Antes de mais nada quero deixar claro que se você é uma das pessoas a quem Green book não surpreendeu porque é um filme “previsível”, “mais do mesmo”, pode ficar à vontade e seguir a leitura porque sim, esse texto é para você mesmo.
Eu sou totalmente a favor do cinema claro, didático, acessível – estou cansada do elitismo intelectual disfarçado de profundo conhecimento da indústria cinematográfica. Se há uso de uma fórmula de sucesso pra atrair um grande público, que ótimo. Pode ter certeza que você também está incluído nele, embora tente, com esforço, distinguir-se. Aliás, Green book é exatamente sobre isso.
O que me leva a ideia de construir pontes, não muros: o que este filme faz de forma linda.
Na primeira cena logo somos apresentados a um tipo espertão, segurança de boate acostumado com o excêntrico mundo noturno. São os anos 60 em Nova York, e Tony Lip (Viggo Mortensen) trabalha no Copacabana, quando a casa precisa fechar para reformas e ele se vê tendo que procurar um novo emprego. É indicado para a vaga de motorista de Dr. Shirley (Mahershala Ali), um pianista famoso que sairia em turnê pelo sul dos EUA.
O que esqueceram de avisar a Tony é que Dr. Shirley, contrariando sua expectativa, não é médico. E é negro.
(Nota: estamos em 1962, um ano antes de Martin Luther King fazer aquele discurso histórico em Washington clamando por um país sem divisões raciais).
Essa road trip é basicamente o enredo do filme ganhador do Globo de Ouro na categoria comédia e indicado a cinco Oscar este ano, incluindo o de melhor filme.
A história é real e o filme já estreou entre protestos – um deles diz respeito a distorção dos fatos reais, o protagonismo dado ao personagem do motorista em detrimento do pianista negro e o fato de ser dirigido por Peter Farrelly, um homem branco.
Polêmicas à parte, este filme constrói links importantes para pensarmos o racismo estrutural e nosso comportamento, séculos depois, repetidor de práticas discriminatórias.
Não sei se pelo fato de Pedro Gonzaga ter sido assassinado por um segurança de supermercado nos últimos dias, ou dos casos absurdos de racismo no BBB, ou ainda a comemoração quase discreta do posto que Maju Coutinho, finalmente, ocupou na bancada do Jornal Nacional, Green book encontrou um contexto crucial para reverberar em mim – assisti na sexta, revi no sábado, e ainda hoje tô pensando.
Mais do que repetir aqueles termos que estão ficando “sujos” de tanto que os usamos sem a profundidade que merecem – representatividade, lugar de fala, discriminação, racismo – quero me ater aqui a algo que achei essencial na história de Tony e Shirley. Para seguir com as palavras que usamos levianamente sem o esforço de praticá-las: empatia.
Reparem como Tony é o retrato da arrogância que só a classe do privilégio é capaz de esbanjar. Chega a ser constrangedor a cena do início da viagem, ele explicando coisas à Shirley com tom professoral – Shirley, com dois doutorados nas costas, ouve mais educado do que paciente, é verdade. Quero deixar claro que não estou aqui fazendo uma ode a títulos. Mas é impressionante observar a pedância de alguém que, mesmo diante de uma autoridade no assunto se acha no direito de arrotar conhecimento – e isso se repete algumas vezes, inclusive na cena em que ele supõe que um funcionário, que assiste ao conserto de Shirley a seu lado, não sabe o significado da palavra “virtuoso” – curiosamente o personagem também é negro.
Tony está o tempo todo presumindo coisas. Com o tempo ele vai baixando a bola – o mal do esperto é achar que todo mundo é idiota. O impasse na amizade entre o motorista e o músico está para além da relação inter-racial – passa também por conflitos de poder, o poder de quem está autorizado por uma sociedade a ser o que se é.
Dr. Shirley nos é apresentado como um homem culto, vaidoso, afeito a etiquetas e que frequenta o circuito da alta sociedade americana. Parece solitário e “com a cabeça sempre cheia de coisas, como é comum a um gênio”, assim descreve Tony em uma das cartas que escreve a esposa. É importante detalhar que Tony tem uma mudança radical de impressão sobre o pianista negro após vê-lo tocar pela primeira vez. É aí que percebemos que foi assim, através da arte e do conhecimento que Dr. Shirley conseguiu acessar os espaços que “conquistou”.
Conquistou com muitas, muitas aspas. A turnê que o pianista vai fazer no sul dos EUA é marcada por episódios que ilustram a nós e a Tony Lip o fato óbvio de que o racismo está longe de ser uma questão superada. Mesmo sendo a estrela da noite, mesmo sendo apresentado como convidado de honra, Don Shirley é impedido muitas vezes de jantar nos restaurantes onde apresenta-se. É instalado em despensas, impedido de usar o mesmo banheiro que os convidados brancos ou de provar um terno exposto na vitrine de uma loja.
Quer dizer,
Mesmo tendo dinheiro, status, competência, talento, título, ou o diabo a quatro o pianista negro é sempre humilhado.
Desacreditado.
Desmerecido.
Discriminado.
Em um dos diálogos mais importantes, Tony Lip acusa o patrão de ser fresquinho, de gostar de luxo e estar sempre no seu trono, sem se misturar com as pessoas. Há também o episódio em que Shirley é convidado a usar um banheiro externo de uma mansão chique onde se apresentava.
Ele se recusa e decide voltar ao hotel.
“Esta é a diferença entre nós, eu mijaria no mato de boa”, diz mais ou menos o motorista branco, acusando o pianista de estar sendo preconceituoso – volte essa cena várias vezes para nunca mais permitir que alguém perto de você fale em preconceito reverso, por favor.
É interessante perceber que se Tony tivesse um tiquinho de autocrítica perceberia que o próprio fato dele, um motorista em serviço, está sendo autorizado a falar todos esses absurdos ao patrão já dá indícios de que não, não é só esse simples fato que os distingue. Há uma diferença marcada na pele e sentida todos os dias por Dr. Shirley, e que Tony Lip, do alto do seu privilégio arrogante, sequer se esforça para perceber.
Para mim um dos grandes problemas da atualidade é a perda da sutileza. Por isso acho Green book um filme feliz ao construir pontes – o conceito de diferente é levado para além da questão racial. A história de Green book não é preto no branco, ao contrário: traz as zonas cinzentas, pelas quais sou apaixonada. Só elas são capazes de esboçar um pouco da complexidade humana – ninguém é só um rótulo, uma roupa, um título acadêmico, todo mundo é um híbrido de coisas e contradições e é um erro agruparmos tudo nas caixinhas dos nossos preconceitos.
Dr. Shirley encontra na formação clássica uma maneira de se distinguir. Por isso para ele é tão pesado e forte questões banais para o motorista branco, acostumado a levar as coisas tão a ferro e fogo e resolver tudo sempre a seu jeito – o jeito de quem teve a vida toda o privilégio de ser o que é, enquanto o outro vive a angústia de ser sempre insuficiente. O conflito do pianista é não se sentir pertencente a nenhum dos grupos sociais: é mais culto e rico do que se espera de um negro e menos homem ou branco do que espera de um branco.
E aí, de forma quase previsível, os papéis são trocados quando Dr. Shirley assume o volante para que os dois estejam em casa a tempo da ceia de Natal. De um jeito claro, bem-humorado e até incômodo (o Tony Lip sou eu, pode ser você, mas é com certeza a branquitude), Green book mostra que o primeiro passo na tentativa de nos tornarmos iguais é aceitar e respeitar as nossas diferenças.
“Ser genial não é suficiente.
Mudar o coração das pessoas requer coragem”.
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