado, e ainda hoje tô pensando.

Mais do que repetir aqueles termos que estão ficando “sujos” de tanto que os usamos sem a profundidade que merecem – representatividade, lugar de fala, discriminação, racismo – quero me ater aqui a algo que achei essencial na história de Tony e Shirley. Para seguir com as palavras que usamos levianamente sem o esforço de praticá-las: empatia.

Reparem como Tony é o retrato da arrogância que só a classe do privilégio é capaz de esbanjar. Chega a ser constrangedor a cena do início da viagem, ele explicando coisas à Shirley com tom professoral – Shirley, com dois doutorados nas costas, ouve mais educado do que paciente, é verdade. Quero deixar claro que não estou aqui fazendo uma ode a títulos. Mas é impressionante observar a pedância de alguém que, mesmo diante de uma autoridade no assunto se acha no direito de arrotar conhecimento – e isso se repete algumas vezes, inclusive na cena em que ele supõe que um funcionário, que assiste ao conserto de Shirley a seu lado, não sabe o significado da palavra “virtuoso” – curiosamente o personagem também é negro.

Tony está o tempo todo presumindo coisas. Com o tempo ele vai baixando a bola – o mal do esperto é achar que todo mundo é idiota. O impasse na amizade entre o motorista e o músico está para além da relação inter-racial – passa também por conflitos de poder, o poder de quem está autorizado por uma sociedade a ser o que se é.

Dr. Shirley nos é apresentado como um homem culto, vaidoso, afeito a etiquetas e que frequenta o circuito da alta sociedade americana. Parece solitário e “com a cabeça sempre cheia de coisas, como é comum a um gênio”, assim descreve Tony em uma das cartas que escreve a esposa. É importante detalhar que Tony tem uma mudança radical de impressão sobre o pianista negro após vê-lo tocar pela primeira vez. É aí que percebemos que foi assim, através da arte e do conhecimento que Dr. Shirley conseguiu acessar os espaços que “conquistou”.

Conquistou com muitas, muitas aspas. A turnê que o pianista vai fazer no sul dos EUA é marcada por episódios que ilustram a nós e a Tony Lip o fato óbvio de que o racismo está longe de ser uma questão superada. Mesmo sendo a estrela da noite, mesmo sendo apresentado como convidado de honra, Don Shirley é impedido muitas vezes de jantar nos restaurantes onde apresenta-se. É instalado em despensas, impedido de usar o mesmo banheiro que os convidados brancos ou de provar um terno exposto na vitrine de uma loja.

Quer dizer,

Mesmo tendo dinheiro, status, competência, talento, título, ou o diabo a quatro o pianista negro é sempre humilhado.

Desacreditado.
Desmerecido.
Discriminado.

Em um dos diálogos mais importantes, Tony Lip acusa o patrão de ser fresquinho, de gostar de luxo e estar sempre no seu trono, sem se misturar com as pessoas. Há também o episódio em que Shirley é convidado a usar um banheiro externo de uma mansão chique onde se apresentava.

Ele se recusa e decide voltar ao hotel.

“Esta é a diferença entre nós, eu mijaria no mato de boa”, diz mais ou menos o motorista branco, acusando o pianista de estar sendo preconceituoso – volte essa cena várias vezes para nunca mais permitir que alguém perto de você fale em preconceito reverso, por favor.

É interessante perceber que se Tony tivesse um tiquinho de autocrítica perceberia que o próprio fato dele, um motorista em serviço, está sendo autorizado a falar todos esses absurdos ao patrão já dá indícios de que não, não é só esse simples fato que os distingue. Há uma diferença marcada na pele e sentida todos os dias por Dr. Shirley, e que Tony Lip, do alto do seu privilégio arrogante, sequer se esforça para perceber.

Para mim um dos grandes problemas da atualidade é a perda da sutileza. Por isso acho Green book um filme feliz ao construir pontes – o conceito de diferente é levado para além da questão racial. A história de Green book não é preto no branco, ao contrário: traz as zonas cinzentas, pelas quais sou apaixonada. Só elas são capazes de esboçar um pouco da complexidade humana – ninguém é só um rótulo, uma roupa, um título acadêmico, todo mundo é um híbrido de coisas e contradições e é um erro agruparmos tudo nas caixinhas dos nossos preconceitos.

Dr. Shirley encontra na formação clássica uma maneira de se distinguir. Por isso para ele é tão pesado e forte questões banais para o motorista branco, acostumado a levar as coisas tão a ferro e fogo e resolver tudo sempre a seu jeito – o jeito de quem teve a vida toda o privilégio de ser o que é, enquanto o outro vive a angústia de ser sempre insuficiente. O conflito do pianista é não se sentir pertencente a nenhum dos grupos sociais: é mais culto e rico do que se espera de um negro e menos homem ou branco do que espera de um branco.

E aí, de forma quase previsível, os papéis são trocados quando Dr. Shirley assume o volante para que os dois estejam em casa a tempo da ceia de Natal. De um jeito claro, bem-humorado e até incômodo (o Tony Lip sou eu, pode ser você, mas é com certeza a branquitude), Green book mostra que o primeiro passo na tentativa de nos tornarmos iguais é aceitar e respeitar as nossas diferenças.

 

“Ser genial não é suficiente.
Mudar o coração das pessoas requer coragem”.

 

~ me manda um oi?
📷@luanalia
🗨@luanaliaa
✉️ luanaliasena@gmail.com

Contos esparsos

(I)

Besteira das grandes ter confessado meus pecados ao padre. Onde estava com a cabeça pra tamanho desatino. Se arrependimento matasse, teria partido há muito tempo. Na realidade, um pecado apenas, traquinagem de adolescente. Coisa à toa, própria da idade: bater punheta inspirado nas meninas da escola. Sem falar da vizinha, toda gostosa, alívio das noites insones. Ingênuo, esperava algumas ave-marias e pai-nossos. Mas a punição, além das rezas, veio recheada de terrorismo psicológico. Aspecto pior de todos. Que iria direto pro inferno, não parasse tal safadeza. Que podia ficar louco, daqueles de atirar pedra na lua, caso insistisse nessa prática obscena. Pior ainda, ficar sem as mãos, dois toquinhos, teimasse em seguir caminho tão diabólico. Graças à medicina, que hoje diz fazer bem à saúde, retomo feliz o diálogo com meus cinco velhos e saudosos amigos de outrora – os dedos.

(II)

Mal iniciava a partida de futebol, no estádio Lindolfo Monteiro, saíamos em disparada nas bicicletas dos torcedores. Vigiar que é bom, nadinha de nada, apenas o prazer de curtir tamanha felicidade. Fora a sensação de liberdade, de braços soltos e camisa aberta, pelas ruas bem traçadas de Teresina.  Nossos corações aos pulos, quase saltando pela boca, uma trupe de meninos ávidos por aventuras em paralelepípedos indiferentes a quedas e risadas gostosas. Pedaladas que nos levavam ao imponderável, ligando praças a avenidas, até culminar no aeroporto da cidade, o Senador Petrônio Portella, onde víamos às vezes, boquiabertos, pássaros enormes, com toneladas de peso, descer e pegar voo na maior leveza do ser. Ao final do jogo, estávamos no posto de trabalho, como se não tivéssemos saídos dali, pra entregar as bicicletas e receber as gorjetas merecidas. Com bolos, refrescos e picolés celebrávamos nossa peraltice e a vida. O diacho era quando um torcedor saía antes do término da partida.

(III)

Foi o velho cochilar pra eu pegar a ponte metálica, sozinho, e ir banhar do lado de Timon. Domingo de sol escaldante e céu azulado, convite irrecusável a desfrutar das frescas águas do rio Parnaíba. Conhecido também como Velho Monge, nome atribuído por Da Costa e Silva, nosso poeta maior. Na época, lá pelos anos de 1970, ainda limpo de dar gosto, dando pra beber na mão. Pula daqui, pula dali, brisa gostosa acariciando a manhã, senti um buraco, repentinamente, arrastando-me pra sua profundeza, desespero apagando de vez minha felicidade. Não fosse um pescador, que exercia seu ofício próximo, teria partido muito cedo, sem gozar dos prazeres da vida. Já em casa, ao encontrar Seu Tomé, dei-lhe um forte abraço, chorando em silêncio. Disse que era, quando indagou, por ter perdido o papagaio que empinava na disputa com os meninos do quarteirão. Jamais ele soube do ocorrido, mas comigo, agradecendo e prometendo a Deus, jurei dali pra frente nunca mais desobedecer meu pai.

(IV)

Pior que a goleada de 7 a 1, difícil de engolir até hoje, foi a justificativa dada pra tamanha humilhação. Preferível o silêncio, mil vezes. Ainda mais jogando dentro de casa, em pleno Mineirão, com a torcida apoiando o escrete brasileiro. Integral e incondicionalmente. Apagão uma ova, que ninguém é trouxa pra engolir resposta tão absurda. Na realidade, desdobro dos grandes, eufemismo pra encobrir o desempenho vergonhoso dos nossos jogadores em campo. Quem sabe,  descompromisso total, dado os cachês milionários recebidos, com a própria terra natal, “Ó pátria amada/ Idolatrada/ Salve! Salve!”. Ou, talvez, falta de profissionalismo mesmo, sobretudo, do técnico Felipão, com essa lorota pra boi dormir, de apagão, um branco inexplicável que teria desnorteado o time. Não 1, 2, 3, 4 gols certeiros, mas 7 ao todo, setas cravadas eternamente no orgulho da nação de chuteiras. Não tendo sido maior o placar, sabe lá Deus, por benevolência dos alemães. Amém!