Wellington Soares

Coisas e outras

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Rio 2016

Se pelo noticiário televisivo o Rio de Janeiro está bombando nesta Olimpíada 2016, imagine você lá participando, in loco, dessa grande festa esportiva que congrega atletas de todo o planeta. Foi o que presenciei na semana passada, tomado de pura emoção, na eterna Cidade Maravilhosa, agora mais bonita com as obras de mobilidade urbana e o formigueiro humano oriundo de vários países. Logo na chegada, nada melhor que presenciar, num Engenhão lotado de gente, a grande maioria de coração verde e amarelo, nossa seleção feminina de futebol Rio 16 - 1batendo as chinesas de 3 a 0 – gols de Mônica, Andressa e Cristiane. Ainda mais vendo a craque do time, Marta Vieira, a cinco vezes melhor do mundo, dar um show de bola, armando as jogadas e empurrando a equipe. E o que dizer da torcida brasileira, em coro, cantando apaixonadamente “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”; ou, então, soltando o grito preso na garganta com o “Olê, Olê, Olê, Brasil, Brasil”.

Outro momento de grande euforia, desta vez no Parque Olímpico, Barra da Tijuca, foi a busca da Sarah Menezes pelo título de bicampeã. Os presentes torcíamos que ela, na Arena Carioca 2, repetisse o feito histórico de 2012, em Londres, quando se tornou a primeira mulher judoca a conquistar uma medalha de ouro em Olimpíada. Para os conterrâneos que fomos ao Rio, em número bastante significativo, nada impressionou mais que ver o ginásio inteiro gritando o nome de nossa lutadora, demonstrando com tal gesto, independente de medalha ou não, o reconhecimento pela sua bravura e destemor. Basta relembrar os aplausos que Sarah recebeu ao final da última luta contra a representante da Mongólia, Urantsetseg Munkhbat, líder do ranking mundial, na disputa acirrada pelo bronze. Rio 16 - 4

De fazer o coração disparar perigosamente, quase nos levando a bater as botas, foi a lindíssima abertura do evento no lendário Maracanã, uma festa de coreografia, luzes, alegria e muita vibração. Por algumas horas esquecemos, difícil de acreditar, as crises política e econômica que assolam o país. Com recursos bem abaixo da Londres-12, fizemos o mundo tomar conhecimento do que somos capazes em termos de criatividade e inspiração – vide a passagem do avião 14-Bis, a Garota de Ipanema, a deslumbrante Gisele Bundchen e o show dos fogos de artifícios. Sem falar também da mensagem que deixamos ao mundo sobre nossa preocupação com a questão ecológica, a urgência de fazermos algo pela preservação do meio ambiente, sob o risco de comprometermos os futuros Jogos Olímpicos. A repercussão negativa coube, pelo visto, ao presidente interino Michel Temer que, tentando faturar com o sucesso do evento, recebeu uma estrondosa vaia.

Rio 16 - 5Como também sou filho de Deus, aproveitei para assistir a algumas atividades culturais, com destaque o show de Diogo Nogueira e Taís Macedo, no Boulevard Olímpico, Pier Mauá, Centro do Rio. Os talentosos  sambistas cariocas levaram o público, sob a batuta da Orquestra Imperial, ao delírio completo – umas 50 mil pessoas, contando brasileiros e estrangeiros, dançando conforme seu próprio compasso. Sem falar também do espetáculo Bossa Nova, lindamente apresentado por Patrícia Mellodi, cantora piauiense radicada no Rio,  no famoso Little Club, Beco das Garrafas, local onde surgiu Elis Regina. Prazeroso ainda foi ver dois filmes magníficos: Julieta, do extraordinário Pedro Almodóvar, comovente história de encontro e desencontro entre uma mãe e sua filha; e Chocolate, do diretor Roschdy Zem, que resgata a trajetória sofrida e de sucesso de Rafel Padilha, o primeiro artista circense negro da França. No mais, estive presente no lançamento da nova edição da Revestrés, na Blooks Livraria, Espaço Itáu de Cinema, Praia de Botafogo. Rio 16 - 3Como tudo vale a pena se a alma não é pequena, segundo disse o vate português, a viagem ao Rio valeu muitíssimo a pena, ainda mais acompanhado de uma trupe querida – Lucíola, Andreia, Carlos Jr., André, Samária, Luana e Pokemon.

Cássia Eller, o musical

CASSIA - BannerzinhoAinda hoje maravilhado com o musical Cássia Eller apresentado no final de semana em Teresina, no Theatro 4 de Setembro, com a divina Tacy Campos encarnando literalmente a artista que assombrou o Brasil, em  pouco tempo de vida, com o seu jeito irreverente de cantar. Ou, como disse uma amiga no final do espetáculo, em orgasmos múltiplos diante de tributo tão poético e verdadeiro, sua trajetória de vida e repertório musical cruzando-se de maneira indissociável, a tirar o fôlego de todos ali, cada um dos espectadores querendo ser, a exemplo do talentoso elenco, Cássia Eller. Depois do instrumental de abertura, a nossa voz só veio aparecer mesmo, dos presentes ali, embora ainda sussurrada, com Lanterna dos afogados, de Herbert Vianna, na estrofe que tem tudo a ver com ela: “Uma noite longa/Pruma vida curta/Mas já não me importa/Basta poder te ajudar”. Logo no comecinho da carreira, Cássia já havia avisado, talvez em visão premonitória, que viveria pouco, igualzinho a Janis Joplin, a roqueira norte-americana que se encantou aos 27 anos, uma de suas grandes influências, tanto musical como do ponto de vista comportamental. Daí o sentimento de liberdade plena, pouco se lixando  pra fama e dinheiro, ligada que estava em outros baratos de viagem e, sobretudo, em mostrar os peitos sem pudor, quer num palco ou praia, quebrando assim tabus e preconceitos arraigados na sociedade careta da época. Logo ela que foi criada numa família tradicional e conservadora, com pai militar, tendo sido educada para ser professora. Coragem danada Cássia tinha, mesmo tímida de dar pena, ao expressar para os pais dois desejos inegociáveis: ser cantora e gostar de meninas. Sem falar também da ousadia em deixar a outrora provinciana Brasília, onde os “coroas” foram morar, e partir em busca de uma carreira artística no sul maravilha – Rio de Janeiro e São Paulo. Difícil foi segurar as emoções quando ela, reencarnada ali, no Theatro 4 de Setembro, onde já havia se apresentado no passado, relembrou sucessos de Lennon/Mc Cartney (Come Together), Dolores Duran (Noite do Meu Bem), Luíz Melodia (Juventude Transviada),  João do Valle/Luiz Wanderley (Coroné Antônio Bento) e Cazuza/Frejat (Todo Amor que Houver nessa Vida). Bonito foi ver sua emoção, ao ter o  Chicão, ao receber uma belíssima música do Renato Russo, 1º de julho, em homenagem a ela e ao filho: “Eu vejo que aprendi/ O quanto te ensinei/ E é nos teus braços que ele vai saber/ Não há por que voltar/ Não penso em te seguir/ Não quero mais a tua insensatez”. E de bolar de rir, ao ser pressionada a ligar para o Caetano Veloso, ele que a presenteara com uma linda canção, quando disse à empregada que falasse ao compositor baiano, tão logo acordasse, que se ele quisesse chuparia a rola dele. As lágrimas desceram sem que pudéssemos controlar foram, em muitos dos fãs ali extasiados, quando Cássia interpretou, somente comparável a Edit Piaff, Ne me Quitte Pas, de Jacques Brel; e ao simbolizarem sua partida, no final do musical, com um jogo de luz sobre uma cadeira vazia, sob a trilha sonora de O segundo sol, de autoria de seu grande amigo e letrista preferido, Nando Reis. E naquele exato instante, não só sentimos a sua forte presença entre nós, como desejamos ser, espiritual e eternamente, Cássia Eller.

“Cu é lindo”

Quando menos espero, sabe-se lá por qual razão, a frase surgiu inteira na minha cabeça. Pior, ou melhor, ao gosto do leitor: foi dita em voz alta, sem cerimônia, pegando a todos de surpresa, inclusive eu. Depois de certo espanto, o riso brotou escancarado na turma de amigos. Luta foi convencê-los de que tal expressão, de caráter escatológico, não tinha nada a ver comigo, menos ainda com os textículos que costumo rabiscar.CU 1

Trata-se, na realidade, de um verso polêmico de Adélia Prado, uma das grandes vozes da poética nacional. Sua consagração se deu, em grande parte, aos elogios recebidos por Carlos Drummond: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo – esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”. Mais calmos, quiseram conhecer essa poeta que encanta ao misturar religiosidade com erotismo, nascida numa pacata cidade do interior de Minas Gerais. CU 5Comecei dizendo que o verso faz parte de um belo texto de sua autoria, intitulado Objeto de amor, constituído de uma única estrofe com nove versos, no qual a poeta diz ser impossível guardar, em tom lírico e pungente, esse segredo tão fundamental – “De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/que não posso guardá-lo sem a sensação de um roubo:/cu é lindo!”. Para o torpor não ser ainda maior, falei pra eles, tampouco cair no sorriso estéril, basta ler/ouvir com olhos/ouvidos de criança, esquecendo de vez a malícia dos adultos. Ou, parafraseando Oscar Wilde, não existem poemas morais ou imorais. Os poemas são bem ou mal escritos. E recitei os versos restantes aos caros amigos: “Fazei o que puderdes com esta dádiva./Quanto a mim dou graças/pelo que agora sei/e, mais que perdoo, eu amo.”

A estreia de Adélia Prado ocorreu em 1976, com Bagagem, coletânea de poesias que mereceu elogios de grandes nomes da literatura brasileira, a exemplo de Carlos Drummond, Affonso Romano, Clarice Lispector, Nélida Piñon e Antônio Houaiss. Sua obra é vasta e diversificada, englobando os gêneros lírico (poesia), narrativo (prosa) e CU 2dramático (teatro), tendo merecido inúmeros prêmios, entre eles o Jabuti, em 1978, com O coração disparado. Além de poeta e filósofa, abraçou também o magistério em Divinópolis, cidade onde nasceu e mora até hoje. A temática de seus textos gira em torno de assuntos caros à autora: espiritualismo, cotidiano e erotismo. Uma escrita autêntica, singular, sem medo de agradar ou não o leitor, como deixa claro em Com licença poética, um de seus textos mais conhecidos: “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina./Inauguro linhagens, fundo reinos/ – dor não é amargura.”

Caso alguém tenha ficado chocado com tal afirmação, de que o cu é lindo, basta recordar que aconteceu na França, em 2013, a polêmica EXPOCU, uma exposição de fotografias sobre o ‘esfíncter anal’. O sucesso foi tamanho, em termos de público e crítica, que a exposição foi levada a outros países. E o que é mais interessante, com o rótulo de cultura. Não satisfeitos apenas com a beleza de tal orifício, os gringos ainda o batizaram de arte contemporânea em galeria de Paris. CU 4Diante disso, fica a lição para todos nós, frente ao clichê o ‘Piauí é o cu do mundo’, de que não devemos mais pular na jugular de pessoas tão desinformadas. Ao contrário, devemos tirar um sarro delas dizendo que nossa terra é uma peça artística de rara beleza. Se não entenderem, basta explicar o silogismo: O cu é lindo; o Piauí é o cu do mundo; logo, o Piauí é o lugar mais bonito do planeta.

Golpe não!

Nesses dias sombrios, em que forças poderosas atentam contra nossa democracia, despertei cantarolando o belo refrão de Golpe Não, clipe que está bombando nas redes sociais: “não não golpe não/ quem não teve voto/  tem de respeitar/ não não golpe não/ nossa voz na rua vem para lutar”. Fruto de uma produção coletiva, envolvendo artistas de várias gerações, todos irmanados por um mesmo sentimento, a música inicia, arrepiando nossa pele, com o talentoso Chico César soltando o verbo: “O sistema é bruto, o processo é lento/ nosso sentimento, não vai recuar/ amor, liberdade, verdade, alimento/não tinha e agora querem golpear”. Tomando a palavra, naquela perspectiva de que ‘um galo sozinho não tece uma manhã’, entra Rico Dalasam com um alerta preocupante: “as velhas raposas querem o galinheiro/ roubaram dinheiro mas fingem que não/ querem que o petróleo seja do estrangeiro/ pra esconder ligeiro sua corrupção”. Embalado por imagens de pessoas nas ruas, sobretudo jovens, com suingue nos pés e revolta na garganta, surge o refrão ainda mais contundente: “não não golpe não/ quem não teve voto/  tem de respeitar/ não não golpe não/ nossa voz na rua vem para lutar”. Para aquecer ainda mais a alma da gente, eis que aparece de repente, não mais que de repente, o rapper Coruja BCI dando o seu recado: “golpe é ditadura, digo nunca mais/ a vontade das urnas prevalecerá/ pois quem distorce os fatos em telejornais/ quer inflamar o ódio pro gueto sangrar”. Apanhando esse grito, a fim de lançar pra outros milhões de galos, salta no meio da roda, denunciando a parcialidade da grande imprensa, a instigante Ana Tréa: “o machismo mata, a imprensa mente/ mas a internet é nosso canal/ somos a guerrilha na nova trincheira/ a nação guerreira do bem contra o mal”. E aí o refrão, dura mensagem às nossas elites, ecoa corajosamente: “não não golpe não/ quem não teve voto/  tem de respeitar/ não não golpe não/ nossa voz na rua vem para lutar”. O desfecho da música, na pegada de Lucas Santtana, não poderia ser mais pedagógico: “a democracia é nossa bandeira/ golpe é uma história que já sei de cor/ todos nós queremos um país mais justo/todos nós queremos um país melhor”. Nestes instantes que antecedem agosto, mês da votação final do impeachment no Senado, em que os ricos tramam passar a perna nos trabalhadores, Evandro Fioti adverte convictamente: “não queremos menos do que já tivemos/ nós queremos muito, muito, muito mais/ toda liberdade, amor, paz, respeito/ e ninguém por isso vai andar pra trás”. Como emoção é bicho traiçoeiro, não é que me vi entoando, num gesto solidário à presidenta, ela que lutou pra termos uma democracia, inclusive sendo torturada pelos milicos na ditadura, seu inesquecível jingle da última campanha eleitoral/2014: “Dilma, coração valente, força brasileira, garra desta gente./ Dilma, coração valente, nada nos segura pra seguir em frente/ Você nunca desviou o olhar do sofrimento do povo/ Por isso, eu te quero outra vez/ Por isso, eu te quero de novo”.

Machado em filme

Filme e literatura são duas manifestações artísticas muito próximas, embora trabalhem com matérias primas distintas. Sem falar que desfrutam de enorme interesse e simpatia junto aos amantes da cultura. A primeira tem feito adaptações de várias obras da segunda, mostrando a secura das palavras na inconfundível beleza de imagens. O resultado vai agradar ou não, dependendo da sensibilidade do cineasta, que opta por uma adaptação fiel ou livre do texto literário. Geralmente, as produções têm ficado aquém das expectativas dos leitores. Quando as superam, porém, todos voltamos para casa felizes e maravilhados com a genialidade humana. Foi o que aconteceu comigo ao assistir a “Uns braços”, filme de Adolfo Rosenthal baseado num conto homônimo do genial Machado de Assis, tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Não à toa considerado, até hoje, um bruxo capaz de proezas inacreditáveis na escrita. Uns braços - Filme

A história está centrada na figura de Inácio, jovem de 15 anos que se apaixona por dona Severina, mulher do patrão, o licitador Borges, homem estúpido e que o humilha constantemente. Fora trabalhar com ele a pedido do pai, no exercício de escrevente, uma vez que o “velho” tinha a “esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito”. Algumas vezes pensou em desistir e retornar à Cidade Nova, no interior do Rio de Janeiro, por causa dos xingamentos e impropérios desferidos contra ele pelo Borges. Só não o fazia, o pobre coitado, por estar preso sentimentalmente a dona Severina, sobretudo, aos seus braços tão bonitos e frescos, que o levava a suportar “toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços”.

Se dona Severina pensou inicialmente em entregar o fedelho ao marido, logo que descobriu sua paixão por ela, depois ficou lisonjeada por ser merecedora de amor tão adolescente e virgem, passando a tratá-lo com desvelo e carinho. Agora compreendia a razão dos lapsos do garoto, os esquecimentos, as distrações e o extravio dos documentos do marido. Maior bandeira era ele não encará-la quase nunca de frente, sempre de cabeça baixa e olhando-a de soslaio. Gostou de se sentir desejada, mesmo que por uma “criança” de 15 anos, não destituída de beleza e mal vestida. “E ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada”. Até que um fato marcou indelevelmente a vida de ambos, um lance com pitadas de mistério e surrealismo.

Inácio estava deitado na rede, numa bela tarde de domingo, sonhando com a sua heroína, que o beijava nos lábios, quando entra, no quarto, a própria dona Severina, que desde madrugada sonhava com a figura do mocinho em tentação diabólica, e “inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca”. Sonho e realidade fundindo-se em amálgama de desejos proibidos e inesperados. Sem entender o silêncio de dona Severina e a rispidez de Borges, durante o jantar, Inácio ainda saboreava a imagem e o gosto do beijo trocado, convencido de que nada e ninguém poderiam apagar tal sensação de sua memória, mesmo tendo sido mandado embora alguns dias depois. Gratificante é perceber o cuidado que o diretor do filme teve em preservar as sutilezas e o psicologismo do texto de Machado de Assis, o grande perscrutador da alma humana e mestre incomparável das entrelinhas.