Wellington Soares

Coisas e outras

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Como não se apaixonar por ele?

Da leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance considerado um divisor de águas na ficção nacional, ficaram importantes lições guardadas até hoje na memória. Primeira, que dificilmente damos conta de um texto machadiano numa única leitura, sendo necessário, no mínimo, umas duas ou três, e olhe lá. Segunda, que Machado não diz as coisas claramente, exigindo do leitor a compreensão das entrelinhas. Terceira, perceber que o autor não está interessado em nos contar uma simples história, porém em nos levar a refletir sobre essa nossa triste condição humana, cheia de contradições e torpezas. Quarta, a inovadora preocupação em dialogar com seus fiéis leitores, conduzindo-os pela mão através dos intricados labirintos da narrativa. Quinta, o emprego da ironia e do humor como recursos eficazes no desmascaramento das relações sociais e amorosas, pondo abaixo qualquer ilusão que ainda se tenha a respeito dessas coisas. Sexta, escrever bem não é escrever de forma incompreensível, mas primar pelo estilo sóbrio e equilibrado. E, finalmente, algumas de suas frases são tiradas filosóficas de profunda sabedoria.

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– “Crê em ti, mas nem sempre duvides dos outros”.

– “Há coisas que melhor se dizem calando”.

– “A morte de uns é a sorte de outros”.

– “O Cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos”.

– “Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um    terceiro andar”.

– “Está morto: podemos elogiá-lo à vontade”.

– “O dinheiro não traz felicidade – para quem não sabe o que fazer com ele”.

– “O vício é muitas vezes o estrume da virtude”.

– “Matamos o tempo, o tempo nos enterra.”

– “Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento”.

O contato com os outros textos de Machado de Assis, sobretudo, Dom Casmurro e A Cartomante, transformaram o que era ódio inicialmente, ou simples estranheza, na mais desesperada paixão, daquelas de marcar a gente até a medula. “A nossa cachaça diária”, como bem expressou Carlos Drummond de Andrade, referindo-se ao conjunto de sua vasta e surpreendente obra. De seu universo ficcional, não podemos esquecer as personagens femininas, tão sedutoras e enigmáticas a ponto de levar os homens à loucura e, geralmente, à mais completa solidão, como são exemplos Capitu, Virgília e Sofia.

Que maravilhoso estarmos conversando aqui sobre o “Bruxo do Cosme Velho”, justamente quando o Brasil comemora 177 anos de seu nascimento, completado em junho passado, esse mulato que é apontado como o nosso melhor escritor pela unanimidade da crítica nacional, bem como o maior autor negro da literatura universal, segundo a opinião insuspeita de Harold Bloom, renomado crítico norte-americano.

Machado de Assis deve ser tomado, costumo dizer, como modelo literário e de vida, uma vez que tinha tudo para dar errado (pobre, negro, favelado, gago, epilético e sem curso superior) e acabou dando certo. O mais extraordinário de tudo é saber que, tanto em vida como após 108 anos de sua morte, ele continua ainda a ser lembrado, lido e amado cada vez mais, inclusive no exterior.

Apesar de seu crônico pessimismo, não custa nada rememorar uma das tiradas sensacionais do filósofo Quincas Borba, personagem dos mais instigantes da galeria machadiana: “Verdadeiramente, só há uma desgraça – é não nascer”.

Nobel merecido

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Bob Dylan

Atenção caro leitor, faça completo silêncio, pois tenho uma ótima notícia pra você: Bob Dylan é o Prêmio Nobel de Literatura 2016. O anúncio foi feito na sede da Academia Sueca, em Estocolmo, na manhã da última quinta-feira, 13. A explicação apresentada, mais que justa, foi por ele “ter criado novas expressões poéticas na grande tradição da canção Americana”. Ouviu bem: Bob Dylan, o genial trovador moderno, norte-americano de Minnesota, de 75 anos, nascido Robert Allen Zimmerman, famoso mundialmente como cantor e compositor, levou o cobiçado Prêmio Nobel de Literatura 2016 por ter gravado, segundo nota biográfica da academia, “um grande número de álbuns que giram em torno de temas como a condição humana, religião, política e amor”. Paralise tudo que estiver fazendo, estimado leitor, inclusive os negócios, e preste muita atenção, please, nessa boa nova divulgada semana passada pela mídia internacional: o Prêmio Nobel de Literatura 2016 coube a ninguém menos que Bob Dylan, crescido numa família judaica de classe média que, desde a adolescência, caiu de amores pela tradição da música americana, especialmente o folk e o blues, autor de clássicos que caíram no imaginário das pessoas ao redor do mundo inteiro: “Blowin’in the Wind”, “Subterranean homesick blues”, “Mr. Tambourine man” e “Like a rolling stone”. E mais, respeitado leitor, que os líderes Obama e Putin, diante de tal notícia, cessem as tensões entre seus países, por algumas décadas ao menos, evitando assim outra guerra mundial, pois Bob Dylan, que abandonou a faculdade para se dedicar integralmente à música, indo morar em Nova York, onde se tornou famoso no início dos anos 60, foi agraciado com o prêmio literário mais importante do planeta – o Nobel de Literatura 2016, pelo lirismo expresso em suas letras, bem como ao deixar claro que, ao ser trabalhada com amor, a letra de música vira poesia da melhor qualidade, ganhando os ares através de melodias e interpretações que tocam fundo a alma de todos. Garanto que a partir dessa premiação, prezado leitor, um novo paradigma surge nos estudos literários, uma vez que Dylan, apontado com status de um ícone, segundo avaliação da Academia Sueca, revela-se aos olhos do mundo como “provavelmente o maior poeta vivo”, resgatando assim o legado de outros bardos que o precederam nos Estados Unidos, a exemplo do extraordinário Walt Whitman e dos irreverentes beatiniks Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Desligue seu televisor, amigo leitor, uma vez que neste mundo em crise, tanto do ponto de vista econômico quanto político, surge finalmente uma mensagem de esperança frente ao avanço dos fascistas: não bastassem inúmeros prêmios já ganhos, Bob Dylan, “como artista, foi altamente versátil e trabalhou como pintor, ator e autor de roteiros”, abocanhou o Prêmio Nobel de Literatura 2016, ele que criou sua arte em defesa de um mundo mais fraterno e de combate às injustiças em geral. Portanto, digníssimo leitor, louvemos Bob Dylan, como diria Torquato, e deixemos o ruim de lado!

Nova geração de poetas

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Thiago E

Num momento de crise como este, nada melhor que falar de poesia. Não para resolvê-la, mas, caso possível, exorcizá-la para longe da gente. Ao menos, o que já é lucro, por alguns poucos segundos. Tempo suficiente para o leitor passar os olhos, fatigados ou não, nestas mal traçadas linhas. Se não tem utilidade prática na vida, alguém deve indagar, que dirá resolver a grave situação do país. Infelizmente, ele está repleto de razão e não tenho, por mais que queira, argumentos para contradizê-lo. Exceto que a poesia, como diria William Soares, pode até não resolver os problemas cotidianos, mas, sem dúvida, revolve (no sentido de mexer) nossas inquietudes existenciais. Sacudidos no comodismo estéril, quem sabe nos movimentemos de uma maneira ou outra a partir de agora – quer atraídos pela chama estética ou impulsionados pela justiça social. Diante de uma boa poesia, só não cabe a indiferença dos mortos e a apatia dos céticos. Para tanto, basta dar uma espiada na geração dos novos poetas que estão surgindo na literatura piauiense.

Comecemos pelo intrépido Thiago E, artista multifacetado que transita, com a mesma desenvoltura, por distintas veredas culturais, desde a música até a artes plásticas, todas marcadas pelo talento e a irreverência do poeta de vanguarda. Embora seu nome continue ligado à Validuaté, banda musical das mais queridas do Estado, ele vem pouco a pouco firmando seu nome também na escrita poética. Seu livro de estreia, lançado em 2013, Cabeça de sol em cima do trem, prefaciado por ninguém menos que Jorge Mautner, é de uma beleza de doer os olhos, reunindo textos em verso e prosa muito instigantes. Amor é um bom exemplo disso, ao defini-lo de forma não convencional: “amor é um lugar, um vão, um trecho (chão sólido que ampara algum desejo) terreno aqui criado – extenso e dentro: o amor é espaço, não um sentimento; é um solo, lar, o amor é um lugar – tá vendo que em seu centro há de ficar tudo aquilo sentido no querer: vontade, dor, prazer, não sei o quê, palpitação, secura, um outro nome pra esta substância que consome…”

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Nathan Sousa

Outro que desponta como uma das vozes mais representativas dessa nova geração é Nathan Sousa que vem conquistando, a cada livro publicado, um número maior de fãs e de leitores de poesia. Como também de prêmios literários importantíssimos (27 ao todo, por enquanto), a exemplo do José de Alencar 2015. Sem falar ainda de ter sido finalista do Jabuti, com Um esboço de nudez, posição cobiçada por todo poeta brasileiro. Bom é ver seu amadurecimento ao longo desses anos, dos metapoemas no início da carreira à elevação das coisas comuns ao status de arte literária. Os versos De meu corpo sintetizam, de algum modo, essa transição: “De meu corpo/ eu bem poderia dizê-lo/ vácuo/ ou frágil recipiente/ de luas e auroras.// Poderia dizê-lo/ calendário de ossos/ desbotado na carne// ou mesmo/ herança de verões/ guardada na raiz/ dos poros.// De meu corpo/ eu bem poderia dizê-lo/ pedra/ ou qualquer coisa/ de bem ou de mal.//De meu corpo/ eu bem poderia dizê-lo/ corpo/ até dizê-lo/ afinal.”

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Demetrios Galvão

Quem não poderia faltar nessa despretensiosa lista é Demetrios Galvão, historiador e professor universitário que tem dedicado seu tempo, quase integral, a divulgar poesia da melhor qualidade, tanto a sua quanto a de inúmeros autores. Nesse sentido, não mede esforços em utilizar variadas plataformas, desde o livro até os saraus poéticos, incluindo ainda blog e fanzines. Diferentemente de outros, ele já nasceu feito por escolha da própria poesia, que o convocou, relembrando Torquato, a desafinar o coro dos contentes, sobretudo, desta nossa triste província. Para quem duvida, eis aqui Poema vivo: “tenho um poema vivo/ que me tira o sono/ e me faz demasiado humano// tenho um poema vivo/ que me invade pela manhã/ e me desconcerta o dia inteiro// tenho um poema vivo/ que pulsa um coração felino/ e jorra um olhar luminoso// tenho um poema vivo/ que é mais intenso que a língua/ e mais sonoro que as palavras redondas// tenho um poema vivo/ que me alfabetiza/ e me faz esticar o imaginário// tenho um poema vivo/ que carrego nos braços/ e vibra intensamente na estrutura vertebral.”

O espetáculo da vida

morte-e-vidaNuma de minhas andanças pela Anchieta, fui tomado de entusiasmo por uma edição de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano tido como um dos mais importantes da literatura brasileira. Não uma edição qualquer, dessas lançadas para suprir a demanda do mercado, mas uma edição especial comemorativa de 60 anos após sua publicação inicial em 1955. Daqueles livros que a gente começa a devorar pelo projeto gráfico, olhos e mãos dando pulos de alegria diante de biscoito tão refinado: capa dura e vermelha, papel pólen bold, apresentação de Antônio Carlos Secchin, entrevista com Chico Buarque e texto de Alceu Amoroso Lima. Como se não bastassem, a editora Alfaguara traz ainda a cronologia e a biografia do autor. Enfim, uma edição pra ser lida com a reverência que o texto exige e guardada com todo carinho possível.

Por mais vaga ideia que se tenha do livro, acredito que todo leitor, pelo menos o escolarizado, bem como o que assistiu na TV ou no cinema, lembre-se das agruras do retirante Severino fugindo da morte em busca de uma vida minimamente humana. Logo no começo da peça, não esquecer que se trata do Auto de Natal Pernambucano, nosso irmão nordestino manifesta quem é: “Como então dizer quem fala/ ora a Vossas Senhorias?/ Vejamos – é o Severino/ da Maria do Zacarias,/ lá da serra da Costela,/ limites da Paraíba.” Caso não recorde ainda, talvez a descrição que Severino faz de si próprio e de seus pares evoque reminiscências difíceis de esquecer: “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte Severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia…”

Escrita sob encomenda, a pedido da teatróloga Maria Clara Machado, a peça tinha poucas chances de ser um sucesso: não era nem de longe a obra do gosto do escritor recifense, que preferia “Uma Faca Só Lâmina”, texto de maior fôlego poético; teve a trilha sonora musicada por um compositor inexperiente, Chico Buarque de Holanda, que expressara, em certa ocasião, “eu não tinha domínio técnico da organização musical e peguei um trabalho um pouco maior do que podia”; sem falar também que seria montada por jovens atores, do grupo teatral Tuca, da PUC/SP, estudantes universitários que pisavam num palco pela primeira vez; e, por último, correndo grande risco de ser censurada pela ditadura militar, afinal quem mandou seu autor explorar logo um conteúdo de apelo social e político, falando de latifúndio e miséria e injustiça, temas proibidos na época.

A despeito de tudo, não é que a peça foi um estrondoso sucesso, tanto de público quanto de crítica, inclusive vencendo a competição no respeitadíssimo Festival de Nancy, na França. Há quem afirme que o sucesso do livro foi tanto que João Cabral, sobretudo, depois das adaptações para outros veículos – televisão, cinema, teatro e história em quadrinhos – chegou a temer pelo esquecimento do restante de seus livros. Ledo engano, uma vez que a partir daí só tem aumentado o interesse pela leitura e análise de sua extraordinária obra, em particular no meio acadêmico. E pensar que essa história tão banal do Severino, 60 anos depois, continua a inquietar nosso juízo: “Seu José, mestre carpina,/ que diferença faria/ se em vez de continuar/ tomasse a melhor saída – a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?”.

São tantas emoções

O coração é uma parte do corpo que requer bastante cuidado, sob o risco de ele parar e, de repente, recebermos a visita incômoda da “indesejada das gentes”, como diria Manuel Bandeira. E o pior, sem termos realizado um montão de sonhos e concluído algumas travessias essenciais. Daí a recomendação médica para evitarmos fortes emoções, como se tivéssemos controle total das circunstâncias que envolvem o grande espetáculo da vida. Ainda mais no tocante a atividades culturais que mexem, independente de nossa vontade, com sentimentos profundos da alma.  Foi o que aconteceu comigo nos últimos dias, em Teresina, quando me vi tomado de grandes sensações, daquelas que tornam a existência algo prazeroso – a ponto de achar que renascemos melhor ao ser tocado pela linguagem envolvente da poesia.

Foto: Irakerly Filho.

Foto: Irakerly Filho.

Assistir Bibi Ferreira em show no 4 de Setembro, durante as comemorações dos 122 anos do nosso teatro, foi simplesmente inesquecível, de fazer o coração da gente pular de tanta alegria, pouco importando o perigo de um ataque fulminante. Aos 94 anos, ela está mais brilhante do que nunca, cantando com paixão e leveza, talvez retribuindo o carinho que tem recebido do público brasileiro ao longo desses 75 anos de carreira, quer como intérprete ou atriz. Por quase duas horas, Bibi soltou a belíssima voz pelos clássicos de Frank Sinatra, resgatando as várias fases do repertório musical do talentoso artista norte-americano, incluindo as parcerias com Tom Jobim, mestre que o levou a gostar dos acordes refinados da Bossa Nova. E o mais interessante, a trajetória de Sinatra tecida com picardia e humor por Nílson Raman e ela. Para completar, ainda encarna no final do espetáculo, levando a plateia ao delírio, a magistral Edith Piaf em “Ne me quitte pas”.

Sônia Braga em Aquarius

Sônia Braga em Aquarius

Outro momento de pura emoção foi ver Sônia Braga, mais sublime que nunca, atuando em Aquarius, filme de Kleber Mendonça Filho no qual interpreta magistralmente a jornalista aposentada e escritora Clara, uma vítima rebelde da especulação imobiliária de Recife. Viúva e morando sozinha, embora tenha três filhos, ela decide enfrentar os que insistem em “algarismar os amanhãs”, pouco ligando para as relações de afetividade que inquilinos mantêm uns com os outros, com o prédio ondem moram e a cidade em que vivem.  Com trilha sonora e fotografia impecáveis, além de roteiro convincente, Sônia Braga encarna com desenvoltura a personagem criada especialmente para ela, emergindo do limbo com poeticidade e ocupando seu lugar de direito como uma das eternas divas do cinema nacional. Filme para assistir e guardar num cantinho especial da memória, independente das polêmicas surgidas desde sua exibição no Festival de Cannes.

Marcelino Freire

Marcelino Freire

E nesta segunda à noite, quase dando um treco, mediei o bate-papo “Os dois cantos da literatura” com Marcelino Freire, escritor pernambucano radicado em São Paulo. O convite partiu do Sesc/PI e, bastante feliz, topei na hora. Além de admirador de sua obra, somos amigos desde 2012, quando o trouxe a Teresina para palestrar no Salipi, nascendo daí uma amizade que perdura até hoje. Nesse mesmo ano, ele me levou para lançar meu livro de crônicas, O dia em que quase namorei a Xuxa, na Balada Literária de São Paulo, evento cultural dos mais importantes do país que ocorre anualmente em Sampa – produzido pelo ilustre filho de Sertânia e realizado pela Livraria da Vila.  Ganhador do Prêmio Jabuti de 2006 com o livro Contos negreiros, Marcelino é um mestre das narrativas breves e um encantador de plateias com suas conversas envolventes e bem humoradas.  Daqui sigo com ele para Oeiras (15) e Parnaíba (19) a fim de continuarmos esse importante trabalho de incentivo à leitura e à escrita.