Filme e literatura são duas manifestações artísticas muito próximas, embora trabalhem com matérias primas distintas. Sem falar que desfrutam de enorme interesse e simpatia junto aos amantes da cultura. A primeira tem feito adaptações de várias obras da segunda, mostrando a secura das palavras na inconfundível beleza de imagens. O resultado vai agradar ou não, dependendo da sensibilidade do cineasta, que opta por uma adaptação fiel ou livre do texto literário. Geralmente, as produções têm ficado aquém das expectativas dos leitores. Quando as superam, porém, todos voltamos para casa felizes e maravilhados com a genialidade humana. Foi o que aconteceu comigo ao assistir a “Uns braços”, filme de Adolfo Rosenthal baseado num conto homônimo do genial Machado de Assis, tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Não à toa considerado, até hoje, um bruxo capaz de proezas inacreditáveis na escrita.
A história está centrada na figura de Inácio, jovem de 15 anos que se apaixona por dona Severina, mulher do patrão, o licitador Borges, homem estúpido e que o humilha constantemente. Fora trabalhar com ele a pedido do pai, no exercício de escrevente, uma vez que o “velho” tinha a “esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito”. Algumas vezes pensou em desistir e retornar à Cidade Nova, no interior do Rio de Janeiro, por causa dos xingamentos e impropérios desferidos contra ele pelo Borges. Só não o fazia, o pobre coitado, por estar preso sentimentalmente a dona Severina, sobretudo, aos seus braços tão bonitos e frescos, que o levava a suportar “toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços”.
Se dona Severina pensou inicialmente em entregar o fedelho ao marido, logo que descobriu sua paixão por ela, depois ficou lisonjeada por ser merecedora de amor tão adolescente e virgem, passando a tratá-lo com desvelo e carinho. Agora compreendia a razão dos lapsos do garoto, os esquecimentos, as distrações e o extravio dos documentos do marido. Maior bandeira era ele não encará-la quase nunca de frente, sempre de cabeça baixa e olhando-a de soslaio. Gostou de se sentir desejada, mesmo que por uma “criança” de 15 anos, não destituída de beleza e mal vestida. “E ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada”. Até que um fato marcou indelevelmente a vida de ambos, um lance com pitadas de mistério e surrealismo.
Inácio estava deitado na rede, numa bela tarde de domingo, sonhando com a sua heroína, que o beijava nos lábios, quando entra, no quarto, a própria dona Severina, que desde madrugada sonhava com a figura do mocinho em tentação diabólica, e “inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca”. Sonho e realidade fundindo-se em amálgama de desejos proibidos e inesperados. Sem entender o silêncio de dona Severina e a rispidez de Borges, durante o jantar, Inácio ainda saboreava a imagem e o gosto do beijo trocado, convencido de que nada e ninguém poderiam apagar tal sensação de sua memória, mesmo tendo sido mandado embora alguns dias depois. Gratificante é perceber o cuidado que o diretor do filme teve em preservar as sutilezas e o psicologismo do texto de Machado de Assis, o grande perscrutador da alma humana e mestre incomparável das entrelinhas.