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Navegando por entre as águas da Memória Trágica de Khronos

José Luís de Barros Guimaraes

 

Não pretendo rogar a Deus para que se interceda nos ventos desgovernados que levam sem destino o Navio sem Capitão deste projeto de Nação. Desde quando os seus representantes lusitanos assassinaram sem misericórdia – ao som de um belo fado português – os filhos de Deus Tupã, sabe-se que não se pode contar com as suas intervenções de outrora relatadas na bíblia sa(n)grada! Não pretendo depositar o leve sopro de esperança naquilo que o Velho Mundo idealizou, no auge de sua burguesa racionalidade, de boa, bela e verdadeira Humanidade, pois aprendi com o Zumbi dos Palmares que o horror e a barbárie possuem os mesmos traços humanos desta decadente humanidade. Do céu só cairá violentas tempestades; e dos homens bem nascidos permanecerá a cínica tirania contra as várias minorias que exigem botes salva vidas de uma pátria despida de sensibilidade e empatia.

Todavia, na falta de um bom guia deste Navio sem Capitão, que vai afundando cada vez mais esse projeto mal elaborado de nação, suplico-te Khronos, ó deus do tempo, pai da nossa majestosa História, inventor do passado, presente e futuro, presenteia-nos com a sua Trágica Memória para que nos conectemos, sem demora, com os grandes Traumas adormecidos destes quinhentos e dezenove anos sofridos de subserviência coletiva.

Permita-nos, pela  da passagem do tempo, nos desprendermos desta criminosa ilusão de que o mundo nos reverencia por emanar da nossa alegria, tropicalismo, e antropofagia, pelas várias raças que aqui habitam, o autêntico valor do pacifismo. Não somos filhos de Gandhi, nem primos distantes de Dalai Lama, não carregamos em nossa biografia a compaixão de Jesus Cristo, e muito menos em nossa história o belíssimo discurso de Martim Luther King. O mar revolto por onde trafega este grande Navio sem “rimas, ventos e velas”, com a bandeira tremulante verde e amarela, foi pintada com o vermelho sangue dos vários corpos sem vidas que não geraram, por partes dos pseudopatriotas ignorantes e cretinos, nenhuma comoção coletiva.

Por sermos uma tripulação esquecida, que não se atenta em assistir os velhos filmes que são exibidos – na grande sala vazia da nossa Memória Perdida – repetimos diariamente, a cada segundo do imponente Presente, os mesmos horrores de um passado recente. Não há distância entre o instante e o ocorrido, pois apesar das ambientações, falas, pretextos e contextos distintos, o que temos é o eterno retorno do mesmo de uma história de imenso sofrimento para todos os nativos, negros, mulheres, pobres e pretos.

Quando ouço risos cínicos em comemoração ao fim do órgão responsável pela proteção do direito dos índios, percebo que o sangrento legado de Domingo Jorge Velho permanece vivo nas ações do pseudo-Capitão decrepito que joga ao mar os grandes e furados patos amarelos. Quando me deparo com o assassinato em série de personalidades de luta como Marighela e Marielle, ou de todos os filhos esquecidos de Xangô, seja na fila do banco, passeando na rua, em supermercados ou dentro do metrô, percebo que continuamos a navegar sem nenhum pudor ou receio, nos aterrorizantes e bárbaros Navios Negreiros.

Quando leio os relatos de violências físicas e psíquicas bem como os feminicídios nossos de cada dia – ignorando a inteligência, o corpo, o direito e a vontade das minas – percebo que continuamos com os mesmos hábitos violentos dos velhos Senhores de Engenho. Quando leio nos jornais que mais um LGBT foi assassinado sem pudor por representantes de um Deus que ainda não aprenderam o significado do amor, percebo que nunca deixamos de viver um Apartheid à brasileira de sexo, raça e gênero.

Por isso Khronos, ó majestoso deus do Tempo – que essa tripulação que nunca sentiu o violento vento da nossa triste história ecoar por entre os tímpanos da nossa atrofiada recordação – ouça o coro imponente da sua Trágica Memória reverberar nos espíritos adormecidos que necessitam apenas se colocar no lugar do outro para, talvez, quem sabe, um dia, entender que esta tripulação, enquanto nação, permanece completamente perdida.

E talvez, quem sabe, um dia, descartando do horizonte esse Deus assassino e essa Humanidade em ruinas, possamos remodelar o Destino deste projeto mal elaborado de Civilização que insiste em navegar em uma missão suicida em direção aos fortes arrecifes. Que a dor insuportável das nossas feridas, que estão há quinhentos e dezenove anos expostas, latejantes e em carne viva, talvez, quem sabe, um dia, seja o nosso mapa, bússola e guia. E talvez, que sabe, um dia, possamos nos perdoar. E talvez, quem sabe, um dia, ao encararmos os nossos horrores, possamos tirar a esperança pra dançar. E talvez, quem sabe, um dia, possamos despertar do maior dos sonos para finalmente navegar por entre as águas da Memória Trágica de Khronos…

Perguntas que brotam do lado de dentro

Por Francisco das Chagas Amorim de Carvalho

 

E se estivéssemos todos unidos não pelas ideias, mas pelas plantas dos pés? [daqueles que ainda pisam no chão]; então aprenderíamos a lição dos ipês-amarelos: quanto mais perto do azul do céu, mais se entranham no coração da Terra. Então veríamos que a linha do horizonte é o lugar onde se equilibram as crianças e a bailarina, onde cultivam os poetas, onde está o jardim das utopias. Veríamos que o interior da rosa vai dar neste lugar onde tudo nasce, é a direção que temos em comum: o lado de dentro das coisas, no fundo, a face interior do mundo, é por aí que passa o círculo que contém todos os círculos; tudo na vida é circular, uma ciranda.

E se as plantas nos conhecem, a cada um de nós, e por isto o chá de lírio para a imaginação, o de alecrim para a memória, os florais de Bach e tudo mais? Por isto nos restaura entrar na mata, andar com os pés no chão, abraçar uma árvore, entrar na água. E se foi o vento que fez os meus cabelos? O amanhecer e as estrelas, os meus olhos? E se foi o cantar dos pássaros e as ondas do mar esculpiram meus ouvidos? Explicaria porque tua voz e te perfume me atraem? E se realmente são palmas as mãos em mãos amigas?

Como podem se vender a terra, os rios, e todas as vidas que são livres no ar, se elas vieram antes? Como podem dizer que são propriedades de alguém? Os minerais são propriedades da água, o ar puro propriedade das florestas, nós somos propriedade da Natureza. Que tristes faculdades de economia e de comércio estas que diante do mar e das florestas não veem beleza, apenas toneladas de matéria para negociarem na Bolsa de Chicago.

No dia do juízo, em um prato da balança colocarão meu coração, no outro uma pena. Mas toda a economia tem se baseada no “ouro”, “a verdade se pesa em ouro”, “o silêncio vale ouro”, explicam que é por sua raridade e por seu brilho …por ser pouco na naturaleza… Porém, uma criança bem alimentada também brilha, então, isto é já uma raridade? E nossa moeda fosse tempo de vida? Um prato de comida seria um tanto de tempo de vida. Uma camisa vale um tanto de vida.

E se o futuro estivesse lá atrás ou suspenso nas estrelas como os desejos? É costume pendurar as melhores sementes da safra nas vigas da casa, como penduramos nossos pensamentos, nossos sentidos; talvez por isto olhamos para cima quando queremos lembrar; uma semente é um cristal de tempo, palpável, esta potência de futuro, experiência presente, é a memória da Terra.

E se a vida fosse um sonho? Seria necessário sonhar tanto que esparramasse pelas beiras da realidade; a verdade é o caminho feito das pegadas dos muitos que sonham, ou então um sonho que se esqueceu de acordar; é esta praça onde os muitos caminhos se encontram.

E se é nossa raiva e nossa alegria que move as tormentas, esfria, faz chover e jorrarem os vulcões? A lama tóxica que escorre naquele rio, que mata o peixe e o pescador, é egoísmo líquido que escorre das veias do homem civilizado – a ganância que nomeia de progresso. A vida precisa do tempo d e m o r a r… Vou escrever um poema e chamar Elogio ao pote de barro.

E se todos os animais nos compreendem mas se negam mostrar, com medo de que lhes ensinem a trabalhar? Eis a solução para o desemprego: trabalhar dois dias da semana, todos os outros dias é para cantar, ornar esta terra, aprender a tecer uma rede, ler um livro, brincar.

Se parássemos de produzir, produzir, produzir; cada um teria tempo de produzir para si; se entre amigos tudo é de todos, não faltaria para ninguém. Se parássemos de crescer, crescer, crescer, haveria o tempo de florescer, perfumar, e dar frutos, amadurecer.

Por outra parte se diz: “está falando água”, como se água fosse coisa sem valor. Quanto menos valoramos o essencial, mais diminui o nível dos rios e secam as fontes. Escasseia a água, o essencial é isto que brota e se entrega, sem nada cobrar. Só podemos dar o que sai de nós mesmos.

E se todos fossemos educados na língua dos pássaros? Fui a Sevilla e reparei que as pombas do Parque María Luísa falam a mesma língua que as pombas do Parque Ibirapuera ou da Praça da Bandeira; fui iniciado na língua dos pássaros, em algum momento da sua história a humanidade esqueceu o idioma da paz. Sim, a cada dia se ouve menos a voz da natureza, os animais e insetos estão cada dia mais em silêncio, e mais distantes; por isto, talvez, cada vez menos nos entendemos.

Os corretos andam curvados, e pelo peso, já fora do eixo, pois a declividade da eclíptica tem uns 23 graus; os que parecem tortos, que são leves e plainam, estão com a Terra.

E se existisse tendência política nas plantas? Existiria o movimento da vida. Observei que as plantas quando acordam, giram em uma espiral ascendente à esquerda; quando sonolentas e esvai sua vitalidade giram no sentido contrário, se endireitam.

…um amigo entendido me disse que estes movimentos têm a ver com o girar dos astros, então é isto: uma fenomenologia das ideias políticas – não é pela força da gravidade, os corpos não caem, ou são atraídos pela força do coração da terra, ou se deixam levar para o nada…

 

Prenda-me, por favor! Prenda-me

Por José Vanderlei Carneiro

 

O que escrevo, eu sei, não diz o que sinto. Não direi um palavrão. Não farei nenhuma apologia ao crime. Não disseminarei o ódio, nem mesmo em nome da paz. A palavra sofreu interrupção e a justiça foi golpeada. É como se houvesse um surto insano generalizado. Todos os sentimentos ruins se tornaram públicos. As instituições foram banalizadas sem credibilidade nem respeito. Restou o indivíduo com sua estupidez. O indivíduo sem propósito se tornou aquilo para qual foi inventado – homo demens, demens! É a materialidade da violência. “ – Você sabe, estou pensando em uma coisa. Na prisão, as pessoas são autorizadas a sair para tomar ar fresco ou para tomar sol todos os dias, mas nós, aqui, quase nunca saímos.”

Não sou Martha de Catharina Ingelman-Sundberg. Não praticarei nenhuma contravenção, mas prenda-me, por favor! Você acha que ainda tem algum um lugar em que a razão não seja absolutamente fútil e que o direito não tenha sido usurpado? Veja a expressão da política contemporânea: política ou antropofagia. “Pouco me importo!” Está escrito: “Tudo vem do pó e tudo retornará à lama”.  E nós assistindo nas redes! Venho nos frames do pensamento, desejando um lugar ao sol, pois está tudo tão cinza nestas manhãs. Não tenho conseguido distinguir o “cidadão de bem” do cidadão normal.  “Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar!”

Não desejo ser feliz, não quero saber de Agostinho, Lutero ou Calvino. Nem do Deus deles.  “Serás Deus ou Deusa? Que sexo terás? Mostra teu dedo, tua língua, tua face…  Deus dos sem deuses.” Eu quero mesmo é ter uma vida em texto, corpo e gozo. Portanto, prenda-me, por favor! Do contrário, vou fazer igual ao amigo do amigo meu, “Vou-me embora para Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a existência é uma aventura. De tal modo inconsequente…”, sem hipocrisia ou moral farsante. “- Você entende? Eu posso querer morrer jovem ou mais tarde possível, mas quero viver a vida como ela é, enquanto eu puder.” Mas aqui não fico. Não gosto de armas, não posso falar nem ter amigos, não existe lei nem leitor, somente amenidades e palermice.

Preciso conversar comigo. “Deus dos sem deuses. Deus do céu sem Deus. Deus dos ateus. Rogo a ti cem vezes. Responde quem és?” Quase como uma “lógica extravagante” analisada pelo filósofo francês. Eles jamais compreenderão! Pois o que nos orienta na vida é o avesso do avesso das coisas do coração, uma espécie de inversão da sensatez. “Jamais poderão aprisionar nossos sonhos!” Se para o grego antigo, o filósofo tinha a função de governar com sabedoria, para o tupiniquim moderno é preciso somente um atestado de insanidade mental para navegar sobre a geração wi-fi. O sentimento de humanidade se tornou clamor do espírito. Esse é uma dimensão do amor incompreensível. Para chorar precisa-se apelar aos tribunais.  A que ponto chegamos!

Prenda-me para que eu possa ler mais, meditar mais, amar mais, ir às profundezas do silêncio para contemplar a delirante forma de pensar do menino. “Os meninos e o povo no poder”. Equivoco absoluto. Reina a irracionalidade, o ressentimento, o ódio… O fim da política foi efetivado. Eu preciso voltar à semiótica para operar com a teoria da ação. “Amo a esquerda pela burrice ingênua: ela acredita no povo. Pensa que o povo é racional, e desanda a tentar convencer por meio de argumentos, verdades e razão. Não sabe que o povo é levado pela imagem”, assim falou o poeta. Eu preciso investir na psicanálise para entender o abismo da alma humana.

Remeto a estratégia de ação da Martha e de suas amigas, para dizer que, ao contrário delas, não planejarei nenhum assalto. Os aparelhos de repressão mudaram. Não há porrete como na ditadura. O que há é sedução midiática. “A fala macia da serpente é mais eficaz.” O senhor sabe que meu apelo é sincero. Prenda-me, por favor, pois terei a resiliência da experiência do caído e o reconhecimento do homem bom que diz: “…tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me. (Mt.25, 35-36). No “cárcere” da alma, o desejo a dignidade, a gratidão, o ode à paz sobressaem à liberdade.

Mulher: você só será vencedora se abandonar o seu pudor!

por Nayara Barros

É isso mesmo o que você leu: tudo o que ensinaram a você como uma educação de “menina” não serve de absolutamente nada no mundo das vitoriosas, das que lideram grupos de pesquisa, das que são eleitas, das boas mães que terão que enfrentar um mundo cruel para cuidar de seus rebentos, das que são levadas a sério por homens e mulheres sérios em todos os lugares que ainda valem a pena nesta Terra. A timidez e o pudor são falsos artifícios que diminuem e até destroem o imenso potencial que você tem para exercer sua liberdade e voz de criação e de comando no mundo. Eu também recebi essa educação e a melhor coisa que fiz por mim, na minha vida, foi ir me livrando desse peso aos poucos.

Não tenha receio em dar a última palavra, mulher! Em precisar falar mais alto, em não admitir ser desrespeitada, em não admitir o assédio do colega de trabalho, do professor da universidade que assedia as estudantes oferecendo aprovação por sexo, ou de algum velho tarado sentado em um desses cafés da cidade, achando que pode ditar o tamanho dos shorts das adolescentes (assédio e pedofilia, o nome). Abandone o pudor e essa mania de pedir desculpas por existir e exerça sua coragem! Mostre o dedo do meio, xingue com o que você aprendeu com seus irmãos e primos, grite bem alto para expor quem tentar invadir seu espaço e quem tentar diminuir sua existência humana. E mais: se for um caso mais grave, chame uma amiga e denuncie o caso para a polícia. Existem delegacias para a proteção das mulheres e, apesar de muitos cínicos desejarem, não, elas não serão extintas.

Quando o caso não te colocar em risco de vida, junte suas amigas e faça um escracho ao vivo ao energúmeno que quiser te diminuir, mulher! Mande calar a boca! Faça uma batucada, palavras de ordem, cartazes desaforados, caras pintadas de batom vermelho, lenços verdes cobrindo o rosto e até seios à mostra, se for o caso (não é o meu método favorito, mas vai que a situação exija?). “Pixos” de pintas amolecidas e vaginas exaltadas! Inspirem-se em Kollontai, que alerta sobre o perigo da falsa moral do pudor e nas Guerrilla Girls, que denunciam a arte feita da mais pura objetificação da mulher! Inspirem-se em Esperança Garcia, que, mesmo ameaçada, ousou escrever para denunciar seu malfeitor e defender a si e aos seus. Exija retratação às instituições responsáveis! Que seja obrigado a estudar feminismo e gênero e frequentar reuniões de homens dispostos a abandonar a masculinidade tóxica – conheçam a história de Terry Crews (Julius, o pai do Chris de “Todo Mundo Odeia o Chris”), assistam ao documentário “A máscara que você vive” (tem na Netflix).

Que seja o-bri-ga-do a nos ouvir e a mudar até aprender que: A MULHER NÃO É CULPADA PELA VIOLÊNCIA QUE SOFRE, NÃO IMPORTA A ROUPA QUE USE! MULHERES DE BURCA SÃO ESTUPRADAS NO ORIENTE MÉDIO! O ESTUPRO VEIO ANTES DA MINISSAIA! E eu não acredito que tive que falar sobre isso DE NOVO, em pleno ano de 2019, no dia do meu aniversário!

Mas voltando à falsa moral: o pudor mata! Nos mata aos poucos quando escondemos do mundo nossos dons, que poderiam servir a todos, nos mata silenciando os abusos que sofremos e nos mata de verdade, quando estamos em um estado com os mais altos índices de feminicídio. O pudor não é charme, não é caminho para ser amada. O pudor é a arma que vão usar para você se tornar um objeto sem sentimentos ou desejos próprios. Não deixe o pudor te destruir! Destrua ele primeiro e reine você mesma dentro de si, mostrando a sua beleza humana e plena ao mundo!

O mundo quer você livre, mulher! Esse é o seu primeiro passo.

Vida e Sonho: Metáforas

Por André Henrique M. V. de Oliveira

 

Por mais absurdo, inacreditável ou mesmo óbvio que possa parecer, muitas das teorias filosóficas surgidas, por milagre ou maldição, na cabeça dos mais insignes pensadores que povoam a história da filosofia são posteriormente confirmadas pela, sempre confiante, ciência. Um exemplo dessas teorias pode ser identificado na historiografia filosófica sob o nome de idealismo, notadamente atribuído em sua origem a pensadores alemães.

Se compreendida de forma superficial, a afirmação de que o mundo é uma criação da mente de cada indivíduo pode parecer apenas um delírio, mania de grandeza ou atestado de necessidade de tratamento psiquiátrico. Mas, se contarmos até sete, veremos que realmente faz sentido dizer que “o mundo é minha representação”.

Não é perigoso afirmar que o chamado idealismo alemão encontra no filósofo Imannuel Kant suas raízes mais fortes. Em sua monumental Crítica da razão pura o pensador demonstra que, apesar de podermos dizer que o mundo existe independente da forma como nós o percebemos, somos completamente incapazes de conhecer um tal mundo; toda realidade que nos é acessível consiste apenas naquilo que é captável por nossos órgãos sensoriais, conjuntamente com o nosso cérebro.

Na verdade, Kant não chega a ser tão cru(el). O que ele diz é que possuímos formas puras para a sensibilidade (o espaço e o tempo) que nos permitem perceber os objetos do mundo; e formas puras do entendimento (unidade, pluralidade, necessidade, causalidade, etc.) que nos permitem conceituar tudo que compõe o mundo. Um grande admirador de Kant, Arthur Schopenhauer, é que algum tempo depois teve a sacada de dizer: todas essas formas puras são tão somente funções cerebrais. Nada mais.

Pois bem. A fisiologia dos órgãos dos sentidos confirma que não temos acesso à realidade de maneira pura e direta. O que percebemos e nomeamos como “mundo” ou “objetos” no mundo, é construção do nosso cérebro. “A fisiologia dos órgãos dos sentidos”, escreveu Albert Lange ainda no século XIX, “é o kantismo desenvolvido ou retificado”. De modo geral, o aspecto da realidade ao qual não podemos ter acesso é chamado pelos idealistas de “coisa em si”. Já a parcela da realidade construída segundo nossa atividade cerebral é chamada de “fenômeno”, ou “aparência” (Erscheinung, em alemão). Mas, agora deixem-me contar um sonho que tive.

Eu estava dirigindo. De repente notei que o freio não estava funcionando. O carro descia uma ladeira em alta velocidade e eu me vi numa situação em que nada podia fazer para impedir o acidente. Perdi completamente o controle do automóvel, que no fim da ladeira atingiu a grade de proteção de uma ponte. A colisão foi forte a ponto de romper a grade de proteção e o carro caiu no rio. Fiquei preso enquanto a água invidia o carro. Completamente imerso e sem qualquer chance de escapar, apenas me debatia vagarosamente, tendo sido dominado pela água. Era meu fim. Acontece que quando morri……acordei.

Já desperto, fiquei encabulado com isso: no sonho eu não consegui experienciar minha morte. Na vida, digamos, “real”, também não conseguimos experienciá-la. Não há como conceber uma experiência da morte, pois isso implicaria ter consciência, e se temos consciência não podemos estar mortos. Quando morri no sonho, acordei na vida. Fiquei me perguntando: quando morrer na vida, acordarei também? Claro que não quero saber a resposta…

A morte, assim como a “coisa em si”, é o inacessível, o não-experienciável; é aquilo que nossa consciência não pode captar de forma alguma. Tente você, caro leitor, imaginar um mundo onde você não está. Conseguiu imaginar? Claro que não! Nesse mundo que você imaginou existe alguém que o observa: é você mesmo, olhando para o mundo. A consciência é uma película (imaterial?) que não conseguimos atravessar e que também não sabemos determinar quando foi urdida. O nascer e o morrer são ações que não estão sob meu controle ou, se estão, demonstram que há algo no “eu” que é muito mais poderoso, determinante e impositivo do que a frágil “consciência-eu”.

Em algumas línguas, quando se diz “eu nasci” o verbo ser vem sempre como intermediário do verbo nascer. Por exemplo, “I was born”, “Je suis né”, “Ich bin geboren”, ao pé da letra, significam “Eu sou nascido”, “Eu fui nascido”. Do mesmo modo “I am dead”, “Je suis mort”, “Ich bin tot”: “Eu sou/estou morto/morrido”. O verbo fica sempre no particípio passado, como se algo outro tivesse feito aquilo em mim – a ação de nascer e a de morrer não são executadas por um “eu-consciente”.

Se, como bom cristão, eu ainda quiser acreditar no livre-arbítrio, então deverei admitir que são os atos que não escolho (nascer/morrer) que me tornam livre. E isso é muito bonito: não sou eu (consciência) que mando na minha vontade, a minha vontade é que manda em mim. Ou, simplesmente, eu sou minha vontade, portanto, sou livre justamente porque não me escolhi. Como dizia Rimbaud: “É errado dizer ‘eu penso’. Deveríamos dizer ‘sou pensado’.”

Mas, esse texto não deve ser levado ao pé da letra. Até porque “ao pé da letra” é uma metáfora.