Nem sempre a gente sabe o que está filmando. “Estas são as primeiras imagens que eu filmei”, diz Petra, assim mesmo, em primeira pessoa, já quase na metade do filme. Foi dali, daquelas imagens, ou melhor, da angústia de entender o que elas poderiam dizer, que surgiu a inquietação fundamental para “Democracia em vertigem” – o documentário mais político e sensível dos últimos tempos que você vai ver.

 

Político aqui foge do sentido partidário, embora o filme de Petra Costa, de forma honesta, revele um posicionamento sobre o Game of Thrones que virou o Brasil – todo filme, na verdade, em essência, revela. Pra mim a Petra põe o dedo na ferida de forma corajosa quando se coloca na história como mais do que observadora. Foi Chris Marker, aliás, francês cuja frase ela cita, que lançou a justificativa para cineastas falarem de si mesmo sem remorso: “Ao contrário do que se costuma dizer, usar a primeira pessoa em filmes tende a ser sinal de humildade: a única coisa que tenho a oferecer sou eu mesmo.”

Petra está lá o tempo todo. Desde antes de chegar ao mundo, na verdade – é extremamente lúcida a consciência de que sua história de vida, assim como a história de um país, prescinde sua existência. Antes de Petra vieram seus avós, e depois deles seus pais, e também Pedro Pomar, o amigo da militância, assassinado na ditadura. Seu nome é em homenagem a ele e reconhecer isso no filme é, talvez, a forma que ela encontrou de dizer que sua história política já estava o tempo todo ali.

Pensando agora, é ousado o projeto de Petra. Está cada vez mais raro encontrar gente com pique e vontade de entender a realidade, de expandir a necessidade, se colocando como peça importante da construção de uma verdade – ela tenta isso tudo, abandonando o lugar de isentona que, no geral, cobramos da imprensa, da ciência, do cinema, da história. Spoiler: nunca vai acontecer.

Todo recorte marca uma posição, é uma escolha que se faz – seja estética, temporal ou pretenciosamente, imparcial. “Eu não sei como isso deve ser contado”, assume a diretora-narradora que se dedica por duas horas a interpretar imagens – imagens feitas por ela, imagens feitas pela televisão, imagens feitas pela câmera de um elevador e também por qualquer um de nós no lugar e hora que só fizeram sentido como certas quando analisadas no depois.

Enquanto a crítica resume o filme de Petra pelo seu trunfo de furar bastidores e capturar ângulos inacessíveis de momentos que só mais tarde se configurariam cruciais para o desenho político do país, eu o acho forte e corajoso por suas inquietações, pela franqueza de suas motivações e pela honestidade de suas limitações: a imagem não é um documento inquestionável.

É muito mais o que você diz e faz nos momentos em que não está sendo filmado que me diz quem você é – ou, colocando de outra forma, o modo como você se comporta diante das câmeras que lhe interessam que define o seu caráter. A exemplo, o desdém com o qual Aécio trata Petra em uma das cenas que, provavelmente, julgava off. Aquilo que nós somos quando ninguém está vendo é o que melhor nos define.

 

É assim que a cena de um sindicalista roubando o cigarro da mão de Lula me diz mais sobre ele do que milhões de discursos ou entrevistas. A arara com os terninhos de Dilma passando em silêncio, sendo retirada do Palácio da Alvorada, as metáforas sofríveis usadas pelos deputados (que, impressionantemente, sabiam que estavam sendo gravados) e o close em um cordão de isolamento caído – derrubado por uma direita enfurecida e odiosa, incapaz de respeitar qualquer noção de limite.

Nem sempre a gente sabe o que está filmando. E assim, talvez, se forma a metáfora imagética mais perfeita do filme: a cena em que faxineiras tentam remover toda a sujeira do carpete na casa símbolo de poder no país. Petra então faz a pergunta que polarizou o Brasil desde o impeachment – você esperava? Talvez nem ela soubesse, naquele momento, o que aquela imagem iria representar – talvez a faxineira, que só cumpria timidamente ali a sua função nem soubesse exatamente o que dizer. E foi assim, meio sem jeito e ao mesmo tempo convicta que ela conseguiu resumir o sentimento que unificava, naquele instante, uma nação: “A democracia, eu acho que ela não existe não”.

Pode-se seguir para sempre acusando a esquerda de não fazer autocrítica – mas tirem Petra dessa. Petra usa a história de enriquecimento da própria família para analisar a relação promíscua da política com o dinheiro. Usa aquilo que a gente tem de mais pessoal – nossa história e nossos próprios sentimentos – para tentar narrar da forma menos distópica possível o curso dos acontecimentos políticos desse país. Usa a própria náusea como combustível e a insistência como estratégia para se manter firme e resistindo – não importa o tamanho e a força da vertigem.

 

*Título em referência a música AmarElo, de Emicida, com participação de Majur e Pablo Vittar. (Ouça aqui).